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BOLORES

Os bailes do Recreio Artístico

A minha estadia na casa da Rua de Gustavo Ferreira Pinto Basto, confiado à guarda da minha avó Joaninha, estendeu-se até os meus 6 anos.

Foi um período em que eu fui despertando para o mundo, absorvendo tudo o que me rodeava, pessoas, coisas, factos, vivências, como se fosse uma esponja. Corresponde a um tempo em que a memória funcionava como máquina registadora, como um disco rígido de computador com muito espaço disponível, todo o espaço disponível. É certo que o tempo se foi encarregando de esbater muita coisa, mas o mais marcante desse período da minha vida de criança ainda perdura. 

Uma dessas coisas que não mais esqueci foi a obrigação que a minha avó me cometia de ir “tomar conta” da minha tia São sempre que ela ia aos bailes do Recreio Artístico que ficava ali mesmo em frente à porta da casa. Era só atravessar a rua e lá estávamos nós, eu levado pela mão da minha tia, no salão onde se realizavam os bailes das tardes de domingo.

Para mim era uma forma diferente de ocupar o tempo. E era mesmo uma festa quando encontrava o meu tio Luís, irmão do meu pai Manuel, agarrado ao seu trombone ou a dedilhar o seu contrabaixo, sempre que actuava o “jazz” ALOMA que ele integrava. Este conjunto musical era composto principalmente por filhos do Mestre Martins, professor de talha na Escola Industrial e sócio duma empresa de marcenaria, Martins & Candeias, casa de fabrico de móveis de primeira qualidade, vizinha da Igreja do Carmo. O tio Luís, que tinha tanto de alto como de bondoso, passara a fazer parte da família Martins, todos artistas músicos e entalhadores, pelo casamento com a tia Arminda, Martins também, uma santa senhora que me tratava com imenso carinho.

Na altura, nunca percebi lá muito bem o que era isso de “tomar conta” da tia São. Eu limitava-me a ficar sentado no degrau que levava ao palco onde actuava o conjunto musical. E era quanto bastava para passar a tarde todo satisfeito a ouvir os músicos que tocavam que era uma maravilha, reproduzindo aquelas melodias que vinham da América, da Argentina, da Inglaterra, de França, da Espanha. Muitas já eu trauteava de cor à força de as ouvir no rádio do meu tio Coríntio.

A minha avó Joaninha, como preâmbulo aliciatório para que eu aceitasse de boa mente o ter de ir “tomar conta” da tia São, lá me ia contando, pouco a pouco, a história daquela Associação, do Recreio Artístico, que, segundo ela, era muito importante na vida cultural de Aveiro. Dizia-me ela que dois dos seus cunhados, irmãos do seu falecido marido, meu avô António Gaspar de seu nome, tinham desempenhado funções directivas na instituição. E que, quando  alguns sócios mais jovens se rebelaram contra os mais idosos, um dos seus cunhados permaneceu no Recreio Artístico enquanto que  o outro, seu irmão,  por certo mais voluntarioso, abandonara a associação para ajudar a formar o que viria a ser o prestigiado Clube dos Galitos.

A minha avó Joaninha era, aos meus olhos de menino, uma mulher sábia. Nunca a vi zangada, nunca a sua voz se exaltava, a sua palavra era pausada e tudo o que dizia sabia-me a autêntico, a verdadeiro. Daí que a ouvisse com enorme atenção pois, com ela, sempre aprendi.

Reconheço, contudo, que nunca fui capaz de lhe perguntar por que razão ela entendia que eu tinha que ir “tomar conta” da minha tia São sempre que ela ia aos bailes do Recreio Artístico.

Ela devia ter perfeita consciência de que eu, miúdo de 3, 4, 5 anos, não podia tomar conta de ninguém, muito menos da minha tia São, mulher feita e atilada que só poderia pecar por gostar muito de mim e de me estragar com os seus mimos.

Mas olhando agora para trás, o que me ficou verdadeiramente desse “tomar conta” foram as tardes maravilhosas que eu passei a ouvir música, a música do saudoso conjunto de jazz ALOMA… Tenho saudades…

Gaspar Albino

Aveiro, 1 de Abril de 2013

 

04-05-2018