A casa que eu vou procurar descrever foi a casa dos meus avós
paternos: a minha avó Guilhermina e o meu avô ti Luís Manco. Existiu
na rua de S. Roque. Hoje, em 2017, está substituída por uma casa de
traça contemporânea, que nada tem a ver com aqueloutra que foi dos
meus avós.
Essa, poderia dizer que era semelhante a muitas casas desse tempo, já
lá vão uns setenta anos. Poucas restarão hoje. Era uma casa típica
dessa época, de pessoas que viviam, principalmente, da Ria, do Mar, da
pesca, das marinhas de sal.
Eu costumava visitar os meus avós paternos, aos domingos. Ia sempre de
manhã, antes do almoço. Gostava muito de ir lá. Era um ambiente
totalmente diferente daquele que eu tinha em casa da minha avó
materna, a avó Joaninha, com quem fui educado.
Mas vamos à casa da Beira-mar. Era uma casinha térrea, com telhado de
uma só água. Entrava-se pela porta, sempre na tramela, do pequeno aido
de terra batida, coberta de junco verdinho. Ao fundo, não mais de
quatro metros de largo, havia um pequeno coberto, que garantia o
abrigo para quem se servia da comua. Esta era a sanita, feita de
madeira, com um buraco na tampa. Usada por toda a gente, tudo escorria
para a terra coberta de junco. A verdade é que nunca me cheirou mal.
Um dia, a minha curiosidade quanto ao entulho (até as vísceras de
peixe iam lá parar) foi satisfeita. O meu avô Luís explicou-me que,
todos os fins de semana, do campo, vinham carros de bois, com dornas,
para onde eram recolhidos os estrumes que serviam para adubar as
terras. Higiene perfeita, como se vê… E mais: tudo era aproveitado.
Do aido tínhamos acesso à cozinha, essa, sim, com uma porta com
fechadura e que era verdadeiramente o coração da casa. Vejamos… Posso
dizer que a cozinha era o reino do meu avô Luís. Caldeiradas e sopas
de peixe era tudo com ele. Sentava-se num mocho num cantinho da
lareira, ligeiramente mais elevada que o resto do chão, todo ele de
terra batida, coberto também por junco, e lá cuidava ele de preparar o
brasido. A panela de três pés, sempre com água que ele nunca deixava
arrefecer, já estava pronta para se chegar ao calor. Era dentro da
panela de três pés que ele colocava uma outra que cabia na sua
embocadura. E era nesta que ele fazia a caldeirada e a sopa de peixe.
Tudo em banho-maria, o que permitia um apuro de sabores
verdadeiramente excepcional.
O ritual do almoço, que na Beira-mar se chamava jantar, era
verdadeiramente um espectáculo: ver o meu avô Luís retirar da panela
as batatas cortadas às rodelas com um enorme cuidado para que não se
partissem; depois as cebolas; depois o peixe, o rei da comida, tudo
muito bem arranjado na bacia de esmalte branco que a minha avó
Guilhermina punha em cima da mesa baixinha, não sem antes ter colocado
sobre ela uma toalha de oleado.
À volta da mesa, quatro mochos: um para a avó, outro para o avô,
outro para o meu tio Luís, irmão de meu pai, e outro para mim. No meio
dos dois avós já estava um garrafão empalhado, com vinho tinto. Era
para os avós partilharem; no lugar do meu tio, um copo para pôr o
vinho; outro copo para eu beber água. Todos comiam da bacia, retirando
com garfos o quinhão que lhes cabia. Cheirava que era um regalo… E
sabia ainda melhor!
Entre a porta da cozinha e a lareira, uma janela que dava para o aido
e iluminava o espaço. Na parede fronteira havia um escadinha que
levava até ao tecto da cozinha. E, neste esconso, estava uma cama que
era utilizada pelo meu avô sempre que ele entendia que a maré estava
de feição quando, de madrugada, ele ia, de caçadeira, até ao esteiro
de Esgueira, lançar as artes. Algumas vezes fui com ele, na bateira
maneirinha. Para mim, que vivia na Glória, era sempre uma aventura.
Onde o meu avô guardava as artes de pesca era num sobrado que servia
também de tecto às outras divisões da casa e que se prolongava para
além da sua cama. Bons velhos tempos que, quando os recupero, muito me
sensibilizam.
Voltemos à casa de meus avós. Logo à saída da cozinha, entrávamos numa
zona assoalhada: um corredor que terminava na sala do Senhor, mas que,
antes, dava saída, primeiro, para uma saleta onde estava uma mesa com
abas e um armário onde a minha avó guardava a louça; depois, também,
para um quarto de dormir, que era o quarto dos meus avós. A sala do
Senhor era o compartimento mais recatado da casa. Normalmente na
penumbra, pois a sua janela tinha sempre as suas portas semi-cerradas.
Esta sala tinha uma porta que, praticamente, só se abria pela visita
pascal. Em frente à porta, uma cómoda. No seu centro, um crucifixo que
parecia ganhar vida por conta de uma lamparina de azeite que minha avó
mantinha sempre acesa.
Esta foi a casinha dos meus avós paternos. Como tenho saudades desses
tempos…
Gaspar Albino
Março - 2017 |