Quando nasci em 1938 já lá
estava, desde 1864, um edifício a servir de Estação da CP da minha
cidade de Aveiro. José Estêvão, o tribuno maior que a terra da Ria deu
a Portugal, encarregou-se de defender a implantação da Linha do Norte
para bem perto da cidade da Ria, conseguindo, pela força do seu verbo,
alterar o traçado da Linha do Norte que havia sido planeado pelo
engenheiro Wattier, em 1856, projecto esse que não contemplava a
passagem por Aveiro. Premonitoriamente, José Estêvão já defendia, em
termos muito práticos, as teorias contemporâneas de tráfego, desejando
que fosse ali, o mais perto possível do Porto Atlântico de Aveiro, que
ficasse implantado o nosso “porto seco”, a nossa estação de caminho de
ferro: ponto de chegada e de partida de pessoas; ponto de chegada e de
partida de mercadorias. Tudo isto a pensar no progresso da nossa
terra, tempos fora.
Esse edifício inicial foi
inaugurado a 10 de Abril de1864 pela Companhia Real dos Caminhos de
Ferro Portugueses.
Em 16 de Maio de 1864, os restos
mortais do grande tribuno aveirense já foram transportados por caminho
de ferro até à sua cidade natal, seguindo depois para o cemitério de
Aveiro. Cumpriu-se, assim, o seu sonho que ele ajudara a converter em
realidade.
* * *
Estamos a viver uma época em que
há dias para comemorar tudo e todos. Foi para viver o “dia dos
monumentos e dos sítios”, um de Abril, que, logo pelas 10 horas da
manhã, lá aparecemos nós, o Professor Jorge Arroteia e eu, muito bem
ciceronados pela Dr.ª Margarida Ribeiro, do Museu da Cidade, para cada
um falar, com escopos repartidos, daquele “sítio” onde há cerca de 150
anos foi construído o primeiro edifício que, apesar de ter sofrido ao
longo do tempo alterações, sempre foi servindo de Estação de Aveiro do
Caminho de Ferro.
Não foram muitos os cidadãos que
acorreram ao encontro promovido pela nossa Câmara Municipal, e que
havia sido divulgado pelos meios de comunicação social, para viver o
dia do “sítio” da Estação de Caminho de Ferro. Mas os que compareceram
revelaram-se muito interessados e atentos a tudo o que foi sendo dito
pelo douto Professor Arroteia e por mim próprio.
Começou-se exactamente pela casa
da velha Estação, casa esta que resultou da modificação e alargamento
do edifício inicial de 1864. Essas obras de modificação, consequência
do aumento do tráfego ferroviário entretanto verificado, foram
realizadas entre 1915 e 1916.
Este edifício é composto por
três secções: uma parte central, de três pisos, que inclui três portas
amplas ao nível do solo. Tem ainda duas partes laterais simétricas, de
dois pisos, contendo uma porta e dois postigos. Foi construído nos
moldes tradicionais do que se pode designar por “estilo de Casa
Portuguesa”. As suas fachadas estão decoradas por painéis azulejares,
bordejados por molduras em tons azuis e amarelos, da autoria dos
pintores Licínio Pinto e Francisco Pereira, artistas da Fábrica da
Fonte Nova. Este trabalho de decoração foi ultimado em 1916.
Os
motivos dos painéis reproduzem trechos da cidade de Aveiro, da sua
Ria, do Rio Vouga, Marinhas de Sal, Farol da Barra, Costa Nova, São
Jacinto, margem do Vouga, trajos típicos de Aveiro (Tricana; Peixeira,
Pescador), pesca da Xávega, vindimas em Anadia. Para além de motivos
locais e da Região, há painéis reveladores de um certo sentido
publicitário, mostrando outras zonas do País, como, por exemplo, o «Palace Hotel do Bussaco», o Castelo de Santa Maria da Feira, o Castelo
de Almourol e o Mosteiro da Alcobaça.
A encimar a parte fronteira há
dois medalhões: um, com o retrato de D. José de Salamanca y Mayol,
administrador da empresa concessionária das obras na Linha do Norte;
outro, com uma caravela, por certo adivinhando o porto de mar que está
para oeste. Na parte virada para a Linha do Norte, entre outros
painéis azulejares, está um medalhão com o retrato de Manuel Firmino.
Aveiro, entretanto, nos finais
do século XIX, princípios do século XX, começou a concitar o interesse
de investidores no caminho de ferro. Assim, um certo Francisco Pereira
Palha, por alvarás de 11 de Julho de 1889 e 23 de Maio de 1901, obteve
autorização para construir um caminho de ferro de via estreita entre
Torredeita, na linha do Dão, e Espinho, na linha do Norte, com um
ramal para Aveiro. A concessão foi posteriormente passada para a
Compagnie Française pour la Construction et Exploitation des Chemins
de Fer à l’Étranger, em 1906. O troço de Sernada do Vouga a Aveiro
entrou em serviço em 8 de Setembro de 1911, ficando a Estação de
Aveiro a servir as duas linhas. Em 1912, entrou ao serviço um ramal
ferroviário de cerca de 2 quilómetros até à Ria, para o transporte de
sal e outras mercadorias. O Decreto 12.682, de 15 de Novembro de 1926,
previa a construção de mais duas vias férreas a sair da estação de
Aveiro: uma, até Cantanhede, prolongando o Ramal de Aveiro, mas que não
se concretizou, e outra, até ao Canal de São Roque.
As obras de construção da Barra
de Aveiro iniciaram-se em 3 de Outubro de 1932, obrigando à construção
de um ramal, com início na Estação de Aveiro até ao Canal de São
Roque, para o transporte de grés vermelho de Eirol e de granito de
Vila Chã. A pedra depois era trasfegada para barcos seguindo até à
Barra. E, já mais tarde, outro ramal seguiria por norte do Canal de
São Roque até à Lota Velha, levando granito para a construção dos
molhes do Porto de Aveiro.
Mas voltemos a 1864. A Estação
de Aveiro começava a garantir um tráfego crescente de pessoas e
mercadorias da Linha do Norte. Era o pulsar de uma nova vida que punha
a descoberto as fragilidades duma cidade que se deixara adormecer.
E, então, gente mais
empreendedora começa a aparecer com ideias que permitissem tornar mais
fácil ou mais célere o trajecto da Estação da CP até ao centro da
cidade. É que o caminho tinha que se fazer por diversas ruas: a rua da
Estação, a rua do Carmo, a rua do Gravito, a rua Manuel Firmino e a
rua José Estêvão. Em 1873, o Eng.º Silvério Augusto Pinheiro
apresentou à Câmara uma solicitação para construir um “caminho
americano” – Tramway – a ligar a Estação com o cais da cidade. Este
pedido ficou em suspenso, dando em nada. Outro apareceu logo no
princípio de 1874, apresentado por João Tavares Alvim, afirmando que
desejava montar uma linha férrea pelo “sistema americano”, partindo do Cojo até à Estação. Mas também esta iniciativa não passou de um sonho.
Só com a eleição da Câmara presidida pelo médico Dr. Lourenço
Peixinho, em 1918, é que este avança com a proposta da construção de
um “boulevard”, uma larga via que mais tarde viria a chamar-se de
Avenida do Dr. Lourenço Peixinho, ligando o centro da cidade à
Estação.
E foi no topo da nossa avenida,
no largo da Estação como o povo lhe chama, que nos centrámos para
falar sobre o “sítio”. O tempo muito irregular não nos permitiu fazer
a pé o percurso que estava previsto: rua Cândido dos Reis (antiga rua
da Estação), rua de Sá, Quartel de Cavalaria 5, rua Hintze Ribeiro, rua
João de Moura e retorno ao Largo da Estação.
A linha do Norte, durante muitos
anos, constituiu uma barreira que dificultava a livre circulação de
pessoas e viaturas para Leste. Ir para São Bernardo, para Vilar, para
o bairro do Vouga, para Esgueira, pressupunha contornar as
dificuldades que as passagens de nível impunham.
Vezes houve em que cheguei a
esperar quase duas horas para que a passagem de nível de Esgueira
franqueasse o tráfego das viaturas que se dirigiam para a EN 109 ou
para as povoações e fábricas situadas a Leste da Linha do Norte. E do
lado de lá da linha vivia e trabalhava muita gente: eu próprio
trabalhava como contabilista na LUZOSTELLA, famosa fábrica de lixas e
colas, hoje infelizmente desaparecida.
É que a nossa Estação, apesar
da barreira da linha do caminho de ferro, tornou-se num pólo de
cultura de proximidade e de atracção para o surgir de novas
urbanizações e de fixação de novas indústrias e de novos comércios. O
bairro do Vouga, onde cheguei a viver em solteiro com a minha mãe e
irmãos, numa vivenda novinha a estrear; a já referida fábrica
Luzostella; a cerâmica do Azul; a Scalabis, que foi fábrica de bebidas
espirituosas e de que só restam dois painéis azulejares com o seu
logotipo dum grafismo bem datado à espera de alguém que os
salvaguarde; num dos muros próximos, virado para a nova gare, de
armazém aparentemente abandonado, está um recente e excelente trabalho
de “street art” que urge também proteger; a bela fábrica de cerâmica
de Jerónimo Pereira Campos, entretanto encerrada, mas felizmente em
boa hora poupada a camartelo impiedoso, dando lugar ao Centro de
Emprego e de Formação Profissional, a serviços da Câmara Municipal de
Aveiro, a um belo Auditório e a um Restaurante/Bar. Lembro, com
saudade, o movimento que a Fábrica Campos de então originava no antigo
canal do Cojo – hoje “transformado” no canal da Fonte Nova – cheio de
barcos mercantéis ajoujados de telha e tijolos, rumando para os quatro
cantos da nossa Ria. A implantação desta fábrica bem junto à linha do
Norte e a dois passos da Estação é o exemplo acabado do benefício de
custos resultante dessa proximidade. Dessa proximidade também
beneficiava a Fundição do Paula Dias, que o tempo fez
também desaparecer, e cujo sapal, confinante com o antigo canal do Cojo,
viria a permitir uma excelente urbanização que, hoje, tanto dignifica
Aveiro. Aliás, o chamado lago que define o remate do actual canal da
Fonte Nova garante um espelho de água que faculta o acesso a um
moderno hotel para o qual até se pode entrar vindo da Ria. Isto, diria
mesmo, é quase único! E como este ar novo está longe do canal do Cojo
de outros tempos, bordejado, do sul, pela “selva”, mesmo ali nas
barbas do centro da cidade; pela Aleluia, fábrica de azulejos de
revestimento e de painéis artísticos; pela Artibus, fábrica que
produzia peças artísticas de porcelana; pela carpintaria do Sr.
Bandarra, pai dos irmãos artistas plásticos, Manuel, Jeremias e Hélder
Bandarra. E, pelo norte, um conjunto de palheiros, pintados de zarcão,
cheios de ferro e papel velhos, trapos e lixo, muito lixo. Os meus
companheiros da escola primária vangloriavam-se de nesses monturos de
porcaria encontrarem preservativos usados que, depois de lavados,
serviam para fazer balões para brincar. Esses palheiros eram de
farrapeiros que ali faziam o seu negócio que fedia, que metia nojo.
Mas isto também era a cidade que tínhamos. A ligar ambos os lados do
canal estava a célebre ponte de pau. Tudo isto já lá vai, felizmente!
O ramal de São Roque fez com
que, pelo Sul, surgisse a fábrica de cerâmica do Sr. João Campos, as
Faianças de São Roque, o armazém de ferragens do Sr. Pedrosa, muitos
palheiros de retém do sal produzido nas nossas marinhas que se
espraiavam para Norte até se perderem no horizonte. Por esse ramal
chegavam muitos produtos até aos armazéns da CUF e da Mobil,
localizados para os lados da ponte de São João.
Mas voltemos à nossa Estação, verdadeira sala de visitas da cidade. Já
com a avenida a funcionar, a Estação foi causa do surgir do então
Hotel Avenida, da Pensão Barros, de cafés como “O Galito”, onde eu
parava para tomar a bica antes de ir trabalhar para a LUZOSTELLA, e o
“Sol d’Ouro”; e tascas, como a da Maria do Céu; havia também
restaurantes como o “Ferrolho” e o “Lago”. E a própria avenida começou
a converter-se em lugar de passeio citadino, propiciando o surgir de
inúmeras casas de comércio, acima de tudo de modas e garagens de venda
e recolha de automóveis. Este é um “boulevard” à escala de Aveiro,
mas, sem dúvida, uma das mais bonitas avenidas de Portugal. Pena é que
hoje, por força do aparecimento de novas formas de organização de
comércios como, por exemplo, o “Fórum”, que veio ocupar o matagal que
designávamos, em tempos idos, por “selva”, mesmo no centro da cidade, a
nossa avenida apresente muitos dos seus prédios em lastimável estado
de abandono, com muitas lojas que encerraram. Há projectos de
reanimação da vida desta artéria que urge pôr em prática.
Mas o que é facto é que, ao
longo dos tempos, a nossa Estação e a Avenida que se estende até às
“pontes” (é curioso como o povo de Aveiro mantém os nomes
tradicionais, como é o caso da ponte-praça herdeira das “pontes” e o
moderno viaduto que continua a ser carinhosamente chamado de “ponte-de-pau”),
têm sido palco de inolvidáveis manifestações cívicas. As cidades-irmãs
de Viana do Castelo, Viseu e Coimbra, acima de tudo no princípio do
século XX, mandaram a Aveiro impressionantes embaixadas, vindas de
comboio, com ranchos de cidadãos com os trajos tradicionais típicos
das suas regiões, acompanhados de bandas de música; o povo de Aveiro
acorria a acolher, com aplausos, essas embaixadas de amizade que
percorriam, a pé, a Avenida até à nossa Câmara Municipal. Era uma
festa que começava na nossa Estação da CP e que desbordava na baixa de
Aveiro!
Era também à Estação de Aveiro
que chegavam, e eram recebidos com pompa e circunstância, reis e
presidentes da República. Ainda no ano de 1996 o comboio real voltou a
apitar em Aveiro “com a fumarada das velhas locomotivas a vapor”. Não
resistimos a transcrever a notícia vinda a lume na “Folha Informativa
da CP”, no seu nº 52, de Abril/Maio de 1996. Rezava assim essa
notícia: «D. Luís (o humanitário rei romântico) de novo desembarcou na
cidade do Vouga. Uma bela reconstituição histórica, com personagens de
carne e osso: na pele do monarca, o actor Arlindo Silva (meu grande
amigo ainda activo no nosso CETA – Círculo Experimental de Teatro de
Aveiro que eu também ajudei a fundar…). A real consorte estava
representada por uma aluna da Escola Secundária Homem Cristo. Os
relógios marcavam as 16 horas do dia 4 de Maio de 1996, quando o
comboio real estancou diante da engalanada estação de Aveiro. O casal
real trazia séquito, personagens assumidas por alunos das escolas
secundárias aveirenses. O comboio (uma locomotiva a vapor e duas
carruagens, uma delas de 1881) estacionou. O povo, convidados e quem
quis assistir, aplaudia. Saíram das carruagens todos os integrantes da
comitiva e atravessaram o átrio da estação, cujos azulejos deram um tom
muito especial ao evento. Já no exterior, ao longo da Avenida Dr.
Lourenço Peixinho, dois palanques com poltronas para a família real e
cadeiras para os autarcas (edis) de Aveiro que procederam, ali, à
cerimónia do beija-mão. Uma extensa passadeira vermelha indicava o
caminho a percorrer pelos ilustres visitantes./…/ À espera do casal
real, alguém muito especial: um descendente de D. Luís, o actual Duque
de Bragança, D. Duarte Pio. /…/» Foi este um dos grandes momentos das
Festas da Cidade de Aveiro de então.
Muitos dos participantes dos
Congressos Republicanos, só realizados em Aveiro, no tempo de Salazar,
mercê do espírito aberto e democrático de Vale Guimarães, chegaram à
nossa cidade pela via férrea. Mas foi na Avenida Dr. Lourenço Peixinho
que se verificou uma lamentável carga de forças policiais com cães
sobre congressistas que pretendiam somente prestar homenagem a
democratas falecidos, jazentes no cemitério central da cidade. Nem
tudo o que ocorreu ao longo dos tempos na nossa avenida foi festa,
como aqui se lembra.
Doutra feita, o Bispo de Aveiro,
D. Manuel de Almeida Trindade fora a Roma. No seu regresso, uma
multidão deslocou-se à nossa Estação da CP para o receber. Viviam-se
momentos muito encrespados da nossa jovem democracia e o povo de
Aveiro escolheu aquele evento para mostrar ao País que os ideais da
Liberdade que sempre foram seu apanágio teriam que ser defendidos.
A nossa avenida foi invadida,
então, por uma maré de LIBERDADE, bem ao jeito da nossa gente, desde
sempre afeita aos ventos fortes que a fustigam, mas que nunca a
vergaram nem vergarão.
Aveiro é isto. Tem sido isto.
Será sempre isto. Tão só.
Gaspar Albino
1 de Abril de 2015
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