Foi à hora do meio-dia. À
porta do armazém (hoje transformado no café-restaurante “Convívio”)
onde o senhor Azevedo guardava os tonéis de vinho que vendia na sua
loja do gaveto da frente, um grupo de rapazes do bairro da Fonte dos
Amores, de diferentes idades (eu deveria ser o mais novo de todos
eles, pois alguns já usavam calças de homem e faziam a barba) falava
sobre as coisas que nos tinham acontecido na semana. Era um sábado e o
sol quente de fim de verão animava a nossa tagarelice. Tudo o que se
passava na escola, tudo o que se passava no bairro era dissecado ao
pormenor. Os mais velhos lá se iam gabando dos seus namoricos para
espanto dos que ainda não tinham idade para essas veleidades. E esses,
os mais velhos, já fumavam alguns dos cigarros Provisórios (era a
marca do tabaco mais barato) que tinham comprado à unidade no quiosque
da senhora Rosinha do largo do Governo Civil, mesmo ao lado da rotunda
da palmeira, em frente do quartel da Polícia de Segurança Pública que,
então, ocupava o convento das Carmelitas.
Os mais novos, ainda de
calção, como eu, não se metiam na conversa dos maiores. Mas ouviam
tudo com enorme atenção na sua aprendizagem para a vida.
Nesse dia, um de nós tinha
trazido dos Carreiros (zona que mediava entre o barreiro da Fábrica
Campos e a rua que levava para São Bernardo e na qual eu nunca me
aventurei por conta dos medos resultantes das avisadas recomendações
da minha avó Joaninha), umas espigas de milho, com as respectivas
barbas. Não sei onde foram desencantar um bocado de papel de jornal, mas
a verdade é que, logo, um dos mais velhos, depois de ter rapado das
espigas algumas barbas, começou, diligentemente, a enrolá-las no
papel. Feito um cigarro que mais parecia um nutrido charuto, acendeu-o
e começou a puxar o fumo goela abaixo. Pela sua cara, parecia que a fumadela lhe estava a saber muito bem. Feito outro cigarro, incitou-me
a fazer a minha primeira experiência. Os meus tios fumavam. Mas eu
nunca me senti lá em casa tentado a surripiar um cigarrito. O próprio
cheiro do fumo me desagradava. Mas, ali, no meio dos rapazes do meu
bairro, senti que uma recusa mais pareceria um acto de cobardia.
Então, enchi-me de coragem, levei à boca o que se parecia com um
cigarro, e inspirei como via fazer aos meus amigos. Para minha
vergonha desatei a tossir, quase engasgado com o fumo, ficando com um
enorme desejo de vomitar. Mas contive-me. Quando levantei a cabeça,
dei de caras com o olhar severo do meu padrinho Alpoim, irmão de minha
mãe Maria, que vinha do seu trabalho para almoçar. Só me disse: “anda
para casa que já falamos”. Envergonhado e com receio das
consequências do meu acto leviano, acompanhei-o. Pelo caminho, não
mais de cinco minutos, só me disse que não voltasse a fazer asneiras
daquela natureza. Ele próprio se lastimava por se ter deixado viciar
pelo fumo, pois que se sentia muito mal a respirar. O seu maior desejo
era ser capaz de deixar de fumar. Quando nos sentámos à mesa, só
restava do ralhete um suor que perlava a minha testa. E disse para com
os meus botões que as palavras do meu tio e padrinho deveriam ser
seguidas à risca, pois eram para meu bem. Fumar, nunca.
Mas, para mal dos meus
pecados, as coisas não se passaram assim. Acabado o meu Curso Geral de
Comércio, na Escola Industrial e Comercial de Aveiro, fui logo
trabalhar para uma empresa bacalhoeira, com escritório no Largo
do Rossio, como ajudante de guarda-livros. E, seguindo o conselho do meu
grande amigo e professor de Inglês, o doutor Rocha e Cunha, continuei
a estudar para além das horas do trabalho, preparando-me para fazer o
Liceu, de modo a inscrever-me na Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra. Fiz os sete anos do liceu de rajada, em dois anos
seguidos. E matriculei-me em Coimbra, como estudante-trabalhador,
“voluntário” como era uso dizer-se então, praticamente sem atraso em
relação aos jovens da minha geração.
Aí, as coisas começaram a
complicar-se. As minhas responsabilidades profissionais foram
aumentando e, com o tempo que o estudo das cadeiras de Direito me
tomava, os meus dias eram curtos demais para tudo o que tinha que
fazer. As minhas responsabilidades profissionais foram aumentando e, à
noite, faltavam horas para estudar. Decidi ir consultar o médico da
minha família. Contei-lhe o que se estava a passar e pedi-lhe que me
receitasse alguma coisa que permitisse reduzir as horas de sono.
Que fumasse um cigarrito,
foi o que me recomendou o médico. E foi assim que eu comecei a fumar
aos vinte anos de idade. A conselho médico, frise-se.
A verdade é que segui o
conselho à risca. E tão à risca que, com o acréscimo das minhas
obrigações profissionais, dei comigo a fumar, por vezes, mais do que
três maços de tabaco diários. E isto com sérios danos para a minha
saúde. Dificuldades respiratórias, cansaço a andar, tosse, sei lá que
mais.
Um dia, em 2002, foram-me
diagnosticados dois tumores malignos. Tinha que ser operado de
urgência. A minha saudosa mulher, a minha Claudette, tinha feito um
seguro de saúde que me permitiu vir a ser operado na Clínica
Universitária de Navarra. Disse para com os meus botões: ou é agora
que deixo de fumar, ou nunca mais isso me será possível. Na clínica
não posso fumar e eu não sei se sobrevirei ou não. Certo é que, pelas
16 horas de um sábado de Abril desse ano de 2002, quando ia a entrar
para a Clínica, eu entreguei à minha Claudette o meio maço de tabaco
que me restava dos dois que tinha comprado logo de manhã, bem como o
meu isqueiro. E disse-lhe: “Amiguita, tabaco nunca mais!”
Sobrevivi. E nunca
mais fumei!
Gaspar Albino
Aveiro, 25 de Fevereiro de 2013 |