Os Bombeiros Novos de Aveiro estão
a comemorar este ano o seu primeiro centenário.
Nessas comemorações surgirá um momento em que se ouvirá um toque de
sentido, na homenagem ao Bombeiro, frente ao monumento aos Soldados da
Paz, no Largo de Maia de Magalhães, o qual, como sempre, emociona
profundamente todos os que sentem a vida de uma corporação que, como
esta, tem sido exemplar escola de virtudes cívicas e tem prestado
excepcionais serviços à nossa Comunidade.
O nosso povo da Beira-Mar chama
"Queimadinho" à escultura de Charters de Almeida que enforma o
monumento. Com efeito, a cor da patina empresta às formas longilíneas
e enrugadas do bronze um ar de corpo consumido pelo fogo e a
designação popular adequa-se perfeitamente à ideia e ao objectivo que
lhe subjaz.
Por certo que o escultor Charters
de Almeida nunca terá pensado em dar nome de "Queimadinho" a esta sua
obra. Mas o povo, com a sua imensa sabedoria, assim o designou.
E nome dado pelo povo nunca mais se
perde.
Aliás como nunca mais se perderá a
forma tão carinhosa como as nossas gentes designam os bombeiros da
nossa cidade: "Velhos", os de lá de cima, da Glória; "Novos", os de lá
de baixo, da Vera-Cruz.
Ainda hoje me pergunto a razão pela
qual este monumento ao Bombeiro – dos mais bonitos que conheço! – terá
ficado implantado no Largo de Maia de Magalhães, tão em frente ao
quartel dos Bombeiros Novos e como que a desafiar a inveja dos
"Velhos”.
Por certo que terá andado por aí,
na escolha do espaço, a mão do sempre saudoso Dr. David Cristo, então
presidente da Direcção dos "Novos" e figura de proa do inesquecível
congresso bombeiral realizado em Aveiro no final da década de 70.
Eu tive a subida honra e especial
privilégio de o servir, a David Cristo, entretanto já presidente da
Assembleia-Geral, e eu eleito presidente da Direcção dos Bombeiros
Novos, ainda no velho quartel da traça do arquitecto Carlos Mendes.
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Carlos Mendes - Projecto de arquitectura parta o quartel dos
Bombeiros Novos. |
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Era um lindo edifício este, o do
quartel dos Bombeiros Novos, então dos mais belos exemplares de Arte
Nova da nossa cidade, apesar de muito degradado.
Quando assumi responsabilidades
directivas nos Bombeiros Novos, o seu destino já estava
inexoravelmente traçado. O projecto do novo quartel já estava
superiormente aprovado e a sua construção seria levada a cabo no
espaço que resultaria da demolição da primeira sede de raiz que a
Corporação tinha tido.
Já nada podia fazer para evitar tão
grande perda. Nesses tempos, a importância atribuída ao património da
Arte Nova aveirense era insignificante e a avaliação histórica do
mérito de muita da nossa arquitectura estava por fazer.
Felizmente que em pouco mais de
três dezenas de anos as sensibilidades mudaram e a consciência cívica
tornou-se muito mais exigente neste particular aspecto da conservação
dos marcos que permitem definir a nossa identidade. Fora esta
consciência já prevalecente por esses tempos e aquele quartel ainda
hoje estaria de pé, possivelmente como casa de cultura ao serviço da
nossa terra. Mas não foi assim que as coisas infelizmente se passaram.
Dessa casa tão bonita resta hoje,
tão somente, um primoroso desenho a nanquim aguarelado com os alçados
fronteiro e lateral da autoria do ilustre arquitecto aveirense Carlos
Mendes. Salvei "in extremis" tal desenho que quase se ia perdendo à
frente de camartelo demolidor. Salvei isso e o monograma da Companhia
da autoria do saudoso artista aveirense José de Pinho, vazado em
cimento, que mandei guardar e posteriormente colocar no novo quartel.
Foi juntando peças de um verdadeiro
"puzzle" que cheguei à conclusão, posteriormente, de que o mesmíssimo
arquitecto Carlos Mendes tinha sido o primeiro Comandante dos
Bombeiros Novos.
Recuperou-se o seu retrato a partir
de uma zincogravura publicada no periódico aveirense "Democrata", de
25 de Maio de 1929, em artigo de elogio póstumo, de autoria de Acácio
Rosa, decorridos que eram 7 anos sobre a morte de Carlos Mendes.
Este aveirense, de seu nome
completo Carlos Augusto José Mendes, nasceu a 13 de Agosto de 1869, no
Cojo, filho de um empregado da Alfândega e de uma padeira. Era gente
muito pobre.
Apesar de inúmeras dificuldades
materiais, o seu enorme talento artístico impeliu-o a matricular-se na
Academia Portuense de Belas Artes, em Arquitectura Civil, em 21 de
Outubro de 1889.
Aí frequentou também Escultura,
Desenho Histórico e Pintura, tendo sido companheiro de estudos dos
que viriam a ser os tão conhecidos aveirenses, arquitecto Jaime
Inácio dos Santos e escultor José Maia Romão Júnior.
A grande pintora portuguesa
Aurélia de Sousa foi sua contemporânea na Academia.
Carlos Mendes foi primeiro 2°
prémio do concurso "Soares dos Reis", com um projecto de “invenção
de arquitectura civil”.
Nos arquivos da Academia
Portuense de Belas Artes há notícia de Carlos Mendes, como aluno,
ate 31 de Agosto de 1894. |
Carlos Mendes - Desenho a carvão; Aula do Nu. Academia Portuense
de Belas Artes – 1894. |
Em 1908, publicou um anúncio no
jornal aveirense "Democrata", oferecendo-se como professor de desenho
e pintura e projectista de arquitectura.
Foi, como já referi, o primeiro Comandante dos Bombeiros Novos, de
1 de Dezembro de 1909 até Outubro de 1913.
O primeiro quartel, feito de raiz,
de sua autoria, começou a ser construído em 1920.
O desenho do auto de posse da
Primeira Comissão Municipal Administrativa Republicana é de sua
autoria.
Carlos Mendes foi chefe da
repartição das Obras Municipais da Câmara de Aveiro, merecendo,
conforme registos em actas camarárias, desde a mais violenta censura
até ao mais rasgado elogio, como funcionário, como arquitecto e como
cidadão.
Tentou a sua sorte nas Colónias e
deixou em Lourenço Marques, hoje Maputo, talvez a sua obra
arquitectónica mais impressiva: o Mercado Municipal desta cidade
moçambicana é de sua autoria, constituindo visita obrigatória para os
estudantes de arquitectura da África do Sul.
Veio a morrer em Aveiro, aos 25 de
Maio de 1922.
Em traços largos, aqui ficam os
primeiros assentos dum trabalho biográfico que me proponho levar a
cabo, procurando resgatar do olvido alguém que foi talentoso
desenhador, pintor e arquitecto: Carlos Mendes.
Gaspar Albino |