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BOLORES

A mercearia do senhor Samico

Não sei se se poderia chamar de bairro da Fonte dos Amores ao conjunto de casas e seus habitantes que rodeavam aquele lugar mágico da minha meninice. Há fotografias desse sítio tão bonito: a fonte propriamente dita onde se ia buscar a água para consumo doméstico, transportada em cântaros de barro vermelho à cabeça de donairosas jovens; os tanques onde se lavava a roupa de meia-Aveiro; o relvado, sempre verdinho, onde se punha a roupa a corar.

A casinha da dona Carolina, em cuja soleira eu me sentava a ver a rapaziada a brincar, a correr, a planear a “penhora” da melhor fruta das redondezas. A casinha dos pais do meu amigo José Júlio, por detrás da fonte. A correnteza de térreas casinhas, caiadinhas de branco, cada uma com a sua porta pintada de cor garrida e cada janela emoldurada a condizer, na travessa da Fonte dos Amores, conforme ainda hoje se pode ler numa sua esquina.

Eram famílias humildes, com um enorme orgulho na sua humildade. A vizinhança era mais do que viver paredes-meias; era solidariedade na sua forma mais sublime, mais acabada. Foi neste cadinho de emoções em que as necessidades de subsistência mais básicas eram argamassadas, que a minha família, sob a batuta seguríssima da sua matriarca, a minha avó Joaninha, a viúva do senhor Gaspar, me foi moldando. Os meus irmãos, o Zeca e a Joaninha, herdeira do nome da nossa avó, viveram a maior parte desse tempo em Lisboa, com a minha mãe Mariazinha, enquanto o meu pai andou ao mar. Durante o período da segunda grande guerra, o meu pai foi mobilizado para a marinha de guerra, prestando serviço com base no Alfeite; depois, começou a andar em navios do comércio. Mas não por muito tempo. Quando o meu pai “deu o salto”, em Nova Iorque, como emigrante ilegal, a minha mãe e os meus irmãos voltaram para Aveiro, para a única casa que a todos podia abrigar: a da senhora Joaninha do Gaspar, a nossa avó. Eu tinha nove anos.

É do período em que fiquei sozinho, sem os meus irmãos, que eu guardo as melhores recordações. Foi o tempo da minha escola primária. Era o neto que estava à mão, pau para todos os recados, mas também objecto de carinhos que se não distribuíam por mais nenhum neto ou sobrinho.

Isto de ter um pai ausente, tem o que se lhe diga. A minha mãe nunca teve aquilo a que pode chamar de casa própria. Eu nasci no beco das Galinheiras, na Travessa de S. Sebastião, possivelmente na mesma casa onde, anteriormente, terá nascido o meu grande amigo, o artista plástico Jeremias Bandarra. O meu irmão José Luís, já veio a nascer na Rua Direita, oficialmente na rua dos Combatentes da Grande Guerra. E a minha irmã Joana, na rua de Ílhavo, actualmente rua do Dr. Mário Sacramento, mesmo em frente ao posto da Polícia de Viação e Trânsito, hoje desaparecido. Isto tudo, sempre debaixo da telha da avó Joaninha, e sempre, todos nós, pela mão da mesma parteira: a Dona Angélica.

Aqueles meus cinco anos da Fonte dos Amores, dos quatro aos nove anos, quase que fizeram de mim filho único, neto único. E a convivência que consegui estabelecer com a rapaziada daquele meu bairro é, sem dúvida, a que mais me marcou. Muitas histórias ainda poderei recuperar, bem significativos da vida de penúria que se teve de suportar.

Há dias, encontrei a Dra. Aurora Breda, neta do sr. Samico, dono da melhor mercearia do bairro. E aquela senhora, que eu conheci bebé, lembrou-me quanto avançada para a época era a mercearia do seu avô. Os sacos de papel pardo onde se metiam os artigos já levavam impressa apelativa publicidade que ela me fez recordar. A legenda da gravura de uma patroa a puxar a orelha à criada rezava assim: “Oh Joaquina! Eu não te disse para ires fazer as compras ao Samico, onde tudo é bom e mais barato?!

Era nessa mesma mercearia que a minha avó também se aviava e, normalmente, era eu que ia lá buscar o que era necessário para o governo da casa. Nunca levava dinheiro; era tudo para assentar no livro, isto é, tudo fiado. Contas, contas, era com a minha tia Florize que ao fim do mês lá ia pagar o que se devia. Quando a minha irmã nasceu, todos ficaram espantados. O bebé era grande e rechonchudo. A minha tia foi logo pesá-la na balança do sr. Samico e, para gáudio de todos os presentes, a criança valia 5, 750 kg!

A notícia correu de boca em boca e quase que houve festa no bairro.

Enfim: coisas pequenas essas que se transformavam em grande alegria capaz de fazer esquecer, ainda que momentaneamente, as amarguras desses dias tão difíceis.

Gaspar Albino

Aveiro, 15 de Fevereiro de 2013

 

04-05-2018