Vou regressar aos tempos
em que a minha avó Joaninha, viúva, vivia com o seu rancho de filhos
numa casa estreitinha que tinha duas frentes: uma, por onde se
entrava, virada para a rua de Gustavo Ferreira Pinto Basto, mesmo em
frente do velho edifício do Recreio Artístico; outra, cujas janelas de
primeiro andar permitiam uma excelente leitura da nossa rua Direita.
Foi quando morei lá que eu quase que fui adoptado pela família Ala dos
Reis, constituída pelo senhor Amadeu Ala dos Reis e pela sua esposa,
senhora Dona Mariazinha, primos direitos, que tinham um único filho, o
André Luís. O André, para mim o Andrezinho, três anos mais velho que
eu, fácil se tornou no meu maior amigo, no quase irmão que eu, então,
ainda não tinha.
Vou confessar-vos uma coisa. Teria uns dois anos
quando comecei a ir para casa do meu amigo. Era sair duma porta e
entrar, logo ali ao lado, pelo portão do jardim da Dona Mariazinha.
Ora, eu não era capaz de dizer direito este seu nome. A minha língua
de criança entaramelava-se e, em vez de Mariazinha, saía qualquer
coisa que mais se assemelhava a, imagine-se!, “merdinha”. Um dia a mãe
do André vira-se para mim e, muito séria, pediu-me para pronunciar
“madrinha”. E não é que “madrinha” saiu mesmo direitinho pela minha
boca fora?! Daí em diante ela promoveu-me a afilhado, com direito a
folar e tudo. E ficou, para sempre, minha madrinha. Foi como que o
selar de uma amizade que só com a morte prematura do
meu amigo André,
tinha ele trinta e três anos.., se veio a transformar em saudade! Este
período da minha vida passado na rua Direita marcou-me profundamente.
Dele ainda hei-de desencantar mais uns quantos “bolores” para me
sentir mais reconfortado. Foi um período que se estendeu quase até à
minha entrada na escola primária, quando, sempre com a minha avó
Joaninha, passei a viver ao pé da Fonte dos Amores. Eu nasci em 1938 e
a segunda Guerra Mundial começou em 1939, só acabando em 1945. Foram
anos muito difíceis esses. Eu era pequenito, mas sentia as dificuldades
que a minha avó tinha que gerir. O meu padrinho Alpoim fora mobilizado
para os Açores e as receitas da casa eram só garantidas pelo trabalho
do meu tio Coríntio e da minha tia São. A minha mãe estava em Lisboa,
pois o meu pai fora mobilizado para a Marinha e estava aquartelado no
Alfeite.
Lembro-me dos vidros das
janelas com fitas autocolantes mandadas colocar pela Defesa Civil, para
evitar quebras resultantes de possíveis explosões. Lembro-me de ter
tido sarampo e da minha avó o ter talhado com um responso que
começava mais ou menos assim: “sarampo, sarampelho, eu te corto, eu te
talho, etc., etc…” Por conta desse sarampo, durante quase duas semanas
não vi a luz do sol.
Lembro-me de ver o meu tio
Coríntio debaixo de um cobertor de papa a tentar sintonizar a BBC, para
saber notícias da guerra transmitidas de Londres pelo locutor
aveirense Fernando Pessa. Lá em casa eram todos pelos aliados. Ninguém
suportava Hitler. O rádio, a TSF, era um caixote de madeira polida,
com um altifalante coberto de tecido. A sintonia devia ser difícil,
pois o som ia e vinha, com altos e baixos. O meu tio Coríntio era um
coca-bichinhos destas coisas da técnica radiofónica. Lembro-me de ele
me levar até à oficina do meu primo César, ali para os lados da rua de
José Estêvão, onde ele ganhava a vida a consertar telefonias. Daí a
sua alcunha Marconi. Com efeito, todos o conheciam por César Marconi.
A mim metia-me especial impressão olhar para a sua mão direita, que só
tinha o polegar e o dedo mindinho. Tinha nascido assim. A falta dos
outros dedos não lhe provocava, aparentemente, quaisquer engulhos. Bem
pelo contrário. A unha do polegar era uma autêntica chave de fendas; e
com o seu dedo mínimo ele estabelecia contactos eléctricos que faziam
iluminar as lâmpadas dos rádios avariados. Ele chamava válvulas a
essas lâmpadas. Verdadeiramente, o que levava o meu tio até à oficina
do primo César Marconi era para tentar saber como construir um rádio
de galena, um cristal de chumbo que, conjugado com outros elementos,
permitia escutar sinais de TSF. Depois de porfiadas sintonias, eu
cheguei a ouvir música saída da geringonça que o meu tio montara sob
as indicações de César Marconi, meu primo por parte da minha avó
paterna, Guilhermina de Deus da Loura.
Muito mais tarde, já eu
era gerente de uma empresa de pesca, vim a trabalhar com um seu irmão,
o Carlos Loura, que começara a mexer em coisas da electrónica mercê do
vírus familiar que herdara do mano. Tenho saudades do Carlos. Morreu
muito novo. Era um excelente especialista em sondas de pesca, em
radares, em aparelhos de radiotelegrafia. Trabalhava para quase todas
as empresas de pesca sediadas na Gafanha da Nazaré. E era muito meu
amigo, daqueles à moda antiga, daqueles em quem se pode confiar em
todas as circunstâncias. Acontece que também foi meu companheiro no
Lions Clube de Aveiro. Ao pé dele era impossível não estarmos sempre
bem dispostos, tal o seu natural jeito para contar, melhor, para
inventar histórias hilariantes.
O meu amigo e companheiro
Lion, Dr. José Balacó, está sempre a citar saídas do saudoso Carlos
Loura que, nos dias que correm, serviriam de verdadeiro antídoto para
a crise actual que nos avassala.
Aqui fica uma das dele,
Carlos Loura: «Será que esta crise fazerá mal à gente? Supremo que
não, supremo que não», respondia ele a si próprio. «Com palmas e luzes
e bandeiras a acenar em festival, isto há-de passar», misturando tudo
com as suas sonoras e contagiantes gargalhadas…
Nestes dias acabrunhantes
que tanto me fazem lembrar os tempos idos da carestia sofrida por
conta da Segunda Guerra Mundial, sinto bem a falta do bom humor com
que o meu primo Carlos Loura nos sabia contagiar. Pessoas como ele
fazem falta… E, agora, mais do que nunca!
Gaspar Albino
Aveiro, 18 de Março de 2013 |