Desta feita, decidi
sacudir alguns bolores que empanam a minha memória das muitas
intervenções cirúrgicas a que tenho sido submetido ao longo da minha
vida. Sou um resistente.
A primeira vez que tal me
aconteceu, teria eu os meus vinte anos, mais coisa menos coisa.
Nessa altura eu morava na
Travessa de São Gonçalinho, mesmo à sombra do nosso santo cagaréu. E
dividia os meus dias de trabalho passando as manhãs no Largo do
Rossio, nº 6, sede da Industria Aveirense de Pesca, Lda., e as tardes
na fábrica de lixas Luzostela, desempenhando, nos dois lados, funções
de ajudante de guarda-livros, pois havia donos comuns nas duas
empresas. Num dia de Setembro de grande canícula, depois de ter
almoçado, meti-me Avenida Dr. Lourenço Peixinho fora, para o meu
trabalho da tarde. Mas, a certa altura, comecei a sentir dores fortes
num dos lados do meu abdómen e que uma das minhas pernas se prendia.
Com dificuldade cheguei à fábrica. Vendo a minha cara perlada de suor,
o Dr. Joaquim Henriques, meu gerente e médico, perguntou-me o que é
que eu estava a sentir para estar naquele estado. Disse-lhe das minhas
dores e que mais parecia eu estar a forjar uma gripe à moda antiga.
Ele então disse-me para o seguir até à sala das Assembleias Gerais da
empresa, que pusesse as calças abaixo e que me deitasse num sofá.
Assim fiz. Ele carregou com a sua mão num certo sítio do meu abdómen
e, reflexamente, uma das minhas pernas disparou um pontapé no ar.
“Você o que está a fazer é uma apendicite aguda”, disse-me ele.
“Prepare-se que vou levá-lo já à Clínica da Vera-Cruz”. Era uma
clínica de que ele era um dos sócios e que ficava próximo do largo dos
Bombeiros Novos. Hoje, no mesmo sítio, está uma cooperativa de ensino.
Tiraram-me sangue para análise e pouco depois o Dr. Joaquim Henriques
veio-me dizer que iria ser operado ao fim da tarde para me retirarem o
apêndice. E assim foi. Toda a gente me dizia que o meu patrão era um
excelente médico, especialmente em matéria de diagnóstico. Mais uma
vez ele não atraiçoou a fama de que justamente gozava. Durante muitos
anos a minha mãe guardou um pequeno frasco onde estava retido o
apêndice que me havia sido retirado pelo cirurgião Dr. Vítor Regala.
Depois deste incidente,
durante largos anos nada me aconteceu de grave, em matéria de saúde.
Casei-me, criei os meus dois amados filhos, fiz a minha casa,
trabalhei que nem um desalmado, misturando sempre o trabalho com os
estudos… Até que, em 2002, o Dr. Miguel Capão Filipe me mandou fazer
uns exames, uma análises e, de chofre, descobre-se que eu tinha dois
tumores: um na próstata, outro no rim esquerdo. E, sem saber ler nem
escrever, despacham-me para a Clínica Universitária de Navarra, em
Pamplona, onde, durante cerca de dez horas, estive no “talho”. Perdi
metade das peças, como eu costumo dizer. Mas a verdade é que fui
salvo.
Daí em diante foi um ver
se te avias. Umas doze intervenções cirúrgicas de vária gravidade. Até
me colocaram lá em Pamplona um tubo a substituir uma artéria! De vez
em quando esse tubo entope. E lá vou eu, “tiroli-tiroli”, de
ambulância, até ao Hospital da Universidade de Coimbra.
E é aqui que entra a minha
fada madrinha, a Dra. Anabela, que me tem salvo a minha perna
esquerda, em sucessivas intervenções.
Numa consulta programada,
a Dra. Anabela terá desconfiado de alguma coisa. E mandou-me fazer uma
ecografia. Resultado: um aneurisma na perna esquerda, a tal que tem o
tubo. Disse-me que teria de ser operado. Ela própria me telefonou a
dizer-me o dia e hora em que deveria comparecer no Hospital
Universitário de Coimbra.
● ● ●
Éramos três arrumados cada
um em seu leito de uma enfermaria no quarto andar da Cirurgia Vascular
do Hospital da Universidade de Coimbra: o paciente Marcolino, o
paciente Izequiel e eu que dava pelo nome de Joaquim, meu primeiro
nome próprio. Todos nós estávamos condenados a sofrer intervenções
cirúrgicas: eu e o senhor Izequiel para nos extirparem aneurismas; e o
senhor Marcolino, o mais queixoso de todos nós, por conta de dores
horríveis que ele sentia numa perna, aguardava a definição da sua
sorte. No dia em que eu entrei no Hospital, 8 horas da manhã, levado
pela minha filha Cláudia, quando chegámos ao longo corredor da
Cirurgia Vascular, a primeira pessoa que encontrámos foi a minha
médica, a Dra. Anabela, a quem eu devo, nunca me cansarei de o dizer,
a manutenção da minha perna esquerda. Apresentei a Dra. Anabela, nessa
qualidade e com essa virtude, à minha filha. A minha fada médica
disse-nos que aguardássemos na sala de espera, pois alguém nos viria
procurar. E assim foi… Chamaram-me ao secretariado, e, logo de
seguida, começaram a preparar-me para a operação que se realizaria no
dia seguinte. Destinaram-me uma cama, um cacifo, apresentei-me aos
companheiros de quarto mas, na verdade, só conheci os meus vizinhos
quando comecei a sair da anestesia. E só comecei a sentir dores
passado algum tempo. Reparei que estava algaliado e que tinha tubos
enfiados em dois cateteres colocados em cada braço. O mais franzino
de todos nós era o senhor Izequiel que ocupava a cama do meio. O
senhor Marcolino, de valente compleição física, estava na cama do lado
da grande janela que inundava o quarto de luz. Este era quem mais
berrava. Logo que comecei a sentir que o pior já por mim tinha
passado, entabulei conversa com os meus companheiros. O senhor
Izequiel iria ser operado a um aneurisma da aorta abdominal. O senhor
Marcolino, entre os seus berros provocados por dores que se percebiam
lancinantes, só gritava que lhe tirassem a perna se não enlouquecia.
Quando os potentes analgésicos que lhe davam começavam a produzir
efeito ele abrandava nas suas queixas que se convertiam, apesar de
tudo, em sonantes “ais”. Eu também soltava os meus, acima de tudo
quando tossia. O senhor Ezequiel, ficava-se por lamúrias que não
conseguia conter. Éramos o trio Odemira dos “ai, ai, ai”… em versão
“soft”. Mas quando as coisas se complicavam, de trio Odemira
passávamos a “cócó, ranheta e facada”, por vezes com gritos que
assustavam todo o mundo. Esta estadia no hospital não foi tarefa
fácil: nem para nós, pacientes, nem para quem de nós tratava. O senhor
Marcolino, esse, metia dó com os seus berros que não deixavam ninguém
descansar. Certo dia, juntaram-se vários médicos e deliberaram ali à
nossa frente que não havia outro remédio se não amputar-lhe a perna
direita. E levaram-no para ser operado. Quando regressou ao nosso
quarto, deitado na sua cama, aparentemente estava como partira. Mas
não. Os berros desapareceram, o senhor acalmou, a paz invadiu a nossa
pequena enfermaria. O senhor Marcolino já perdera a fonte das suas
dores. E contou-nos muito da sua vida. Que tinha dupla nacionalidade,
a suíça e a portuguesa, que trabalhara dezoito anos na ONU, que, pois
de aposentado da ONU trabalhara no Hospital Central de Genebra, que
estava casado com uma senhora também de dupla nacionalidade, a Dona
Olga, e que vivia actualmente em Figueiró dos Vinhos. Depois da
amputação, uma senhora enfermeira procurou saber das características
físicas da sua casa, das dificuldades que ele iria sentir para se
locomover, da necessidade de aprender a andar de cadeira de rodas, da
fisioterapia a que teria de ser submetido, da prótese que lhe iriam
construir. E que tivesse muito cuidado com as “dores fantasma”. Tudo
isto o senhor Marcolino ouviu serenamente. A dor espiritual que se
juntava à sua dor física era mais suportável do que aquelas horríveis
noites em que ele berrava para lhe tirarem a perna.
Depois foi o senhor
Ezequiel que andava sempre aflito com as dosagens da sua medicação.
Esta sua preocupação foi relegada para segundo plano quando se viu
confrontado com os riscos que a sua operação implicava. Ele que se
reformara aos cinquenta e tantos anos por incapacidade resultante do
mau funcionamento do seu coração, o que o forçou a ser submetido a uma
intervenção cirúrgica de coração aberto, ficou consciente, depois de
uma conversa, longa conversa com um médico cardiologista, de que o seu
aneurisma era fonte de graves receios. Se não fosse operado, corria
graves riscos. Se fosse operado também os correria, mas, se tudo
corresse bem, livrar-se-ia de um anátema enorme.
E foi dramática a tarde em
que o vimos a ouvir a família, receosa, e a escutar avidamente
opiniões de todos os lados. Até que, tendo saído do nosso quarto
durante bastante tempo, ele regressou e disse-nos que estava disposto
a deixar-se operar. Que a família também estava de acordo. Milagre,
pensei eu com os meus botões. No dia seguinte, lá foi ele para o
bloco. Rezei por ele. Mas passou-se o dia e ninguém nos dava novas do
senhor Izequiel. Alguém de bata branca sussurrou-me que ele já ia na
terceira operação. Já tarde, no dia seguinte, alguém nos disse que ele
estava num quarto de cuidados intensivos. Mas que estava vivo.
Respirámos fundo. É que o nosso amigo Izequiel também respirava.
Entretanto, eu tive alta e
vim para casa do meu filho. Os meus filhos, os meus netos, a minha
família toda, os meus companheiros Lions, os meus amigos, são
admiráveis…
Só posso estar grato a
Deus, aos médicos e enfermeiros, a todos, mesmo a todos os que se
preocuparam com o meu estado. Bem hajam!
Gaspar Albino
Aveiro, 2 de Maio de 2013 |