Era um senhor esguio,
muito direito no seu andar pausado. Sempre o vi fardado. Todos nós da
Fonte dos Amores o respeitávamos muito, porque ele, a todos nós,
garotos da escola primária, do mesmo modo também nos tratava. Isto é:
como homenzinhos. Ele era o pai de dois dos nossos companheiros: o
Amílcar, meu colega de classe, e o Carlos, uns dois anitos mais velho.
Excelentes camaradas estes. A sua mãe era tratada por todos nós como a
Senhora Miquinhas do Bagão. Do Bagão, claro, por ser a esposa do
senhor Sargento Bagão, pessoa de farda, logo pessoa, aos nossos olhos,
muito importante no nosso pequeno bairro.
Creio que ele trabalhava
como amanuense na secretaria do Quartel de Infantaria 10, já vizinho
do Jardim sobranceiro ao Parque D. Infante Pedro, que ficava ali logo adiante,
no nosso caminho para a escola primária da Glória. Uma coisa que o
caracterizava aos meus olhos era o facto de falar pouco. Mas quando
falava, o que dizia atraiçoava-o imediatamente, denunciando a sua
origem ilhavense. Exactamente como a minha avó Joaninha, sua
conterrânea, que nunca abandonou a sua expressão melódica, quase que
cantada, do seu linguajar tão próprio dos ílhavos. Ainda hoje eles, os
ílhavos, se mantêm coerentes com as suas origens… nesse seu cantar de
frase, o que lhes fica muito bem, diga-se de passagem.
Por esses tempos da minha
escola primária, anos de 45 a 49 do século passado, Aveiro tinha dois
quartéis militares: o já referido quartel de infantaria e o Quartel de
Cavalaria 5, ali para os lados de Sá. As tropas aqui aquarteladas
garantiam à nossa pequena cidade um movimento extraordinário que
alimentava o pequeno comércio e dava vida às nossas ruas. Muitos
mancebos se enamoraram pelas nossas tricanas e por cá constituíram
família. São vivências que nunca mais desaparecem da nossa memória.
Com efeito, ainda hoje me
basta só fechar os olhos para reviver o desfile da tropa que, certo
dia, regressava dos Açores, ao som cadenciado dos tambores, misturado,
de quando em vez, com toques estridentes de cornetim, rua de Gustavo
Ferreira Pinto Basto fora, mesmo em frente ao antigo edifício do
Recreio Artístico, a caminho do Quartel de Infantaria 10. No meio
desses soldados vinha o meu padrinho Alpoim que, com os seus camaradas
de armas, esteve mobilizado, durante parte significativa da Segunda
Guerra Mundial, naquele nosso arquipélago atlântico. São momentos que,
efectivamente, nunca se esquecem.
Poder-se-ia pensar que no
nosso quartel de infantaria não havia muares nem cavalos. Mas havia.
E, num canto da enorme parada, situava-se uma espécie de armazém, onde,
em tulhas enormes, era guardada a sua alimentação: uma farinha
grosseira, misturada com muita alfarroba partida.
Todos nós, garotos de
calção, conhecíamos muito bem a localização dessas tulhas, pois que
todos nós gostávamos de fava rica, a nossa expressão para designar a
tal alfarroba tão almejada.
A chave para entrar no
quartel e chegarmos às tulhas implicava alguma imaginação. Que, a
preceito, foi encontrada. A chave passou a ser o senhor sargento
Bagão. Chegávamos à sentinela muito ordeiros e o mais azougado do
grupo pedia, depois de cumprimentar muito respeitosamente o soldado,
que algumas vezes até se punha em sentido, para ir à secretaria dar um
recado ao senhor sargento Bagão. Logo se acrescentava que não era
preciso sermos acompanhados por ninguém, pois já conhecíamos o caminho.
Afiveladas as faces mais ingénuas do mundo, ninguém desconfiava dos
nossos propósitos. Ultrapassado o portão, a sentinela dentro da
guarita, e pernas para que te quero até ao armazém da farinha. As
nossas sacolas aumentavam de volume em pouco tempo. Com sorte, e para
nosso gáudio, até apareciam alfarrobas inteiras. Alcançada a
quantidade desejada, lá saíamos do quartel, outra vez bem devagar,
saudando o soldado de sentinela com um solene “bom dia” ou “boa
tarde”.
Depois, era seguir pela
avenida Araújo e Silva até ao nosso cantinho da Fonte dos Amores,
roendo, sem parar, as doces alfarrobas.
Por certo que o senhor
sargento Bagão nunca desconfiou das nossas invasões no quartel por
conta dos recados que nunca lhe demos. Que Deus o tenha em eterno
descanso na sua profunda ignorância das nossas diatribes de garotos.
Mas que as alfarrobas nos
sabiam muito bem, lá isso sabiam. Talvez até pelo expediente
habilidoso por nós utilizado para as irmos buscar às tulhas lá no
canto da parada.
E uma coisa é certa: nem
os cavalos nem os burros do quartel alguma vez reclamaram, tanto
quanto se saiba, por falta de comida.
Gaspar Albino
Aveiro, 11 de Março de 2013 |