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BOLORES

A Sopa da Senhora Luz

Muitos de nós, tempos idos, alunos da Escola Primária da Glória, só calçávamos sapatos ou sapatilhas quando tocava o sino para entrarmos na sala de aulas. A maior parte, a grande maioria dos meus companheiros de escola, era pobre; alguns, até, muito pobres. Isso percebia-se bem pela forma como íamos vestidos: calções coçados, uma blusita feita do pano das camisas que os homens da família deixavam de usar por delidas.

Falo, acima de tudo, dos meus amigos da Fonte dos Amores. Saíamos das nossas casas devidamente calçados mas, mal nos apanhávamos em magote, Avenida de Araújo e Silva fora, as atacas amarradas umas às outras, sapatos à volta do pescoço para agilizar os nossos movimentos, sempre que a chuva amolecia o chão da artéria inacabada, metade do caminho era feito a patinar nas lamas viscosas. Era ver-nos à compita no comprimento das nossas voluntariosas escorregadelas. Chegávamos ofegantes à escola e o frio não nos metia medo.

Era lavar os pés no lavatório que estava próximo das casas da banho, enfiar os sapatos e, ala que se faz tarde, sala dentro, de pé, muito respeitosamente à espera que o professor entrasse para começar a aula.

Eram anos de penúria. Quando entrei oficialmente para a primeira classe, l944, ainda a segunda guerra mundial não tinha acabado. Os bens essenciais escasseavam. O governo de Salazar estabelecera rações individuais com preços tabelados para esses bens que se adquiriam mediante senhas de racionamento. As “bichas”, que se formavam logo que surgia a notícia de que determinado produto (o açúcar, o arroz, o leite, a manteiga, o azeite, o óleo alimentar, a carne, etc., etc….) estava disponível num certo estabelecimento, eram enormes.

O pão que se comia era o de “segunda”, mais escuro, feito com farinhas de mistura. Ou a boroa de milho. O pão “branco”, mais caro, não entrava nas casas dos pobres nem dos remediados.

Dizia-se à boca pequena que até serradura se misturava com as farinhas de cereais para aumentar os lucros das fábricas de moagem. Fortunas se fizeram assim, murmurava-se… E havia “candonga” de tudo o que escasseava no mercado legal… Houvesse dinheiro que as coisas apareciam como por milagre. Mas isso, o dinheiro, era pouco. Às vezes, mesmo nenhum.

Havia fome, muita fome.

Não sei como, mas a minha avó Joaninha e a minha tia Florize, ecónomas exímias, inventavam as refeições de modo a que ninguém da família, um rancho, deixasse de ser alimentado. Mais conduto menos conduto, mais puré menos puré, mais arroz menos arroz, mais pataniscas menos pataniscas. Carne era a de galinha ou de coelho que se criavam num esconso do sótão transformado em capoeira. A manteiga que se punha no pão, quando se punha, era feita em casa a aproveitar a nata do leite.

 Quando o peixe corria mais barato, chicharro do par, sardinha ou petinga da nossa costa, comia-se frito, acompanhado de natas com salsa picada salteadas na sertã, natas essas que se compravam ao litro na confeitaria da Costeira. Ia-se lá pela porta das traseiras, a da Corredoura, porque, pela frente era uma vergonha. Salgava-se o peixe escachado, metido um no outro, nos períodos de abundância e de preços mais baixos. Da salgadeira só saía em tempo de carestia mais feroz.

A sardinha grada, ramelada, como as gentes da Beira-mar lhe chamavam, era petisco apetecido. Com umas batatas, uns grelos de nabo, alho picado, fio de azeite ou de mistura com óleo, tudo cozido na hora e posto no prato a fumegar, era um regalo de refeição!

Era este o ambiente em que a maioria das famílias tinha que viver. Tempos difíceis esses.

A minha escola primária tinha uma arquitectura muito digna que garantia uma grande funcionalidade. Para cada classe, uma sala bem iluminada por amplas janelas que ficavam do lado esquerdo das nossas carteiras de dois lugares; à frente de cada carteira, dois tinteirinhos de porcelana que a senhora Luz, a contínua da escola, se encarregava de garantir, logo de manhãzinha, sempre cheios de tinta azul. Era nesses tinteiros que nós molhávamos os aparos enfiados nas canetas de pau que se compravam na papelaria do senhor Abraão, mesmo ao pé do Governo Civil. O edifício tinha uma planta em U e dispunha de três recreios: um, do lado da primeira classe; outro, no interior do U, que servia a segunda e a terceira classes; e ainda o que servia a quarta classe. Nos dois cantos do U havia residências para professores, no primeiro andar. Num dos cantos, entre a primeira e a segunda classes, tínhamos o reino da senhora Luz, a nossa contínua, mais nossa mãe que funcionária. O sino servia para marcar o ritmo da vida da escola, marcando os tempos de entrada e saída e as interrupções para os nossos recreios da manhã e da tarde.  E era a senhora Luz que media os nossos tempos. Ao meio dia, era ela também que se encarregava de ir buscar o panelão da sopa que era confeccionada na escola das meninas, vizinha da nossa, do lado das Carmelitas. E era ela também que enchia de sopa as malgas esmaltadas que, com um naco de pão, garantiam a refeição quente para muitos dos meus companheiros, não só para os que viviam longe da escola mas também para aqueles que tinham mais necessidades em casa. Para além destes, havia sempre candidatos para a sopa remanescente. É que era uma sopa saborosa, de couves e feijão, que o apetite,  ou mesmo a fome, nos levava a comer e chorar por mais.

Para mim foi sempre um mistério… Quem providenciava para garantir este serviço tão generoso? Não sei… nem nunca saberei.

Seria o senhor Lopes das “Porcelanas”, o senhor vereador que criara o serviço camarário da SOPA DOS POBRES?

Certo, certo, é que era a senhora Luz, a amiga que velava por todos nós e enchia a malga de sopa que alimentava muitos dos meus companheiros.

Gaspar Albino

Aveiro, 8 de Fevereiro de 2013

 

04-05-2018