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BOLORES

E.I.C.A. - 01

EICA é o acrónimo pelo qual todos nós, seus alunos, designávamos a Escola Industrial e Comercial de Aveiro, estabelecimento de ensino que eu tive o privilégio de frequentar logo após ter feito o ensino primário de quatro anos.

Estamos mesmo nos finais da década de 1940.

Um dos locais por onde passou a EICA, na Rua Direita, nas décadas de 1930-40, junto ao largo da Câmara, até ao seu estabelecimento definitivo, na década de 1950, no local actual.  ⁄⁄⁄⁄⁄⁄⁄⁄⁄⁄⁄⁄⁄⁄⁄⁄⁄⁄⁄

Esta fase da vida da minha família foi muito complicada. Coincidindo com o meu exame de admissão à EICA, a minha mãe regressara a Aveiro com os meus irmãos mais novos, abandonando Lisboa logo que se recebeu notícia de que o meu pai Manuel sofrera um acidente grave à entrada do porto de Nova Iorque e se encontrava internado no Manhattan State Hospital em situação muito difícil. Tão difícil que perdurou até ao último dos seus dias.

A minha avó Joaninha acolheu-nos a todos sob o seu tecto, já na rua de Ílhavo, paredes meias com a Fonte dos Amores e sob a “vigilância” da Polícia de Viação e Trânsito que Deus haja.

Não sei onde a minha mãe foi buscar forças e ânimo para levar a sua avante. Mas ela queria que os filhos não ficassem só pela escola primária.

Lembro, como se fora hoje, a decisão inabalável da minha mãe de tudo fazer para me matricular na EICA. Contra ventos e marés, vencendo inimagináveis dificuldades materiais e humanas. Mas matricular o filho mais velho na Eica era, para ela, um ponto de honra que tinha de ganhar.

E foi lá, na EICA, que me vi matriculado, com isenção de propinas, a aproveitar as vantagens iniciáticas do segundo ano de uma reforma do ensino técnico-profissional que, compreendo hoje, fora pensado para preparar os jovens que tinham a dita de não se ficar somente pelo ensino primário, frequentando cursos que visavam preparar-nos para entrar na vida activa, isto é, para começar a trabalhar logo após os cinco anos de formação que essa reforma contemplava. Por volta dos quinze anos estaríamos aptos para entrar no mundo trabalho.

Essa recente reforma do ensino técnico-profisssional assentava num esquema bastante simples mas, cumulativamente, muito ambicioso. Os dois primeiros anos, designados como CICLO PREPARATÓRIO, eram comuns a todos os alunos. Era-nos dada uma formação alargada, assente nas seguintes matérias: Português, Matemática, Desenho, Trabalhos Manuais, Educação Moral e Cívica e Educação Física, esta sem conteúdo bem definido pois lhe chamavam Mocidade Portuguesa. Sob esta designação, eram desenvolvidas actividades de diversa índole: ginástica, desportos (futebol, voleibol e basquetebol, campismo, e, de acordo com as apetências dos jovens, a frequência do que, pomposamente, chamávamos “Sala do Artista”. Dizia-se ser obrigatório o uso da farda da Mocidade. Eu, em abono da verdade, nunca tive farda, pois a minha mãe não tinha dinheiro para a comprar. Em acampamentos, usei fardas que me eram emprestadas para o efeito. Mas, quem frequentava a “Sala do Artista”, como eu, não usava nenhuma farda. Lembro, com imensa saudade, o nosso “mestre” dos desenhos e das aguarelas, o saudoso Manuel Bandarra, irmão mais velho dos meus grandes amigos e colegas de AVEIROARTE, Jeremias e Hélder Bandarra. Com ele todos nós aprendemos muito.

O objectivo do CICLO PREPARATÓRIO era, como já disse, aparentemente muito simples, mas, simultaneamente, muito ambicioso. Com ele se procurava fazer o despiste das competências natas dos alunos, o que permitiria a um julgado de professores, avaliando as classificações obtidas pelos alunos nesse Ciclo Preparatório, aconselhar a matrícula posterior num dos cursos profissionalizantes: Geral do Comércio, Electricista, Serralheiro-Mecânico, Carpinteiro-Marceneiro, Pintura-Cerâmica. Esclareça-se que estes cursos eram criados em cada escola consoante as necessidades das indústrias locais; e os seus mestres eram recrutados entre o melhor que cada unidade fabril da zona possuía.

Para o Curso Geral do Comércio, no caso da EICA, vieram professores do Porto, muitos com experiência profissional dentro da sua especialidade. Não posso esquecer o Curso de Formação Feminina, onde as nossas colegas tinham muitas das suas aulas connosco, rapazes. Ao contrário do que se verificava no ensino liceal, na nossa EICA não havia descriminação de género.

O meu Ciclo Preparatório decorreu, todo ele, numa habitação de dois andares, na rua Direita como toda a gente lhe chamava e ainda chama, oficialmente, Rua dos Combatentes da Grande Guerra, e que tinha, no rés-do-chão, ainda que pareça estranho, uma ourivesaria: a “Ourivesaria Ayres”. A entrada para a Escola era por uma viela, nas traseiras, viela essa que também dava acesso aos armazéns gerais da Câmara, que ficavam já na cerca do Museu de Santa Joana. A casa que, tempos idos, foi uma vivenda, dispunha de um amplo terreiro que servia para tudo: para brincarmos, para fazermos ginástica sob as ordens do senhor sargento Redondo. Num dos lados do terreiro, havia uma série de pequenas casas térreas, que terão servido de arrumos da vivenda transformada em escola. Num desses arrumos ficava a cantina; noutro, a “sala de trabalhos manuais”.

O senhor Brito, o senhor João de Sousa, e o senhor Jorge, um dos filhos do Mestre Martins entalhador, eram os contínuos, muito garbosos na sua farda de tecido azul escuro com botões de cobre reluzente. Tratavam-nos como se fossem nossos pais. A cozinha da vivenda-escola, no primeiro andar, também servia de sala de aulas. E o que terá sido a sala de jantar do prédio era a nossa sala de desenho, com umas mesas à guisa de estiradores. Foi assim que eu conheci os melhores professores da minha vida de estudante: a Dra. Cecília Sacramento, minha professora de Português, que me ensinou, logo que eu tinha 10 anitos, a declinar o “rosa/rosae” e a amar a minha língua pátria, que ela afirmava ter a sua origem no Latim; o Dr. Álvaro, o “Índio” como lhe chamávamos; o Dr. Damas que era dono de uma Dona Rosa, régua grossa que ele usava e abusava em injustos castigos corporais por conta das contas da Matemática; o professor Porfírio Abreu, santo homem que muito nos ensinou a amar o desenho, a conjugação das cores… o professor Júlio Sobreiro que não lhe ficava atrás no mesmo múnus. O Padre António de Oliveira misturava os seus ensinamentos de religião e moral com a descrição do argumento do seu próximo filme. Com o seu enorme sentido estético ia procurando encontrar na malta da turma os próximos actores da sua próxima produção, que seria filmada na “selva” onde hoje está o “Forum”.

Era na “cantina”, a receber as senhas dos colegas, que eu ganhava o direito ao meu almoço. A Dona Adélia olhava por todos nós como se fôssemos seus filhos. Era ela, a esposa do contínuo senhor Brito, quem tratava do aprovisionamento de tudo o que era necessário para a manufactura das nossas refeições.

Não posso omitir uma estória que se passou comigo. Terminado o Ciclo Preparatório, quando a minha mãe se preparava para me matricular no Curso Geral do Comércio, foi chamada para falar com o Director de Escola, o Dr. Amadeu Eurípedes Cachim. E foi-lhe dito que eu deveria ser matriculado no curso de Pintura Cerâmica, atendendo à aptidão natural que eu tinha revelado na cadeira de Desenho, durante a frequência do Ciclo Preparatório. Aí a minha mãe foi peremptória. Que não! Eu tinha obtido também iguais classificações a Português e a Matemática. Numa situação de igualdade, e no seu entender, cabia a ela a decisão final. E foi assim que eu fui parar ao Curso Geral do Comércio. A minha mãe disse, frontalmente, ao Director, que queria que eu usasse colarinho branco, quando eu fosse maior.

Gaspar Albino
19 de Novembro de 2014

 

20-11-2014