O que agora vou contar foi exactamente o que disse aos circunstantes
no “dia dos monumentos e dos sítios” deste ano – o dia dezoito de
Abril – que me parece ter sido ontem, num encontro de narrativas
partilhadas pelo Professor Jorge Arroteia, pela Dra. Margarida
Ribeiro, do Museu da Cidade, e por mim próprio. Em prévia reunião com
estes meus amigos, eu tinha dito que o que mais me apetecia contar
seria o que aquele largo da Estação mais me marcara na minha meninice.
Quando chegou a minha vez de “botar faladura”, lá fui eu desenterrar
da memória aquilo que eu julgava ter-se passado quando não teria mais
de quatro anos, no ano de 1942. E é precisamente disto que nos vamos
agora ocupar.
O ano de 1942 terá sido a minha primeira ida à estação da CP. Fui pela
mão de minha mãe Mariazinha de casa da minha avó Joaninha (assim as
chamava eu), situada no nº 11 da rua de Ílhavo (hoje rua de Mário
Sacramento), numa manhã de “chuva de mata-tolos”, aquela morrinha que,
passado pouco tempo, tinha colado ao meu corpito de garoto a blusa
branca que levava vestida, mais os calções pretos que a minha mãe
fizera, aproveitando uma peça de roupa usada.
Chegar à estação, comprar os bilhetes do comboio, subir para a
carruagem de terceira, ouvir o apito estridente da largada, tudo isso
era para mim novidade. Eu sentei-me do lado da janela, mas logo me pus
em pé para ver a paisagem. É curioso como ainda hoje mantenho na
memória a sucessão dos factos e as imagens que os suportam. Era a
minha primeira viagem de comboio. O destino era a cidade do Porto. O
objectivo era visitar o meu pai Manuel, que chegara a Leixões a bordo
do Gil Eannes, unidade da Armada Portuguesa transformada em
navio-hospital e que tinha recolhido os pescadores e tripulantes do
lugre-bacalhoeiro Santa Regina, que se afundara nos mares dos
bacalhaus. O meu pai Manuel era um desses pescadores.
Tudo o que estou agora a escrever corresponde ao que a minha memória
guarda. Parece que ainda tenho à minha frente o meu pai, deitado num
beliche do navio, esquálido, duma palidez incrível, olhos encovados, e
julgo ainda sentir a sua mão a afagar a minha cara. E, todavia, apesar
da nitidez das imagens, tudo o que narrei, referente a esse dia 18 de
Abril, relativo a esta minha ida ao Porto, não pode ter sido assim.
Por incrível que pareça, a verdade é outra. Tudo o que acabei de
contar não passa do registo que fui fazendo de narrativas ouvidas da
boca de minha mãe e que fiz minhas, que fiz vividas por mim. E
tê-las-ei vivido, sem dúvida que sim, mas com uma idade que não me
permitiria ir pela mão de minha mãe. Esta vivência, tão intensamente
sentida ainda hoje, desmoronou-se quando fui à minha biblioteca, onde
guardo os livros sobre Aveiro, buscar um pequeno caixilho que emoldura
a fotocópia de uma DECLARAÇÃO prestada ao Grémio dos Armadores de
Navios da Pesca do Bacalhau, preenchida com a letra de minha Mãe, e
que serviu como uma espécie de inscrição do meu Pai Manuel como
pescador do bacalhau. Muito do que eu considerava verdade absoluta
caiu por terra. Essa fotocópia de Declaração foi-me dada pela Dr.ª Ana
Maria Lopes, enquanto Directora do Museu Marítimo de Ílhavo, logo após
este Museu ter recebido o espólio arquivístico dos Organismos das
Pescas. A Dr.ª Ana Maria viu o meu nome e, reconhecendo o interesse
que teria para mim, deu-ma. É um documento bem revelador do espírito
da época do Estado Novo. Para além da identificação do meu Pai (data
de nascimento, filiação, estado civil, residência, cédula marítima,
sua data, entidade que a emitiu), contém um carimbo a letra arroxeada
perguntando: “Importante – o seu casamento foi celebrado na Igreja
Católica?”. Por essa declaração, que só agora analisei com o máximo
cuidado, fiquei a saber que o meu Pai embarcou como “pescador-verde”
na Campanha de 1936 no navio “Santa Regina”, continuou embarcado no
mesmo navio na Campanha de 1937, e naufragou em 1938, já como
“marinheiro-pescador” da sua Companha.
Assim sendo, eu nunca poderia ter ido pelo meu pé até Leixões para ver
o meu pai. Se eu nasci a 21 de Agosto de 1938; se o lugre Santa Regina
naufragou na campanha desse ano; se o meu pai regressou no Gil Eannes
no fim dessa campanha, eu só poderia ter ido ao colo de minha mãe, de
meses que eu era.
Mas eu pergunto-me a mim mesmo: como se me enraizou a ideia dessa ida
de comboio até ao Porto? Só há uma explicação possível: a minha mãe
costumava preencher a ausência prolongada do marido que “andava ao
mar”, contando-nos as histórias que ela julgava mais adequadas para
manter viva a memória do seu homem, pai dos seus filhos. E a história
de um naufrágio não era uma história qualquer. Deve ter sido repetida
inúmeras vezes, e nem sempre da mesma maneira, acrescentando sempre
coisas novas para que o interesse não se apagasse. O resto fui eu
criando por conta de uma “orfandade” que a permanente ausência do Pai
mais do que propiciava. Eu quase não convivi com o meu Pai…; eu quase
não soube o que era ter um Pai…
Perdoai-me, pois, todos aqueles que me ouviram perorar sobre uma
viagem de comboio feita nos meus quatro anitos de idade. É que a
imaginação de uma criança é sempre mais rica do que a própria
realidade. Mas, ainda hoje, tenho a impressão de que a história que
contei na manhã do dia 18 de Abril, no largo da nossa Estação da CP,
será aquela que mais preenche os meus afectos.
Gaspar Albino
Julho de 2015 |