O DIÁRIO DE AVEIRO, na sua edição de 9 de Fevereiro, publicou, na sua
última página, notícia da lavra de Margarida Malaquias, sob o título a
quatro colunas AVEIRO TEM O PRÓXIMO PETISCO DA MODA, informando,
conforme subtítulo, que, nas nossas antigas salinas, abunda um pequeno
camarão, muito apreciado em Espanha, e que está a despertar o
interesse económico dos aquicultores portugueses.
Para meu espanto, esse pequeno camarão é chamado de CAMARINHA! E mais
reza a notícia que este crustáceo “cresce naturalmente nas antigas
salinas que existem em Aveiro, na Figueira da Foz, no estuário do
Sado, na Ria Formosa e na Ria de Alvor”. Segundo afirma o
secretário-geral da Associação Portuguesa de Aquicultores (APA), a
maior parte da sua produção tem sido exportada para Espanha, onde é
muito apreciada.
Na minha meninice eu adorava ir para a marinha que o meu tio Joaquim
amanhava.
Eu gostava imenso deste velhote bonacheirão que muito me mimava,
talvez porque Deus não lhe dera filhos. Estava casado com a minha tia
Luz, irmã de minha avó paterna, a ti Guilhermina, que vendia peixe
grado na praça de Manuel Firmino. O ti Jaquim era um homenzarrão da
falas mansas. Nunca lhe ouvi um berro. E os moços da marinha, apesar
desse comedimento, ou talvez por isso mesmo, andavam sempre de
esquerda em linha, cumprindo escrupulosamente os rituais do amanho do
salgado. Quase não se ouvia uma fala.
Íamos de madrugada, de bateira, canal de São Roque fora até entrarmos,
passado o canal das Pirâmides, no emaranhado de esteiros que nos
levava ao destino. Os moços pernoitavam no palheiro da marinha e eram
eles que se encarregavam da amarração do barco. Pés em terra, o meu
tio mandava-me para dentro do palheiro para dormir aquilo que a
madrugada não deixara.
Quando o calor do sol alto começava a apertar, todos se recolhiam à
sombra da figueira que cobria generosamente a eira. A bilha de barro
vermelho conservava a água fresquinha e todos bebiam dela sem tocar os
beiços na sua embocadura. Vinho, só à hora de comer a caldeirada,
feita em banho-maria na panela de três pés. Com os calores da
estorreira, apetecia a sesta. Então, cada um se estendia em cima do
junco bem cheiroso e batia a sua soneca reparadora.
Depois era voltar para o amanho da marinha, rendo o sal dos tabuleiros
que o sol ia fabricando, trazendo, prancha acima, a canastra ajoujada
que era despejada em gesto de bailado no monte de cristais que se ia
formando.
Chegada a hora da merenda, um dos moços dirigia-se à bomba principal
do viveiro da marinha, aliviava-a levemente, e do jorro de água assim
consentido, nassa aprontada recebia a dose das cabrinhas para o
petisco que resultava duma cozedura leve em que folha de louro a
preceito somava ao seu sabor. Escoadas as cabras, deixavam-se
arrefecer e, depois, era um fio de azeite e de vinagre e uma cebola
bem picada que garantiam mesmo o conduto da merenda a enriquecer a
boroa que o ti Jaquim levara de casa.
De vez em quando, lá aparecem elas, as cabras, envergonhadas, lá para
os lados do mercado da Costa Nova à espera que gente que as entende e
não confunde repita o ritual da cozedura que eu via fazer na marinha
do ti Jaquim.
As camarinhas constituíam outro petisco. Vinham de Mira as miroas,
pé descalço, com os açafates à cabeça, cheiinhas de camarinhas
acabadas de apanhar lá para os pinhais das gândaras. Eram pequenos
frutos suculentos que se vendiam aos domingos, de porta em porta, ou
no jardim da cidade. Juntavam-se aos tremoços e às pevides bem
assadas, mas não queimadas. E eram uma merenda da cidade.
É pena que já ninguém as venha vender, não em açafates à cabeça de
mulheres de pé descalço, mas trazidas em meio de transporte adequado e
compatível com os dias de hoje.
Não faltariam clientes para as comprar. Eu seria um deles.
Até porque me seria mais fácil, frente às ditas camarinhas, demonstrar
que elas não são, nunca foram, as cabrinhas que se apanham, ainda
hoje, à saída dos viveiros das marinhas de sal abandonadas.
Gaspar Albino
12 de Fevereiro de 2015
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