Muitas vezes pensei
denominar por FONTE DOS MEUS AMORES esta série de “bolores” que tenho
vindo a publicar e que não são mais do que escritos sobre coisas,
pessoas e factos que se foram cruzando com a minha vida.
Eu explico: com
efeito, foi ali, no sítio onde já lá não está, que eu passei parte da
minha meninice e da minha adolescência; exactamente na Fonte dos
Amores, no lado esquerdo do princípio da Rua de Ílhavo, actualmente
Rua do doutor Mário Sacramento. Uma pequena fonte que, hoje, se
esconde no final da Avenida de Araújo e Silva, quase que envergonhada
do seu passado, no começo de um caminho, verdadeiro esconso mal
amanhado, que dá acesso às traseiras de uma série de vivendas que dão
frente para a rua das Pombas. Essa fonte envergonhada que hoje lá está
escondida é o resquício da que presidia ao largo verdejante onde ela,
a fonte, foi rainha, não só do espaço a que dava o nome, mas de todos
nós, os seus frequentadores.
Desses tempos, já lá
vão quase sete décadas bem medidas, resta parte das casinhas, quase
todas térreas, da que foi a viela da Fonte dos Amores. A placa
toponímica ainda lá está, na casa da esquina da travessa do mesmo
nome. Eu morei no primeiro andar do número cinquenta e três, um prédio
que foi destruído há já bastantes anos, certamente por interesses
imobiliários. No vazio do que foi um pequeno quarteirão de casas de
habitação e de dois pequenos estabelecimentos – uma oficina de
reparação de bicicletas, a do senhor Adriano, que ficava mesmo por
debaixo da casa da minha avó Joaninha, a senhora Joaninha do Gaspar,
como lhe chamava tão carinhosamente a vizinhança; e outro, uma
mercearia/taberna, separada esta daquela só por precaríssima vedação
de madeira para satisfazer exigência legal então em vigor, e onde todo
o bairro se abastecia. O prédio que albergava este último
estabelecimento foi destruído um pouco mais tarde. No vértice do
triângulo que era definido pelo princípio da Rua de Ílhavo e pelo fim
da Avenida Araújo e Silva, ficava o bonito posto da Polícia de Viação
e Trânsito, com o seu amarelo-torrado a presidir a um jardim que os
seus agentes, sempre garbosamente fardados, sabiam manter com um
carinho inexcedível.
Nos meus seis anitos
de vida, que os tinha quando para ali fui morar, ido da casa da Rua
Gustavo Ferreira Pinto Basto, ainda não havia a enorme balança,
construída mais tarde, e onde eram pesadas as camionetas que os
agentes desconfiavam exceder a carga autorizada por lei. Nunca esqueci
as caras transidas de medo dos condutores dos veículos, quando eram
mandados avançar para cima do grande estrado de ferro da balança. Os
miúdos do bairro, eu também, eram preciosos auxiliares dos polícias
nas manobras de medição das alturas das cargas, que também tinham
limites impostos por lei. Quando foi construída a báscula instalada no
vazio de enorme buraco, foi aberta uma curta estrada a ligar a Rua de
Ílhavo à Avenida Araújo e Silva, deixando bem visível o grande portão
de ferro do quintal do senhor Zé Pinto da Farmácia. A Rua de Ílhavo já
tinha um piso consistente; mas ao da Avenida bastava uma pequena
chuvada para o converter num mar de lama. Tinha sido aberta não há
muito tempo, pois que dos passeios, que ainda hoje lá estão, só
existia o esboço com uns paus especados ao alto, aos quais se
arrimavam os raquíticos arbustos que os anos transformaram em árvores.
Quem ia do Jardim do Infante D. Pedro, do lado direito, era quase tudo
limitado pelo alto muro da quinta do Genrinho. Do lado oposto, eram
vários os muros e de diferentes alturas, correspondendo cada naco ao
seu quintal.
Quando íamos da
Escola Primária da Glória, (não esta que lá está agora mas as outras,
a masculina com o edifício da Primeira República e a outra, a das
meninas, mais envergonhada na sua construção, quase pespegada à Igreja
das Carmelitas), sempre em bando, antes mesmo de irmos cada um para
sua casa, tínhamos paragem obrigatória na relva do largo da Fonte dos
Amores. Descalços, pois que os sapatos, alpergatas ou botas já vinham
ao ombro pelas atacas, lá brincávamos o tempo justo para que ninguém
estranhasse demoras que só viriam a comprometer o outro recreio, esse
mais longo, depois de feitas as obrigações de casa. Aquele espaço, em
parte hoje ocupado pelas traseiras do edifício onde actualmente se
situa o restaurante “Ceboleiro”, era verdadeiramente um espaço mágico,
o autêntico centro das nossas vidas de crianças. Da Rua de Ílhavo
acedíamos à relva de corar a roupa por uns degraus que interceptavam o
muro, que definia o lado poente do rectângulo. Pelo sul, havia o
riacho que vinha, pelos quintais fora, dos lados do cemitério e
seguia, por debaixo da Rua de Ílhavo, até à quinta do Genrinho,
sendo-nos garantido, de ciência certa, pelos adultos do bairro que ele
ia, por ínvios caminhos, desaguar ao lago do Parque. Do lado nascente,
lá estava a nossa Fonte dos Amores, encostada ao muro encimado de
ameias e com as armas do Duque de Aveiro nele embutidas.
Sinceramente
considero que é um verdadeiro insulto à nossa memória colectiva o
abandono a que esta fonte tão rica de história tem sido votada: sem
água e transformada num monturo de lixo. Simplesmente, uma vergonha.
Não haverá uma alma
caridosa que a trate com algum carinho?
Espero bem que sim.
Gaspar Albino
15 de Março de 2014
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