Separando a Fonte dos Amores do quintal onde se situava a casa dos
pais do meu bom amigo José Júlio, até há algum tempo um dos gerentes
da Casa Espanhola, da Rua Direita, que, entretanto fechou: o senhor
João Gualter Dias, o sapateiro do sítio, casado com a senhora Maria
Lourenço, uma das três lavadeiras profissionais dos tanques anexos.
Foram estes os pais de prole numerosa: do Amílcar, do Jonas, da
Violeta, da Verídica, do António e, claro, do José Júlio. Perfazendo o
outro lado do recinto, para sul, ficava a casa da senhora Constância,
mãe da senhora Armanda Caçola e da senhora Carolina, esta casada que
foi com o senhor Pinheiro, barbeiro do Seminário e de quase toda a
gente do bairro.
A dona Carolina, mãe do meu amigo Fernando Pinheiro, também era
lavadeira profissional nos tanques da Fonte dos Amores, autêntica
lavandaria de então desta cidade de Aveiro. Completando o trio das
profissionais, havia ainda a senhora Maria dos Lençóis, sogra do ti
Damásio e mãe da Maria Helena e da Marília. Tudo isto sem esquecer o
ti Norberto da Concertina, pai do músico José Vieira Rodrigues, meu
velho colega da escola primária, que toda a gente conhecia e continua,
felizmente, a conhecer por Fagote. E o senhor Neiva, pai da Odete, do
Carlos e da Joaninha, já falecidos, e da Mininha e da Marília que se
veio, posteriormente, a casar com o grande artista aveirense, o
barrista e pintor cerâmico Zé Augusto, que há poucos anos nos deixou.
Vizinha da minha avó Joaninha, vivia, paredes-meias, a senhora
Blandina, casada com o primeiro-sargento Agenor. Do lado de lá da
Travessa da Fonte dos Amores, ficava a casa da senhora Miquinhas do
Bagão, este também sargento no Regimento de Infantaria 10, ambos pais
dos meus amigos Amílcar e Carlos Bagão. E, mesmo ao lado, morava a
senhora Amandina, casada com o senhor Tobias, que, em tempos, andara
ao mar, no bacalhau, à semelhança do meu pai Manuel.
A relva onde se corava a roupa de meio Aveiro era também o nosso
recreio. Era lá que se jogava “à bandeira”, à “macaca”, à “mona” e ao
“pião”, à “malha”, ao “berlinde”, à “uma-lá-uma”, às escondidas, aos
“índios e cowboys”, atirando flechas de varetas de guarda-chuva, onde
se corria ao “arco” com rodas de bicicleta, sem aros, que se compravam
no senhor Raul das Cinco Bicas e com carros feitos de caixotes de
madeira. Era lá que se trocavam os “bichos” e os “jogadores” da
colecção. Era lá que se combinavam as “penhoras”. Era lá que, de vez
em quando, se rachava uma cabeça. Era lá que surgiam os motivos fortes
para largarmos à desfilada até às nossas casas, lavados em lágrimas
que de pronto ficavam secas por conta de adequada reprimenda. Era para
lá que fugíamos quando éramos apanhados a fazer alguma das nossas pelo
fiscal da Câmara, o senhor Evaristo. E continuava a ser o nosso
refúgio sempre que o senhor Adriano, guarda do Parque, nos surpreendia
a cortar uma cana-da-índia para fazer uma “pesca” para o Poço de
Santiago. Este percurso, que em si mesmo já era uma aventura,
facultava-nos, nas alturas próprias do ano, a apanha das folhas de
amoreira para os bichos-da-seda, que criávamos em caixas de cartão que
íamos pedir às sapatarias.
Era lá que nos juntávamos, quando íamos buscar um jarro de água, ou
quando íamos buscar leite à vacaria do doutor Pompeu Cardoso, na Rua
das Pombas, e que o senhor Carlos, responsável pelos animais, (e que
tinha tanto de bom como de alto e forte), nos dava a provar, fazendo
com que o leite saísse de jacto, quente, direitinho do úbere da vaca
para a nossa boca, aberta a preceito. Era por lá que eu parava um
pouco a caminho da casa do senhor Vieira, grande lavrador que vivia já
quase fora de portas, no meio dos campos de Santiago, numa linda
vivenda, onde vim a descobrir, escondido num armário da roupa, um
violão saído das mãos de artista do meu avô materno, António Gaspar,
melómano amigo do saudoso fundador das Faianças dos Santos Mártires e
da Fonte Nova, o senhor João Aleluia que, para além de brilhante
empreendedor industrial, foi talentoso pintor cerâmico.
Basta só a memória que ainda muitos da minha geração conservam da
FONTE DOS AMORES, para lembrar a quem manda na minha Aveiro, que esta
fonte dos meus amores merece melhor sorte. Como está, atirada para um
canto, envergonhada, é que não pode nem deve continuar.
Gaspar Albino
27 de Fevereiro de 2014
*
Este é
a adaptação para o jornal em 2014 de «Quase um Conto de Natal» escrito
para o boletim "Alternativas", Dez. - Jan. de 2005. Para o ver na
íntegra, com as imagens que o ilustraram,
clique aqui
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