«E então não me contas mais uma
história?» Foi assim, de mansinho, que o meu neto João me lançou o
repto, por certo lembrando-se da forma como adormecera na minha cama,
há meses, por conta da memória do meu avô ti Luís Manco. Toda a gente
o tratava assim na Beira-Mar da minha infância. Mas havia ainda quem
se lembrava de outra sua alcunha, Luís Pardal, dos tempos em que
exercera a actividade de mercantel, ágil nos seus negócios como uma
ave, comprando peixe fresco nas companhas da xávega de São Jacinto, da
Costa Nova e da Torreira e vendendo-o, depois de salmourado nas
grandes dornas que eu ainda vi guardadas no palheiro da praia de São
Jacinto, acima de tudo para a serra: Sever do Vouga, Oliveira de
Frades e, até, Viseu. Com o abandono da sua vida de mercantel,
perdeu-se a coima de “pardal” e ficou somente o “manco”. E manco
porque efectivamente partira uma perna quando, emigrante nos Estados
Unidos, numa corrida de bicicletas, a roda grande da trotineta de
madeira se partiu. Foi parar a um hospital de lá do sítio e de lá saiu
manco também de nome. Este era um tratamento misto de carinho e de
respeito que o envolvia e se nos transmitia. É impossível esquecer-me
do seu jeito terno de me pôr ao seu lado, de me deixar agarrar na sua
bengala de tosca mas resistente madeira, garantindo, assim, o acerto
das nossas passadas a caminho da praia do canal de São Roque, até à
velha ponte de Carcavelos (não a que existe hoje mas a que desabou em
9 de Setembro 1942), onde todos os que já não tinham tarefa pousavam
para um cozinhar de palavras que punha as vidas em ordem.
Era mais uma noite em que ficávamos juntos, o meu neto João e eu, a
dormir na mesma cama. Exactamente como acontecia comigo e com o meu
avô ti Luís, já lá vão mais de sessenta anos. A vida tem destas
coincidências e eu considero-me muito feliz por poder ver que as
coisas, por vezes, se repetem.
Nessa semana, o Diário de Aveiro tinha noticiado a possibilidade de
São Jacinto, a única praia da cidade de Aveiro, poder deixar de
continuar a ser uma das freguesias do nosso concelho. A nossa única
praia, aquela que se autonomizou da Vera-Cruz em 1955, depois de esta
a ter herdado do concelho de Ovar por disposição do rei D. Pedro V, em
1856.
E esta possível despromoção administrativa da freguesia de São Jacinto
fez-me ir buscar ao baú do esquecimento a aventura de uma viagem de
bateira, desde o canal de São Roque até São Jacinto. Foi a primeira
“regata” que eu fiz de Aveiro até ao palheiro do meu avô, que ficava
no sítio onde hoje está o café “Gato Preto”, quase à entrada da base
aérea, mesmo em frente à praia, que, por esses tempos, era de fina
areia amarelinha.
Não sei qual terá sido o motivo por que o meu avô decidira deslocar-se
a São Jacinto. Ele não mo disse e eu não lho perguntei. Do que me
lembro é que fiquei radiante quando ele me perguntou se eu gostaria de
ir com ele, só nós dois, de bateira até ao palheiro e lá passar a
noite.
Acompanhei-o em todos os preparativos. A minha avó Guilhermina
aprontara os mantimentos: peixe escachado (era chicharro do par),
batatas, cebolas, alhos, grelos, cabeças de nabo, boroa, pão de
segunda, um bacalhau inteiro, azeite, vinagre. Sem esquecer um naco de
toucinho entremeado e um chouriço de carne. Não era por falta de
comida que iríamos passar fome! O meu avô já tinha de parte o garrafão
do tinto; outro de água; a garrafita da aguardente para o mata-bicho e
ainda uma lata com petróleo. Tudo foi arrumado na bateira com imenso
cuidado, que nisto de ordem a bordo o meu avô era exímio. Uma das
coisas que nunca mais esqueci foi vê-lo, dobrado sobre a ré da
embarcação, a atar, com um bocado de linha de mão, por certo sobrante
de antiga viagem, o bacalhau salgado seco.
Depois de termos jantado com a minha avó, fomos até à praia, onde o
barco estava varado. A vela e o seu mastro, os remos, e o vertedouro,
enfim, toda a palamenta duma pequena embarcação estava nos sítios. O
meu avô sentou-me na banqueta da ré e largámos da praia com a minha
avó a recomendar-lhe que tivesse cuidado comigo, pois que a sua nora,
minha mãe, era da Glória, ceboleira de gema, e tinha receio de todas
estas coisas tão naturais para as pessoas da ria.
O meu avô fez a remos o canal de São Roque até passarmos a ponte de
São João e virarmos para o canal das Pirâmides. Aí, aprontou a vara
que servia de mastro, içou a pequena vela triangular e deixou-se ir
para norte, entrando, depois, na cale da Veia até virar para poente,
pelo esteiro dos Frades. Em alguns nacos do caminho de água, os muros
das marinhas deixavam entrever o vai e vem dos marnotos e dos moços no
amanho do salgado. Por falar em salgado. O bacalhau lá continuava
preso à ré da bateira e mergulhado na água. A demolhar, explicou-me o
meu avô.
Parámos para comer uma bucha, pão com chouriço, água para mim, vinho
para o meu velhote, que as gargantas iam secas e o apetite desperto
pelo ar da ria era muito. Foi numa reentrância do esteiro, serventia
de marinha de sal. E o meu avô entrou à fala com o marnoto. Falaram da
faina, das suas fainas. Deviam ser amigos, pois que o da marinha disse
para o meu avô lhe passar um cabo que ele puxaria a bateira à sirga
até ao estremo da propriedade, a correr pelo muro de torrão.
Voltámos a navegar. O esteiro dos Frades ia alargando no caminho de
poente. Chegados ao seu extremo, por estibordo ficava a entrada do
canal do Espinheiro. Seguimos, sempre à vela, a bordejar pelo sul da
ilha do Monte Farinha, até que o meu avô me disse que já estávamos no
canal de São Jacinto. Para norte, era o canal de Ovar. Já era
tardinha. O sol já baixava e o casario de palheiros cada vez estava
mais perto. A bateira aproou à praia. O meu avô saltou para a água e
puxou para terra, largando o pequeno ferro. Enterrou a vara; amarrou a
embarcação. Descalço, saltei eu também e corri areia acima.
O palheiro dos meus avós estava ali à minha frente, embebido no seu
castanho de zarcão misturado com óleo de peixe, tudo já muito oxidado
pelos anos. A primeira coisa que o meu avô fez foi desatar o bacalhau,
entretanto demolhado pela correnteza das águas de toda a viagem, não
fora ele começar a ser comido pelos caranguejos que eram muitos.
Deu-me as coisas mais leves que eu já podia transportar nos meus
poucos anos.
O interior do palheiro era um amplo espaço onde, logo à entrada, se
perfilavam as tais dornas enormes de madeira. Vazias como estavam,
ainda cheiravam às muitas salmouras que nelas se fizeram, tempos fora,
para curar o peixe. Uma delas ainda estava cheia de sal, do nosso, bem
grosso. Lá ao fundo, a um canto, um arremedo de lareira, com uma
grelha de ferro e duas panelas de três pés. Um janelo, uma porta com
uma tranca, e, depois, uma mesa baixa e uns quantos mochos
encavalitados uns nos outros. Numas prateleiras pregadas à parede, a
louça essencial. Uma divisória de madeira formava o único quarto, com
uma cama, um lavatório de ferro forjado e um armário. Aberta a porta
das traseiras que dava para um pequeno aido, fomos buscar alguma
lenha, caruma e pinhas, em tempo apanhadas na mata de São Jacinto, que
estavam arrumadas debaixo de uma figueira. Com tudo isto, o tempo
voou.
O anoitecer foi chegando devagarinho. O candeeiro a petróleo foi
aceso. E foi à sua luz, somada à luz da fogueira onde o meu avô fez a
ceia, que nós comemos, da bacia, cada um de seu lado, o melhor
bacalhau com batatas e as tais cabeças de nabo, tudo regado com sápido
fio de azeite salteado com uns dentes de alho cortados a preceito. O
ambiente estava aquecido pela fogueira que ia amodorrando. E foi com o
meu avô ti Luís a contar-me coisas dos seus tempos de mais novo, das
companhas da xávega da costa de São Jacinto, da secular festa da Nossa
Senhora das Areias, que eu fui apetecendo o aconchego da cama. Nessa
noite, com o cansaço de um dia tão cheio de coisas novas, nem reparei
se o meu avô tinha vestido a sua camisa de dormir, nem enfiado o seu
barrete.
A meu lado, entretanto, o meu neto João já dormia o sono dos justos.
No dia seguinte, contudo, muito do que acima escrevi ele me repetiu,
pedindo-me que lhe explicasse o significado de palavras por mim
utilizadas e que, para ele, eram totalmente novas. Tantas foram e são
que, ainda hoje, por dá cá aquela palha, me dispara com algumas delas.
E reconheço que algumas são de difícil explicação. Tão difícil
explicação como o insondável boato que por aí correu de que a minha
rica freguesia de São Jacinto deixaria de o ser!...
Gaspar Albino
Aveiro, 15 de Janeiro de 2014 |