A ideia mais forte que eu
continuo a guardar deste senhor Lopes é a da bondade personificada.
Poderei dizer que foi o meu segundo patrão… Patrão?... Julgo que nunca
foi, pois, que eu tenha consciência, nunca me pagou qualquer salário.
Ainda andava na escola primária. Chegadas as férias grandes, a minha
avó Joaninha terá falado com o meu padrinho Alpoim, irmão de minha
mãe, para ver se os donos das Porcelanas de Aveiro, Lda., onde ele era
encarregado, me acolhiam durante esse período, quase três meses de
Verão, para eu “não andar na rua”. Eu já conhecia esta expressão. E,
sinceramente, ainda hoje acho que, no meu caso, isso de andar na rua
não era lá muito meu. Perder-me e achar-me era às voltas com os livros
do meu falecido avô materno, o avô António Gaspar, meu homónimo, a
vasculhar os “vegetais” dos seus projectos e a maravilhar-me com seus
estudos para escultura. Da sua estada por terras do Brasil, ele
trouxera livros de Alan Kardec, prova do seu interesse pelas coisas
espíritas. A minha avó sempre me disse que eu não deveria ler nada
desses assuntos, mas, a verdade, é que nunca me proibiu de forma bem
explícita. E eu li-os todos, para matar a minha curiosidade. Era um
mundo um tanto ou quanto misterioso que me provocava muitas
interrogações que eu só conseguia, relativamente, apaziguar com as
lições das senhoras da catequese da Sé e com as sabatinas da minha tia
Florize. Um dia descobri um dicionário de nomes próprios no meio dos
livros daquele meu avô que morrera pouco tempo antes de eu nascer. E
muitas vezes dei comigo a pensar como seria bom tê-lo tido como meu
perceptor para melhor poder apreciá-lo. Foi com a descoberta desse
livro de nomes que eu, pelo menos para mim, encontrei a razão de ser
dos nomes dos meus tios: Florize, Alpoim, Coríntio Aquilino, Lizette,
todos eles muito pouco normais no meio em que eu vivia. Um pouco mais
frequente era o nome da minha mãe: Maria Benedita. Nome que, no meu
conceito, lhe assentava que nem uma luva…
Mas voltemos ao senhor
Lopes… das Porcelanas de Aveiro e ao armazém onde eu iria passar o
melhor dos três meses de férias de Verão. Foi o meu padrinho Alpoim
que me apresentou ao pessoal: ao sr. Henrique (mais tarde viria a ter,
na Escola Industrial e Comercial, um seu filho, o Acácio, como meu
colega); e ao sr. João, que gestionava os movimentos de entradas e
saídas do armazém. O meu padrinho já teria falado com os patrões, pois
o meu posto de trabalho já me estava destinado. Eu iria endireitar os
pregos quase de barrote que teria de arrancar, com um martelo de
orelhas, às tábuas dos caixotes em que o sr. Henrique embalava a
louça, quer de porcelana, quer de vidro, envolvendo, quer uma quer
outra, em papel de jornal e palha. As caixas, o papel e a palha eram o
que vinha das fábricas da Vista Alegre, de Coimbra e da Marinha
Grande. Nada se desperdiçava; não havia taras perdidas. E a maioria
dos pregos era reutilizada, mercê do meu labor. Às vezes saíam
retorcidos de forma exagerada e as minhas forças de garoto eram postas
à prova. Quantas marteladas mandei eu nos meus polegares!
Quando não havia mais
pregos para endireitar, eu ia para o escritório da firma onde
pontificavam os senhores Júlio e Silva. Foi aí que aprendi, miúdo de 8
anos, o que era um “borrão”, prolegómeno da contabilidade de “partidas
dobradas”, que, mais tarde, viria a estudar e dominar. E punham-me a
somar as longas colunas das folhas brancas de trinta e cinco linhas,
de cima até baixo, de baixo para cima, tudo seguidinho e com rapidez.
Nessa altura, toda a contabilidade era manuscrita mas disso eu ainda
não percebia nada. Mas já somava bem e depressa, o que já não era mau.
Apesar de mais martelada,
menos martelada, eu sentia-me muito bem, pois toda a gente me
acarinhava. Até o sr. Lopes, já que, passados poucos dias de eu ter
começado a trabalhar na sua empresa, aí por volta das onze horas da
manhã, ele passava pela secção de embalagem, vindo do escritório, e
levava-me para o jardim, onde criava macieiras de jardim e muitas
roseiras lindas que nem amores, para limpar a terra de tudo o que
fosse daninho. E eu gostava, se gostava!, daquela meia hora, se tanto,
em que o ouvia a falar mais com as plantas do que comigo. Era uma
delícia!
A minha meninice de então
não me permitia formar uma ideia de quem, verdadeiramente, o sr. Lopes
era. Sabia que ele era uma pessoa importante na cidade, um comerciante
muito conceituado. O meu padrinho disse-me que ele até era vereador da
Câmara Municipal de Aveiro. Aos meus olhos de menino aquele senhor,
tão afável, era mesmo diferente da maioria das outras pessoas que eu
via à minha volta.
Um dia, eu próprio, também
fui vereador da nossa Câmara. E foi por conta dessa minha passagem
pela vida municipal que eu descobri muito do que me faltava para
justificar a enorme impressão que aquele homem bom me tinha provocado,
naqueles tempos em que ainda se respiravam os fumos horrorosos da
segunda guerra mundial, com o nosso povo, a minha família também, a
passar enormes privações de toda a ordem.
Como Vereador, ele fez com
que a Câmara de que fazia parte pusesse de pé o serviço que permitiu
mitigar a fome de muita gente em estado de carência absoluta. Esse
serviço foi a SOPA DOS POBRES.
Sem dúvida que o carinho e
a devoção com que o sr. Lopes tratava as plantas do seu jardim terão
sido os mesmos que ele dedicou àquela sua tão benfazeja iniciativa.
Gaspar Albino
Aveiro, 1 de Fevereiro de 2013 |