|
Não vou falar do papel extraordinariamente relevante que o
velhinho Teatro Aveirense desempenhou na vida cultural da nossa
cidade de Aveiro. Isso dará para posteriores abordagens, tantas
são as facetas por que a vida do nosso Teatro pode ser recordado.
|
Teatro Aveirense nos princípios do séc. XX. |
Desta feita vou-me manter
agarrado aos meus anos, até aos seis, durante os quais fui vizinho da
nossa, então, única casa de espectáculos. Da rua de Gustavo Ferreira
Pinto Basto à rua 31 de Janeiro era um pulinho que a minha avó me
permitia sem nada se afreimar.
Não era só eu, garoto, que
gostava de ir às sessões de cinema das tardes de domingo. Éramos
muitos, mas muito bem organizados de forma a não perturbar a entrada
no Teatro. Ordeiramente permanecíamos na 31 de Janeiro e, respeitando
escrupulosamente a ordem de chegada de cada um de nós, aguardávamos
que começassem a dirigir-se para os porteiros devidamente fardados os
casais que iam assistir à sessão de cinema. Discretamente, cada um de
nós colocava-se ao lado de cada casal e pedíamos, com o ar mais
“santinho” do mundo, se não se importavam de nos levar pela mão para
dentro do teatro. É que, anos quarenta do século passado, as crianças
não pagavam bilhete desde que acompanhadas por adultos. E não havia
classificação etária para os filmes. Os porteiros do teatro já nos
conheciam. Éramos a “freguesia habitual”, morávamos ali perto, muitos
conheciam-nos pelo nome e facilitavam assim a nossa entrada “à borla”.
Apanhados lá dentro, agradecíamos como mandavam as boas regras de
educação e procurávamos lugares vagos onde nos sentávamos
tranquilamente para ver os filmes.
Cada sessão era composta
por três partes: uma, de noticiário dos factos mais relevantes
ocorridos em todo o mundo; outra, de desenhos animados que eram a
nossa delícia, e, finalmente, o prato forte: o filme que dava nome ao
espectáculo e que, consoante a fama dos actores intervenientes,
garantia a qualidade da “sala” em termos financeiros para a empresa
proprietária do Teatro Aveirense.
Tudo isto tinha os seus
intervalos que permitiam aos assistentes ir até ao bar da plateia
tomar uma bebida, normalmente um café de saco tirado de uma máquina
alta, toda cromadinha, que até era um luxo. E, quer no “hall” de
entrada, quer no salão nobre do primeiro balcão, as pessoas passeavam
os seus fatos domingueiros, luzindo as senhoras os seus trajes à moda
mais recente. Ir ao cinema não era só para ver o filme. Era,
principalmente e as mais das vezes, para conviver, para socializar. E
tudo isto, sem dispensar um ritual próprio, quase de cerimónia, que
todos cultivavam, não deixando de aproveitar a circunstância para
evidenciar o “status” de cada um.
Comparando os dias de hoje
com os de então, sem dúvida que muito se perdeu: a técnica evoluiu
imenso, a qualidade da imagem não tem comparação, o som também e,
quando se entra nas pequenas salas-estúdio de hoje, a envolvência que
nos agarra atira-nos para um mundo diferente, fazendo-nos partícipes
de corpo inteiro. Hoje, assistir a uma sessão de cinema é como que
estar num laboratório, solitários, como que dentro de uma redoma.
Ir ao cinema antigamente
tinha outra cor, outro viço, era pretexto para sermos e vivermos mais
em sociedade.
E ir ao cinema nos tempos
da minha meninice tinha decididamente um mérito: ia de “borla” por
conta da amiga tolerância dos porteiros fardados a rigor que nos
permitiam o ingresso sob o seu cúmplice olhar.
Gaspar Albino
Aveiro, 15 de Abril de 2013 |