Tudo o que vou
contar já se passou há uns anos valentes. A minha mulher, a Claudette,
ainda gozava de boa saúde
A minha filha
tinha-nos pedido para ficarmos com as suas crianças pois tinha que se
deslocar a Lisboa com o marido. Já não era a primeira vez que tal
acontecia. Mas, para mim e para a minha Claudette, foi sempre uma
alegria poder desfrutar da sua presença, com tudo o que isso
implicava: uma proximidade sem interferências de qualquer espécie,
permitindo um aumentar das permanentes descobertas que os nossos netos
sempre nos facultaram.
Chegada a noite, não
sei bem como, dei comigo a ir dormir numa cama com o meu neto João,
enquanto a minha mulher se ia acomodar noutra com a minha neta Ana. O
tamanho deles já não permitia que dormíssemos todos juntos como até há
não muito tempo tinha sido possível.
Foi uma noite
memorável, daquelas que ficam para sempre.
O João dormiu de um
fôlego. Não estranhou nada; parecia um anjo; parecia o meu menino
Jesus. Aí pelas oito da manhã abriu os olhos, deu comigo a seu lado e
sorriu. Aconcheguei-o e perguntei-lhe se tinha dormido bem, se estava
a gostar da cama quentinha. Respondeu-me com um aceno afirmativo. Eu
já o estava a ver, aí desde as seis da manhã, a apreciar o seu sossego
e a fazer aquilo que faço todos os dias a partir do momento em que
acordo: uma revisão da véspera, um ordenar de ideias para o dia que
começa e, depois, o deixar que do passado vão saltando reminiscências,
vislumbres mais ou menos definidos daquilo que vivi, do que tenho
vivido.
Ao olhar para o meu
neto, irresistivelmente me veio à ideia a primeira noite, das poucas,
em que dormi com o meu avô “ti Luís Manco”. Tinha-me desafiado para ir
com ele, lá para o esteiro de Esgueira, pescar à chincha. Teríamos de
partir logo de madrugada, por volta das cinco horas. Na minha meninice
dos oito anos, aceitei, verdadeiramente encantado, o desafio que me
fora lançado. Ao fim da tarde da véspera, despedi-me da minha avó
materna, Joaninha, com quem vivia diariamente, e lá fui eu de longada
até à Beira-Mar, para casa dos meus avós paternos. A porta do pequeno
aido, como sempre, estava no trinco. Mal dera dois passos à direita e
já estava dentro da cozinha de chão batido, coberto de junco. Só por o
calcar, o seu cheiro saltava com uma frescura intensa, extremamente
agradável. O meu avô Luís já me esperava, sentado no seu banquito a
que ele sempre chamava de mocho, na lareira rasa. No brasido, a panela
preta de ferro fundido, de três pés, continha uma outra, onde, em
lento banho-maria, descobri que estava a fazer mais uma das suas
maravilhosas caldeiradas de peixe. A minha avó Guilhermina estava a
acabar de pôr os talheres e os copos na mesa baixa à volta da qual já
estavam colocados mais três mochos. Cumprimentei-os, como sempre fora
educado a fazer, com um beijo. Como sempre, também, senti que estava a
ser recebido com incontida alegria. Aqueles meus avós gostavam mesmo
muito de mim, apesar de eu não viver sempre com eles.
Em casa da minha avó
Joaninha, viúva e matriarca de família larga, comia-se numa sala de
jantar, com uma mesa e cadeiras normais, sobre um soalho de sã madeira
de pinho, sempre muito lavado com sabão amarelo. Por essa altura
morávamos num primeiro andar da então chamada rua de Ílhavo, mesmo em
frente ao desaparecido posto da Polícia de Viação e Trânsito.
Ir comer a casa dos
meus avós paternos, para mim era verdadeiramente uma festa. Tudo era
diferente. Era a nossa beira-mar no seu mais profundo, na rua que
levava à capelinha da Nossa Senhora das Febres, paralela ao canal de
São Roque. Uma casinha térrea, onde só a sala do Senhor e os quartos
tinham soalho. O resto era tudo de terra batida coberta de junco. Vi a
minha avó Guilhermina levar junto do meu avô uma travessa redonda, de
esmalte azulado, a que chamava bacia. E foi para ela que o meu avô foi
tirando da panela, com enorme cuidado, as peças de peixe e as rodelas
de batata à mistura com quartos de cebola. Disse-me que tinha
cozinhado tudo com um pouco de unto de pão. Por cima da caldeirada,
deitou um fio de azeite e um pouco de vinagre de vinho branco. Ainda
hoje tenho saudades do cheirinho maravilhoso que se desprendia da
comida. A minha avó trouxe para a mesinha a bacia. Só então percebi
porque não tínhamos pratos. Era directamente da bacia que cada um de
nós ia tirando a sua garfada. Sempre que se repetiu, pela minha vida
fora, este jeito de comer, senti que se conjugava de forma admirável a
palavra comungar. Quer a minha avó, quer o meu avô iam levando à boca,
alternadamente, o pequenito garrafão do vinho tinto que repousava
sobre o junco, no meio dos dois. A broa era uma delícia, acabada de
sair do forno da padaria próxima do Zé Nhã. A seguir ao conduto, a
minha avó foi à panela que continuava sobre o brasido para servir umas
malgas da sopa da caldeirada. Com este remate de eleição, o aconchego
das nossas barrigas ficou perfeito. Os meus avós falaram ainda um
pouco, mas, a breve trecho, a minha avó despediu-se de nós e foi para
o seu quarto. Eu fiquei com o meu avô até que ele se agarrou à bengala
e se dirigiu para uma cama de casal que havia numa sobreloja, do lado
da lareira, para a qual se subia desde o chão da cozinha por uma
estreita escada servida de um tosco corrimão de madeira. Ele tinha-me
dito para esperar um pouco enquanto se preparava para se deitar.
Chamou-me logo de seguida. Subi e fui dar com ele, com uma camisa
vestida que lhe chegava até aos pés (parecida com as da minha mãe…) e
um barrete enfiado na cabeça. Nunca tinha visto nada assim! Vesti o
meu pijama e o meu avô disse-me para me deitar do lado de dentro da
cama, pois que, assim, dormiria mais tranquilo. Deu-me um beijo na
cara, afagou-me o cabelo e desejou-me um bom sono. Tudo era tão novo
para mim que até estava cansado. Contudo ainda me ficou nos ouvidos o
dizer-me que não poderíamos perder a maré e, por isso, tínhamos que
dormir depressa.
Tudo isto me foi
perpassando pela cabeça e ainda o meu neto João dormia a meu lado.
Quando ele acordou, não resisti a contar-lhe estes momentos que eu
vivera há quase setenta anos. Ele ouviu tudo com um silêncio
religioso, com uma enorme atenção. No fim, a rir-se, com os seus olhos
matreiros, disse-me:
– Avô, ainda te hei-de ver de camisa e barrete enfiados como o teu avô
Luís Manco.
Gaspar Albino
24 de Fevereiro de 2014A
*
Este é
um excerto do texto
escrito para o boletim "Alternativas", de Dez. - Jan. de 2005.
Para o ver na íntegra, clique aqui
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