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BOLORES

Pintar o mar em tons de terra

Tínhamos combinado uma hora para nos encontrarmos e depois seguirmos até à Gafanha de’Aquém, paredes meias com a Gafanha da Boa Vista.

Já não me lembrava do local da casa de Joaquim Filipe onde ele tem também o seu atelier. Mas, quando lá cheguei, veio-me à memória a experiência tão rica da primeira visita. È que toda a ambiência, já por si, constitui um espaço mágico, totalmente criado pelo artista, como invólucro fundamental para reter a luz, ou a sua ausência, tudo misturando com os cheiros que ressumam da ria, por nascente, ali mesmo a dois passos, e as nortadas, por vezes fortes e de canto sibilino, verdadeiramente purificadoras.

Ele queria-me mostrar o conjunto dos trabalhos que iriam constar duma exposição que foi denominada, tão simplesmente, FUNDOS.

Enquanto subíamos as escadas que levavam ao salão dos cavaletes, das tintas e das telas onde o artista vai deixando os seus sonhos, foi-me mostrando outros registos, de outros tempos, nos quais Joaquim Filipe foi agarrando na tela memórias do seu percurso.

Já em Junho de 1997, quando da minha primeira visita a sua casa para colher elementos  que me permitiram a minha primeira abordagem escrita à sua obra,  me ficara a ideia de que tudo o que saía das suas mãos era de uma enorme coerência artística, com uma evidente identidade técnico-formal.

Em todos os seus trabalhos - aqueles que fui vendo pelo caminho e os que me foram mostrados no atelier e que viriam posteriormente a ser expostos - registei sempre uma forte manifestação do desenho, servindo-se o artista  da cor pintada, quase sempre monocrómica, para robustecer esse mesmo desenho ou garantir-lhe enquadramento.

Recuperando o que, em tempos, o saudoso professor Joaquim Matos Chaves escreveu sobre Joaquim Filipe, o que se nota em todos os trabalhos do nosso artista é “o extremo cuidado posto no traçar e no colorir. Um cuidado que denota o acusado sentido do prazer de fazer e de que é consequência uma textualização imagética onde o acabamento é um valor nuclear”.

Mas afastemo-nos da abordagem técnico-formal da obra exposta e falemos do seu conteúdo, do conteúdo destes quadros em que ondas do mar perdem o seu azul para ganhar tons de terra que o “vieux-chêne” lhes propicia.

Nestes quadros há uma história de menino-homem que viveu com um pai casado com a vida marinheira; há a história dos carinhos que só se sentem e se vislumbram através de vigias de bordo que os sonhos acalentam; há a presença-ausência do pai que o mar lhe rouba e só lho devolve intermitentemente.

Tudo isto nos aparece nos quadros de Joaquim Filipe em vinhetas desenhadas a grafite encastoadas na turbulência de ondas que levaram o castanho da terra para o emaranhado dos seus movimentos.

Mais do que histórias vividas, os seus trabalhos são as histórias de uma vida que viveu de afastamentos.

Os quadros de Joaquim Filipe são, quase todos, e ainda hoje,  o regresso anelado ao cais dos afectos que a vida do mar, intermitentemente, lhe impôs, como se de orfandade se tratasse.

Isso vê-se! Isso sente-se. Isto vê-se e sente-se nestes “fundos” de memórias que marcaram indelevelmente a vida do artista e que ele de forma admirável continua a plasmar nos seus trabalhos. Ainda agora tal se verifica no que expôs na Mostra da Primavera promovida por AVEIROARTE.

Gaspar Albino
5 de Junho de 2014

 

05-06-2014