No Dia Mundial da Poesia,
21 de Março, fui reler AINDA VIDA, um pequeno Livro de poemas da lavra
do meu grande amigo
ANDRÉ ALA
DOS REIS, que a Associação dos Antigos Alunos da Escola
Primária da Glória editou logo após a sua fundação. Foi uma homenagem
que os seus companheiros de calção quiseram prestar a alguém que,
pelas suas qualidades intelectuais, deixou marca indelével em todos os
que com ele conviveram ao longo da sua curta passagem por este mundo.
De uma inteligência fulgurante, impressionava pela sua enorme lhaneza
de trato pela qual fluía, sem ostentação, o seu enorme saber. Os
primeiros sintomas da doença que o haveria de levar do nosso convívio
surgiram quando ele ainda estava em Heidelberg a colher elementos para
a sua tese sobre Thomas Mann. Na altura, já ele tinha sido convidado
para assistente do Professor Paulo Quintela do curso de Germânicas da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Mais lembro que o
André foi o melhor aluno de sempre do então Liceu Nacional de Aveiro.
De uma sensibilidade excepcional, tudo o que saía da sua pena sabia a
poesia. E, neste 21 de MARÇO DE 2013, decidi recuperar um pequeno
texto que escrevi como intróito para a já referida colectânea de
poemas vinda a lume em letra de forma sob o nome de AINDA VIDA.
FALAR DO ANDRÉ foi o
título que dei, então, às palavras que se seguem:
“É difícil falar dum amigo
que já lá vai. Pelo que ficou, dele, em nós. É difícil. O André
escolheu, na multidão das suas leituras, um pouco de Lorca:
/…/pero que todos sepan
que no he muerto;
que hay un establo de ora en mis labios;
que soy el pequeño amigo del viento Oeste;
que soy la sombra inmensa de mis lagrimas. /…/
Nisto está muito, tudo, do
que um jovem quis dizer e, por conta do que foi dizendo, nada a vida
lho deixou dizer.
Sejamos objectivos.
Lembramo-nos, todos nós, seus companheiros e amigos, do seu ar
bonacheirão. No seu rosto sentia-se a intranquilidade duma calma que,
não sendo dele — a calma —, nos procurava transmitir.
Profundamente honesto
consigo, exigente. Rigoroso na relação estabelecida. Algo
paternalista. Mas bom!
Disse exigente. Só quem
não com ele viveu — e eu vivi — não compreende o nível da exigência
inteligencial que o André punha em tudo o que fazia, em tudo com que e
com quem lidava.
Mesmo quando brincava, o
André deixou vendida a imagem de como o brinquedo era a sua «compra»
de amizade.
Seriíssimo,
intelectualmente, ele, criança grande que eu balbuciava, em todo o
momento procurava-se nos outros.
Lembro-me, como se hoje
fora, que, um dia, me deu uma caixa vazia de charutos.
Disse-me: — A tua avó
dá-te vinte e cinco tostões por semana. Vamos lá abaixo, e vais juntar
essa «massa» para comprar livros na «Feira de Março», porque são mais
baratos. Mas são os mesmos. A caixa fica aqui na minha estante.
Foi assim. Eu era menino
de cerca de 10 anos. Marcou-me. A mim, mais do que, possivelmente,
qualquer outro.
Desenhámos, juntos. Ouvi
poesia, dele. Falei inglês, por ele.
«O teu accent é
muito americano», dizia ele. «Já és embrionariamente, portanto,
empresário». Assim razoava. Brincando...
Deliberadamente optei por
isto: por aquilo que ele mais me disse.
Pelos passeios, a pé, de
quilómetros ao longo da nossa Ria, parando aqui e além, tirando uma
que outra fotografia: Vista Alegre, Barra, Costa, Forte. De tudo há
registo.
Das tardes, ouvindo
Shakespeare, por ele lido com amor. Do seu Thomas Mann que o
endemoninhou, até ao fim.
Do nosso «lunch», depois
de lavar as mãos, nas chávenas da madrinha com o gato desenhado na
asa. No cágado que morreu no quintal.
Na cave dos segredos onde
se perdia a memória do seu tio, jurista e primeiro presidente da
Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Aveiro, após
implantação da República, em livros, revistas, papelada infindável. Na
neo-camoneana, do tio. No rádio que ouvíamos. No chapéu do padrinho
Amadeu.
A cave era lúgubre. As
escadas que levavam ao quente café-com-leite da madrinha, muito
íngremes. Caí algumas vezes.
Mas isto mesmo, com o calor da amizade, foi mesmo, mesmo, mesmo, a
estúpida coisa que fui capaz de escrever por conta da inteligente —
sua — amizade que sempre soubemos manter.
Eu sou «eI pequeño amigo
del viento Oeste». Ele será, é, «la sombra inmensa de mis lagrimas».
É tudo...: «de mis
lagrimas».
E no Dia Mundial da Poesia
foi tudo também o que fui capaz de escrever.
Gaspar Albino
Aveiro, 21 de Março de 2013 |