Como todo o cagaréu que se preza, o meu primo Aguinaldo escolheu a
Capela de São Gonçalinho como o lugar santo de onde quis partir para o
cemitério. No dia do seu funeral, a Capelinha esbarrondava de povo, do
seu povo da Beira-Mar, por certo, mais todo um mar de gente que veio
de fora prestar a última homenagem ao Amigo Aguinaldo. Poucos haverá,
como ele foi capaz, para construir e alimentar amizades. Por muitas
faces vi correr lágrimas de saudade no largo fronteiro da Capela.
Com o meu primo Aguinaldo já doente, ainda consegui ter com ele longa
conversa que de há muito estava prometida. É que o Aguinaldo sempre
respirou os ares da Beira-Mar profunda e, para mim, constituia alfobre
de excelente informação sobre a vida do bairro da família do meu pai
Manuel.
E foi então assim que, certo dia, dei comigo sentado à mesa de um
pequeno café do meu bairro, a falar com o meu primo Aguinaldo Melo,
neto do saudoso marnoto Roque de Melo Albino. Será bom lembrar que
Aguinaldo Melo foi distinto oficial náutico, distinto funcionário
bancário quando decidiu abandonar as lides do mar, impecável agente
transitário e, na sua juventude, jogador de futebol de primeira água,
no Beira-Mar, no Belenenses e na Académica. Ainda hoje é lembrado por
ter sido o maior marcador de golos na história do nosso Beira-Mar,
clube do seu coração que também soube servir como dirigente impoluto.
Mas o que eu mesmo queria era ouvi-lo falar da sua Beira-Mar…
E, sem darmos por ela, lá começou o desfiar de recordações. É que o
Aguinaldo viveu mesmo no “centro cívico” do canal de São Roque: na
loja da “Rosa do Polícia”, esta senhora Rosa mãe do Aguinaldo, casada
com Carlos de Melo Albino, mais conhecido por Carlos Polícia, o qual
gozava de grande fama como excepcional apanhador de enguias à mão ou à
“unha”, como se dizia na Beira-Mar. “Unheiro” como ele não havia. A
sua loja era o ponto de encontro dos marnotos e de quem vivia da pesca
do “rio”. “Rio”, para a gente da Beira-Mar, era a Ria. E o canal de
São Roque era a “praia”. A loja da ”Rosa do Polícia” era o
supermercado de então, onde a maior parte do povo ia comprar “fiado”,
para “assentar no livro”. No tempo da segunda guerra mundial, quase
tudo o que era de comer estava racionado. As famílias recebiam dos
organismos do Estado “senhas” com as quais tinham acesso aos produtos
essenciais. Mesmo com “senhas”, a carência era tão grande que se
formavam “bichas” à porta das lojas, pois depressa as mercadorias se
esgotavam. E, quando isso acontecia, lá se tinha de comprar na
“candonga”, sonegadamente e por preços exorbitantes. Lembro-me de que
o meu pai, marítimo, por essas alturas, foi mobilizado para a Marinha
de Guerra e, já casado, prestou “serviço” em Lisboa. Quando raramente
vinha a Aveiro, trazia sempre artigos de mercearia, cuja compra, cá,
era difícil, mas que ele adquiria na messe da Marinha.
Mesmo ao lado da loja da “Rosa do Polícia” ficava a loja da “Lurdes de
Pardilhó, mãe do Amadeu, mais taberna do que mercearia e que também
vendia tecidos.
Na rua do Norte havia ainda a loja da “Glória do Russo”, da mãe do
Manuel Neto. Era uma taberna que servia refeições ligeiras. E na rua
de D. Jorge de Lencastre, na “Ferreirinha”, vendia-se vinho ao copo e
artigos de retrosaria. Todas elas sem esquecer a do “João Baunites”, o
Sarrazola, pai dos meus bons amigos Liliana e Zacarias; e a pequenina
taberna da “Maria da Venda”, na rua do Vento.
Ainda nesta rua do Vento houve também a loja do “Joaquim Frio” (que
foi de Ramiro Rodrigues Terrível) e a loja do “Vareiro” (do Libânio,
que veio de Ovar), esta que se situava próximo da Capela de São
Bartolomeu.
Eram estes os pontos de encontro das gentes da Beira-Mar, onde se
bebia um copo, onde se jogava às cartas, onde se discutia a cidade,
onde se celebravam os negócios do sal, do peixe e do junco.
Para o pão, havia a “Padaria do Zé”, na esquina da rua do Vento, e a
“Padaria do Jaime do Forno”, numa paralela à rua de D. Jorge de
Lencastre. Mas quem vendia mais pão em toda a Beira-Mar era a “Maria
de Aradas”, casada com o Zé Padeiro, irmão do João Sacristão que, para
além de o ser, era quem fazia a maior parte das matanças dos porcos
que quase todas as famílias criavam em currais do lado norte do canal
de São Roque. Os clientes deixavam as sacas na porta e a “Maria de
Aradas” já sabia, pelo uso, quanto pão cada um queria. Segundo me
disse o meu primo Aguinaldo, ainda hoje o seu pão é distribuído, porta
a porta, lá no Bairro.
O chefe Vidal, o da Polícia de Segurança Pública de então, sabia muito
bem que não valia a pena mandar guardas para a Beira-Mar. Nem eles
eram bem vistos, com farda de serviço, quando, por engano, se atreviam
a percorrer as ruas do Bairro. As portas ficavam sempre no trinco, com
as chaves do lado de fora, só para o que desse e viesse. Não porque
houvesse medo de roubos. Isso não, pois que na Beira-Mar todos se
conheciam; não havia gente má no seio dos cagaréus, proclamavam eles
aos quatro ventos. Este era, verdadeiramente, o conceito em que todos
se tinham. Bastava que alguém deixasse de passar à hora habitual pelos
lugares do seu costume para que os vizinhos se apressurassem a saber o
que se passava de anormal e se era precisa ajuda. Alguém doente e,
certo e sabido, logo aparecia um caldo de galinha ou um chazinho a
preceito.
O filão do Aguinaldo ainda tem muito para explorar. É o que faremos…
Gaspar Albino
8 de Junho de 2014
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