Não deveria ter mais de
sete anos… Certo, certo, já andava na escola primária da Glória, não
no edifício que lá está hoje no mesmo sítio, mas noutro, para mim
muito mais bonito e organizado. E já morava na rua de Ílhavo, hoje rua
do Dr. Mário Sacramento, pois que a minha avó Joaninha, viúva, para lá
mudara com o seu rancho de filhos, deixando para trás a casa da rua de
Gustavo Ferreira Pinto Basto, onde eu vivera até aos meus sete anos de
idade. Em termos muito práticos, tal mudança significava que tínhamos
passado da zona nobre da cidade de Aveiro para a periferia, pois que
quase campo era o sítio da Fonte dos Amores.
O meu saudoso amigo de
toda a minha verdadeira meninice, o André Ala dos Reis de seu nome
completo, passou a ser só o meu companheiro de fim-de-semana. Com
grande pena minha, pois que, perder-me e achar-me, era, enquanto seu
vizinho, em casa dele que eu passava todo o meu tempo de garoto. Foi
lá que eu comecei a tartamudear as minhas primeiras letras, a fazer os
meus primeiros desenhos, sempre sob o avisado conselho e opinião do
meu mestre, do meu quase irmão, e que, apesar de só ser mais velho do
que eu aí uns três anos, não mais, se comportava para comigo com um ar
paternalista que correspondia à sua maneira bonacheirona de me
transmitir os seus saberes.
A verdade é que com a
minha ida para a escola primária voltei a encontrar-me com o André,
ele na quarta classe e eu na primeira. Mas, feitas as obrigações, os
meus companheiros passaram a ser os garotos da Fonte dos Amores, todos
eles com apetências totalmente diferentes daquelas que o meu amigo
André me instilava. É certo que eu não era muito de andar a brincar na
relva onde as mulheres punham a corar a roupa das senhoras da cidade
que elas lavavam nos tanques da Fonte dos Amores.
Perdia, ou ganhava, muito
do meu tempo a descobrir os segredos do estirador do meu falecido avô
António Gaspar que, nos seus últimos tempos de vida, trocara as
engenharias da construção de estradas (até no Brasil!) pela feitura de
esculturas em pedra de Ançã para adornar sepulturas e capelas, que ele
foi fazendo por esse norte de Portugal fora. Esse estirador fora
arrumado no sótão da casa da minha avó Joaninha e era lá que eu
gostava de passar o meu tempo livre, a ver desenhos do meu avô, a
tentar reproduzi-los, a ver postais com fotografias de modelos para as
suas esculturas…
A verdade é que a minha
avó, apesar de eu não ser nada de vagabundear, logo que se aproximaram
as primeiras férias de Natal, disse-me que eu iria para a oficina de
carpintaria que o meu tio Jeremias tinha na Praça do Peixe para “não
me perder na rua”.
E assim foi. “Pegava” no
trabalho às oito da matina, almoçava em casa da minha tia Lizette, que
nessa altura já morava na Beira-Mar, e regressava a casa ao fim do
dia. As minhas tarefas consistiam em ajudar os oficiais carpinteiros,
chegando-lhes as ferramentas do seu ofício: formões, martelos, goivas,
plainas, garlopas, cadetes (achei sempre piada ao nome desta plaina
estreitinha que nas mãos dos artistas faziam verdadeiros milagres). A
certa altura, já me punham a fazer malhetes, coisa nada fácil para as
mãos de um miúdo como eu. A verdade é que nunca parava. Nos
intervalos, havia sempre pregos de barrote para endireitar, ou
pequenos recados para fazer. Lembro, contudo, um dia em que fui a
Mataduços com o Zé, camarada de trabalho pouco mais velho do que eu,
buscar uns barrotes para fazer uns portões. Para o seu transporte,
levámos um carro de mão. Para lá tudo bem. Mas, na volta, a subir a
ladeira do Olho-de-Água, em Esgueira, com a inclinação, os barrotes
começaram a escorregar. E nós não tínhamos nem tamanho nem força para
subir com a carga. Valeu-nos um senhor que parou o seu automóvel à
frente de nós e deu-nos uma mão, ajudando-nos, assim, a subir a
íngreme ladeira. Já suávamos por todos os lados quando regressámos à
oficina. Mas nem tugimos nem mugimos…
Deste meu primeiro
“emprego” é esta aventura que mais me ficou. Ou talvez não… À
distância, tenho a impressão de que aquilo que vos vou contar me terá
marcado muito mais.
Eu tinha um salário que me
era pago religiosamente ao sábado. Eram cinco escudos que, logo que
chegava a casa, entregava à minha avó. Um dia, o meu tio Jeremias, meu
patrão, entendeu que eu merecia mais. E aumentou-me um escudo. Vinha a
pé para casa todo contente mas, ao passar pelas 5 Bicas, lembrei-me de
que o aro de bicicleta que eu há tanto tempo desejava possuir para
poder andar às corridas com os meus companheiros de escola custava, na
oficina do Sr. Raul, ali mesmo a meu lado, exactamente o escudo do meu
aumento. Meu dito, meu feito. O Sr. Raul era um indivíduo de cara
bondosa, que, talvez por força da sua profissão, andava sempre
dobrado, fazendo lembrar um L ao contrário. Só a cabeça se levantava
para nos falar. Entrei afoitamente na oficina, fechei o negócio,
paguei o aro e lá regressei a casa, todo lampeiro, a correr, radiante,
atrás da roda que eu impulsionava, feliz.
Deixei o aro bem arrumado
atrás da porta de entrada e subi as escadas que me levavam ao primeiro
andar onde morava. Entreguei à minha avó o meu salário e tudo correu
normalmente. Mas, no dia seguinte, domingo, a minha tia Lizette foi
com o meu tio Jeremias visitar a minha avó Joaninha. Durante o chá com
o “bolo de 24 horas” que costumavam levar da Costeira, o meu tio, todo
ufano, quis saber do resultado do aumento que me tinha dado. E aí é
que foram elas! Minha avó chamou-me e quis saber o que eu fizera ao
precioso escudo que lhe não entregara. Envergonhado, contei o que
tinha feito ao dinheiro. Na verdade, eu nunca pensei que o meu tio
fosse logo vangloriar-se da sua “generosidade”. Ouvi um ralhete como
nunca me tinha sido dado. Se eu tivesse um buraco era por lá que eu
desaparecia. É claro que me arrependi. É claro que reconheci que não
devia ter feito o que fiz. Mas o mal já estava feito.
Enfim: uma história das
histórias de um tempo que já lá vai, de um tempo que já se não usa.
Mas que foi tempo…
Gaspar Albino
Aveiro, 17 de Janeiro de 2013 |