Com a transição para o Curso Geral de Comércio, dissemos adeus à casa
da Rua Direita. Agora, a nossa Escola era mesmo ao lado da Igreja da
Misericórdia, num conjunto edificado muito envelhecido. Mas foi lá que
começaram a funcionar os cursos profissionalizantes. Ainda hoje me
pergunto como foi possível convivermos todos, os do Comércio, da
Formação Feminina e dos vários cursos da Indústria nesse mesmo espaço.
Mas lá nos arrumaram. E não foi por causa da vetustez das instalações
que nós deixámos de ter excelentes professores a propiciar-nos aulas
aliciantes que nos foram enriquecendo na nossa formação. Lembro o Dr.
Rocha e Cunha que só falou alguma coisa em Português na primeira aula.
Exactamente para nos dizer que, desde aquele dia, na aula de Inglês,
só se falaria na língua inglesa. Sei que cheguei ao fim do primeiro
ano lectivo com 1216 vocábulos. Isso permitia-me já desenvencilhar-me
para resolver em Inglês a minha vida diária.
O mesmo aconteceu com o nosso professor de Francês, o “meia-leca”,
alcunha que resultava da sua pequena estatura. Era o Dr. Marino, que
se licenciara em Românicas como estudante “voluntário”, tendo sido
carpinteiro de profissão. Quer um quer outro transmitiram a todos nós
um gosto enorme pelas línguas que ensinavam, sendo inexcedíveis no
cuidado posto no aperfeiçoamento das respectivas pronúncias. Ao fim de
três anos de aprendizagem todos nós, seus alunos, éramos fluentes quer
no Inglês, quer no Francês. E, deixai-me repetir, a minha querida
professora Dra. Cecília Sacramento, que adorávamos, fazia de todos nós
verdadeiros amantes da Língua Pátria. Era sob a orientação destes
professores que fazíamos jornais de parede em cada uma das línguas por
eles ensinadas. Os arranjos gráficos eram apelativos e os conteúdos
versavam as várias matérias que nos eram ensinadas: Noções Gerais de
Comércio, Técnica de Vendas, Noções de Direito Comercial, Geografia,
etc., etc..
Lembro o Dr. Araújo, o professor de Contabilidade que fez de mim um
profissional ágil no mundo da actividade própria dum escritório.
Jamais poderei esquecer o nosso professor de dactilografia, o senhor
Armando Madail. As máquinas de escrever mais pareciam peças de museu,
mas as teclas HCESAR permitiam-nos transformar o teclado em autêntico
piano. Até havia quem escrevesse com os olhos vendados. Mas este
professor também geria o serviço de assistência aos alunos mais
carenciados. Eram sapatos de couro amarelo, eram calças, camisolas,
camisas e meias de lã que ele ia distribuindo consoante as
necessidades que ele parecia adivinhar. Eram os livros que não sei de
onde vinham, de edições de anos anteriores, mas que ele facultava aos
que nada tinham. Tudo isso era feito dentro de um espírito de
camaradagem que só visto e sentido.
Houve outros professores, como a Dr.ª Nereida, professora de Francês,
a Dr.ª Ondina Leite, que sendo de românicas nos dava Geografia, o Dr.
David Cristo que nos ensinava Direito Comercial e outros cujos nomes
imperdoavelmente esqueci.
Tínhamos também uma cadeira muito curiosa: Mercadorias. Era um misto
da Química e da Física dada no 2º. Ciclo dos Liceus; só que o seu
objectivo era facultar-nos a aprendizagem dos rudimentos essenciais da
Química e da Física para compreendermos os processos de fabrico da
pasta de papel, do cimento, da pasta cerâmica, do vidro e de outros
produtos. Não tínhamos livro adoptado; era uma cadeira que visava um
ensino eminentemente prático que nos facilitava a abordagem de
produtos que poderíamos vir a encontrar na vida prática. Quem dava a
cadeira era o célebre Dr. Damas, ágil na transmissão de saberes e no
uso de castigos corporais. Fui seu sebenteiro. Tomava os apontamentos
nas aulas e, no fim de semana, dactilografava a matéria que ia sendo
dada, mercê da utilização da máquina de escrever que me era facultada
pelo Senhor Vieira, dono duma drogaria que ficava na rua Direita.
Na exiguidade do edifício da Misericórdia, os espaços para a
Modelação, onde pontificava o escultor Mário Truta e para a Pintura
Cerâmica, onde mandava o professor Hernâni Moreira da Silva, eram
“invadidos” pelos alunos do Comércio que também eram “tolerados” na
assistência às aulas que não eram dos seus currículos, mas de que eles
gostavam. Os serralheiros e os carpinteiros-marceneiros ocupavam
espaços onde hoje ficam as casas mortuárias
A “pobreza” do espaço sem dúvida que favorecia uma convivência
excepcional, transformando a comunidade escolar numa autêntica
família.
A frequência do nosso 5º Ano já não foi na Misericórdia. Para gáudio
nosso e dos nossos Professores, fomos ocupar as instalações do velho
Liceu de José Estêvão, do lado de lá do largo da Câmara. É que,
entretanto, o edifício novo do Liceu Nacional de Aveiro ficou apto a
receber os seus alunos que para lá foram logo no início do ano
escolar.
Para nós, os da Escola Técnica como os do Liceu nos chamavam, ter
recreio coberto, ter cantina, ter casas de banho para as raparigas e
para os rapazes, ter campo para volei e basquete, ter um amplo ginásio
com palco e tudo, era um luxo. As salas de aula eram amplas. Tínhamos
uma secretaria, uma biblioteca, os professores tinham a sua sala e o
Director Cachim tinha o seu gabinete.
Esta reforma do ensino técnico continha em si mesma uma visão
diferente dos métodos pedagógicos até aí seguidos: todos os alunos
eram sempre submetidos a provas orais. As provas escritas não
dispensavam ninguém das provas orais.
A maior parte dos professores não nos tratava por tu. E, por regra,
éramos chamados pelo nome de família. Era a preparação para uma vida
de responsabilidade. Eram os próprios professores que nos aconselhavam
a prosseguir nos estudos, indicando as formas mais expeditas para
atingirmos o ensino superior nas áreas para que tínhamos revelado mais
apetências.
Chegados ao fim do curso, tivemos uma festa de encerramento com pompa
e circunstância.
A mim coube-me falar em nome de todos os colegas, lá do alto do palco
do ginásio. Como estava nervoso! Como me pesava essa responsabilidade.
A boca ficou-me seca, mas consegui dominar-me e chegar ao fim do texto
que laboriosamente escrevera. No palco estava um senhor que eu não
conhecia. Foi-me sussurrado que era o senhor João Ferreira de Macedo,
Presidente do Grémio do Comércio de Aveiro, e que tinha um prémio
pecuniário para o melhor aluno da Escola. Chamou-me no fim do Director
ter proferido as suas palavras de circunstância. E, do alto do seu
charuto, sem mais rodeios, entregando-me o sobrescrito que iria dar um
jeitão à minha mãe, perguntou-me: “Queres vir trabalhar comigo?” Era
uma sexta-feira, no fim da tarde. “Que sim senhor”, respondi eu em
murmúrio. “Então toma lá estas chaves. São do escritório. É o número
53 do Largo do Rossio. A minha secretária é a última do lado esquerdo.
Tens lá uma rima de correio para ordenar. Algumas respostas são só de
agradecimento. Responde conforme julgares melhor. Segunda-feira verei
o que foste capaz de fazer.”
Os meus professores vieram-me felicitar. Eu já estava empregado, já
tinha trabalho.
Mal cheguei a casa, dei a notícia à minha mãe e entreguei-lhe o
sobrescrito: lá dentro estava um nota novinha de 500$00.
Chorámos de alegria. No dia seguinte, ainda não eram 9 horas da manhã,
lá estava eu a abrir a porta do meu escritório. Era uma vida nova que
se me abria, mercê da minha querida EICA.
Eu até levava vestida uma camisa branca e uma gravata a preceito. O
pulôver azul escuro jogava bem com as únicas calças que eu tinha:
cinzentas.
Gaspar Albino
19 de Novembro de 2014
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