A expressão não é minha; é do
povo que, na sua sabedoria infinita, tem sempre razão. E mais razão
ainda quando consegue sintetizar uma realidade complexa em meia dúzia
de palavras. “Está-lhe no sangue”… “está-lhe na massa do sangue”!
Imagino-a, ainda dez reis de
gente, pela mão do avô, a ir à Meia-Laranja da nossa praia da Barra,
acenar o adeus ao seu “Novos Mares” que partia de longada para a pesca
do bacalhau, no meio do choro lancinante das nazarenas, das miroas,
das ílhavas, das gafanhoas, das murtoseiras, das poveiras, das
vianenses… viúvas a prazo de seis e mais meses com o rancho dos
filharotes à roda das saias. Imagino-a a ir ao escritório da empresa,
sempre pela mão do avô, à segunda-feira, logo de manhã, a saber novas
da pesca pelo telegrama da Rádio Marconi. Imagino-a a aprender, pela
voz de quem as viveu, o significado das brisas e das brisalhadas que,
lá nos Bancos da Terra Nova, iam impedindo que a captura do “fiel
amigo” corresse mais de feição. Imagino-a a saltitar à frente do avô,
para ser a primeira a vislumbrar o lugre que se aproximava dos molhes
da Barra, no regresso da faina, com a maré a lavar-lhe o convés, tão
ajoujado vinha o porão de peixe. Imagino-a, ainda, a não perder pitada
do linguajar apimentado das fafeiras, na descarga do peixe para o
trapiche, a caminho da seca; a acompanhar os cânticos saídos das
mulheres, de bruços, agarradas à escova, escafonando o bacalhau nas
tinas de lavagem. Imagino-a, também, a pôr-se em píncaros de pés para
colocar um peixe ao sol, nas mesas de arame do secadouro. E a apartar
o mais pequeno, teso de seco. E a enfardá-lo...
Tudo o que acima imaginei está
contido nas palavras não escritas dos livros que Ana Maria Lopes tem
vindo a publicar, todos eles a cheirar a maresia, todos eles a saber a
sal.
***
Há dias, fui revisitar o Museu
Marítimo de Ílhavo, coisa que faço amiúde. Mas, desta feita, a causa
próxima foi a de ir prestar o meu tributo aos homens que foram ao
bacalhau e que lá se encontram numa caixa com memória que o Professor
Álvaro Garrido, actual director do Museu, assim apresenta: « /…/ é um
memorial em forma de cubo, instalação e fotografia, composto por
centenas de rostos de protagonistas da “faina maior” e respectivos
nomes. O projecto resultou do restauro e digitalização do espólio de
cerca de vinte mil fotografias e fichas de tripulantes de navios
bacalhoeiros /…/.»
Porque evoca, exalta e interage,
a “Caixa da Memória” constitui um projecto expositivo semelhante a
outras abordagens estéticas de memórias do trabalho que têm sido
elaboradas em museus estrangeiros e centros de arte. Em sucessivos
módulos, serão exibidas mil e duzentas fotos de pescadores e oficiais
da pesca do bacalhau que fizerem da grande pesca o seu modo de vida
(ou de nesse modo de vida vê-la acabada, acrescentamos nós…).
Familiares e amigos dos tripulantes poderão interagir com a
instalação, buscando os rostos e nomes dos homens que foram ao
bacalhau. Tratando-se de um tributo a todos os pescadores
bacalhoeiros, a “Caixa da Memória” irá, posteriormente, itinerar em
várias localidades do litoral português”.
Numa das próximas “caixas” lá
hei-de encontrar o rosto de meu pai, pois que tenho prova de que ele
faz parte do espólio da extinta Comissão Reguladora do Comércio do
Bacalhau, que foi confiado ao Museu Marítimo de Ílhavo, quando este
era dirigido por Ana Maria Lopes.
São “Caixas da Memória” que vão
garantir, no futuro, peregrinações ao passado de muitos de nós.
Esta minha primeira peregrinação
não estaria completa sem aquilo que faço sempre e de que nunca me
canso: uma volta geral às salas do museu, com as quais vou aprendendo
por conta das coisas novas que, em cada visita, vou descobrindo. E
nunca saio sem parar na sua loja, o que é uma tentação. Desta vez eu
sabia estar lá, finalmente, um livro, O VOCABULÁRIO MARÍTIMO PORTUGUÊS
E O PROBLEMA DOS MEDITERRANEÍSMOS, de autoria da Dra. Ana Maria da
Silva Lopes, cuja reedição fac-similada se verificou no último mês de
Maio, depois de estar esgotadíssima durante muitos anos.
Trata-se da sua dissertação de
licenciatura em Filologia Românica, apresentada à Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra, em Janeiro de l970, precioso trabalho de
pesquisa pela autora realizada e que, em 1975, foi publicado pelo
Instituto de Estudos Românicos e editado em separata da Revista
Portuguesa de Filologia.
Das palavras introdutórias desta
obra citamos: «Portugal possui um quilómetro de costa por cada 100
quilómetros quadrados e só uma parte limitada a nordeste se encontra a
mais de 200 quilómetros do mar. Como é que um país com esta situação
geográfica se havia de furtar às fainas de pesca, de navegação e
comércio marítimo? O nosso vocabulário marítimo é duma riqueza e
variedade extraordinárias e, quem o desconhece, pode estar certo de
que ignora grande parte do património da língua portuguesa.»
Eu já conhecia a obra através
de um exemplar que a própria autora me tinha emprestado. Mas sempre
fui perguntando pela sua reedição, pois que se trata de um livro que
consegue somar ao trabalho científico da pesquisa linguística o calor
de alguém que sentiu e sente as coisas do mar e das suas gentes com
verdadeira paixão.
É um Portugal salgado que nele
se descobre em cada virar de página. Obrigatória, portanto, a sua
leitura.
Gaspar Albino — 2006-10-02 |