A loja da “Rosa do Polícia” dava para o canal de São Roque e
ficava quase em frente da ponte dos Carcavelos, a antiga, de pau, não
esta que lá está agora, de cimento, e que foi mandada fazer, ao que me
dizem, pelo saudoso Dr. Álvaro Sampaio. Era um lugar estratégico,
muito bem colocado para o negócio, pois era por ali, principalmente
por ali, que se juntava a gente grada da marnotagem, dos mercantéis,
dos negociantes de peixe, dos pescadores do rio, e dos marítimos que
estavam em terra, nos intervalos das viagens da marinha de comércio ou
das safras do bacalhau, do Cabo Branco ou da pesca costeira. Era por
ali que estavam varadas as caçadeiras e as bateiras, mais a jeito de
quem tinha de ir para as marinhas, para a pesca ou para o junco,
principalmente à força de remos. Foi da cepa destes homens possantes,
tisnados pelo sol, muitas vezes coado de brumas, que saíram os
remadores olímpicos do nosso Galitos. O que lhes faltava em apuro de
técnica no manuseio dos remos dos seus barcos esguios, sobrava na
força que destilava dos seus músculos construídos na dura faina da ria
ou das marinhas de sal.
Pelo lado norte da ponte de Carcavelos, e depois de se atravessar uma
pontinha, também de madeira, um tanto tremeliques, por cima do esteiro
de Sá que desembocava no canal de S. Roque, encontrava-se o estaleiro
do Tobias, onde se “amanhavam” os barcos da ria: as caçadeiras
maneirinhas, as bateiras para os vários fins, da pesca até ao
transporte de junco, os saleiros e os mercantéis. Desde a construção
até à reparação periódica, com os competentes serviços de calafeto,
tudo lá se fazia. Moliceiros, poucos, que esses eram arranjados lá
mais para norte, para os estaleiros da Murtosa.
“A primeira casa dos meus pais foi um chalé, assim lhe chamavam, que
ficava ao lado do estaleiro do Tobias”, recordou o meu primo Aguinaldo
que não resistiu a desfiar os nomes que lhe vinham à memória dos seus
colegas da Escola do Adro, que já foi sede da extinta Junta da
Freguesia da Vera Cruz. Os remadores do Galitos: o Felisberto, o João
Ventura, o Manuel “cabo de ordens”, o Piaca, o Albino, todos marnotos,
o João Sousa, que foi contínuo da Escola Industrial e Comercial de
Aveiro, extinta EICA, que tantas saudades nos deixou, o João e o Zé
Simões, o Carlos, o João “Valjam”, o Carlos e o João “Caroço”, o
Instrumento, o Jaime “Camões”, o Américo Moreira, o Raminhos, o
Evangelista, o António Almeida, o pintor e ceramista Zé Augusto, o
Mário Gamelas, o António Peixinho, o pintor Artur Fino (agora a expor
no edifício da velha Capitania), o Manuel Neto, filho da Glória do
Russo, o Jaime da Papelaria Avenida que já lá vai, o Mieiro, o Dr.
Assis e o Dr. José Domingos, todos eles que passaram pelas mãos dos
saudosos professores Dona Leopoldina Melo e Remígio.
O Dr. Álvaro Sampaio, que tinha marinhas amanhadas pelo “ti” Luís
Maçarico, pai do Zé Maçarico, já falecido, e do artista plástico Mário
Júlio, o Dr. Lourenço Peixinho, o Dr. Cunha, o Dr. Alberto Souto, o
“ti” Domingos da Maia, conhecido por “o milionário” e demais
proprietários do salgado aveirense garantiam grande parte do emprego
da mão-de-obra ribeirinha nos trabalhos do amanho e reparação das
marinhas de sal.
Por altura da festa da Senhora das Febres, os mordomos organizavam,
sempre, as tradicionais corridas de bateiras, com tripulações
masculinas e femininas. Ficaram famosas as compitas entre as equipas
que corriam pela loja da “Rosa do Polícia” e pela da “Lurdes de
Pardilhó” e que tinham como prémio para a vencedora uma taça de
madeira que era feita pelo Sr. Tobias do estaleiro. Foi numa dessas
corridas que a primitiva ponte de Carcavelos, a de madeira, virou e
veio abaixo, com o peso das pessoas que nela estavam a assistir às
corridas. Já lá vão uns sessenta anos bem contados! Mas ainda hoje é
de morrer a rir quando lembro o “ti” João Moreira pintor, que também
estava lá em cima com o meu primo Aguinaldo, a contar como tudo
aconteceu: as pessoas estavam do lado da ponte virado para a Mina,
para nascente; quando as bateiras passaram por debaixo da ponte,
viraram-se, em bloco e com todo o seu peso, para poente, para
continuar a ver a corrida. A ponte não aguentou a brusquidão do
movimento e o povo veio parar à maré.
Diz o “ti” João que nunca tinha visto tanta perna de mulher ao léu a
sair de tanto saiote aberto a boiar na água. E não usavam calcinhas…
Por certo que, no cais, sentado num “mocho” emprestado pela loja da
“Rosa do Polícia”, lá estava, alheio ao burburinho, o “ti” Modesto,
ainda meu parente, agarrado à sua viola que tocava que era uma
maravilha. Tempos que já lá vão…
Gaspar Albino
6 de Julho de 2014
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