Ligam-me a Ílhavo, hoje cidade
mas que eu conheci vila, laços de família que eu jamais poderei
olvidar.
A minha avó materna, a avó
Joaninha, que me criou e educou, era natural de Ílhavo. E as praias
que eu fiz, em miúdo, na Costa Nova, foram na companhia de duas
primas, as Beneditas, que moravam na rua da Lagoa.
Essas férias da Costa Nova
permanecem de forma indelével na minha memória. Vivíamos quase que
acampados numa “recoleta” sobre a “lomba”. Por esses tempos da minha
meninice, ainda havia os palheiros das companhas da arte da xávega com
barcos de quatro remos que, sempre que o mar permitia, se faziam às
ondas, levados, no primeiro impulso, por juntas de bois. Quantas vezes
não me deliciei com a largada desses barcos e com a sua chegada à
praia, de novo com a ajuda dos animais! Como os homens corriam, lomba
acima, tocando as juntas de bois que puxavam o aparelho numa azáfama
de movimento incrível. E, finalmente, o saco da rede esparramado na
praia, prenhe de pescado, à espera que ágeis mãos cortassem o fio de
sisal que o cosia para que, logo que aberto, as sardinhas, as
petingas, os carapaus, os linguados, as solhas saltassem como que em
bailado inebriante para gáudio das gaivotas apetecendo o pitéu que ali
estava ao seu dispor. E, depois, eram as mulheres a separar o peixe,
por espécie e por tamanho, em tecas prontas para a lota, que se fazia
mesmo ali ao lado.
As regateiras, logo que
arrematavam o que lhes dava mais jeito para o negócio, corriam,
canastra à cabeça, já a gritar como só elas sabiam fazer: – Peixe
vivinho da nossa costa!
Que bonito que tudo isto era!
E o banho de mar das seis horas
da madrugada? Eu lá ia com as minhas primas, já entradotas na idade,
só com as suas camisas de dormir a cobrir o corpo mais os chales
a agasalhar, que o frio da matina, muitas vezes misturado com a
neblina ou mesmo com o nevoeiro, era de bater o dente. Chegados ao
mar, já lá estava o banheiro, senhor das ondas boas e das más, que me
agarrava sem pedir autorização e, zás, fungão na onda enrolada. Eram
dois ou três mergulhos que ele me forçava a dar. Depois dava-me um
açoite no rabo e eu corria praia acima até me enrolar na toalha. E lá
ficava eu à espera das primas, que demoravam sempre mais um bocado.
Aqui para nós, o espectáculo era
digno de se ver. É que as suas camisas colavam-se ao corpo e trazer
camisa ou nada era mesmo a mesma coisa. Mas olhos de criança não
pecam…
Lembro-me de Ílhavo de então,
aos domingos, com as mulheres todas vestidas de preto, sinal evidente
dos seus homens andarem ao mar, sentadas nas soleiras das portas das
casas que compunham os becos, cabeça no regaço da amiga, mesmo a
jeito, ao que me era dito, para catar as lêndeas.
Imagem semelhante vim a
encontrar, muitos anos mais tarde, durante férias na ilha de Ibiza, na
parte velha da cidade do mesmo nome.
As mulheres, também de preto,
lenço na cabeça, avental e saia até aos pés, tamancos com base de
madeira, pareciam ílhavas transplantadas para a ilha mediterrânica.
E lá estavam elas a tagarelar e
a repetir gestos em tudo iguais.
Hoje, olha-se à nossa volta, e
vê-se como esta terra marinheira mudou. É uma cidade em que os becos
se converteram em itinerário turístico. É uma cidade que soube
transformar o seu museu num reputado exemplo de museu marítimo, digno
da epopeia que os ílhavos construíram com a saga da pesca do bacalhau.
É uma cidade com um excelente centro cultural que tem sabido manter
uma óptima programação. É uma cidade com o seu casco antigo renovado.
É cabeça de um concelho que tem
a seu lado um porto de mar em franco crescimento; e uma cidade, a
Gafanha da Nazaré, cheia de vida.
Por esta altura, os trapiches ao
longo do cais, estão ajoujados de barcos de arrasto pela popa, o que
resta da numerosa frota da pesca do bacalhau de tempos idos.
As marinas de barcos de recreio
que revelam novos usos repetem-se ao longo das margens da nossa Ria.
“Tout passe,
tout casse, tout lasse et tout se remplace” – já
lá dizia Lavoisier.
E tinha e continua a ter muita razão.
Gaspar Albino
Aveiro, 1 de Janeiro de 2014 |