Arte de Xávega
A arte de xávega, do árabe xabaka, é um aparelho de pesca
de arrasto demersal que, na nossa costa, é lançado pelo barco de mar.
Partindo da praia, desloca-se até à distância consentida pelo aparelho e
à praia regressa, iniciando-se, então, o arrasto propriamente dito.
A xávega é, portanto, uma arte envolvente de arrastar pelo fundo
e alar para a praia, constando o aparelho, ou arte, de um saco
prolongado por duas asas ou mangas, nos extremos das quais
se amarram os cabos de alagem ou calas.
É constituído por um extenso pano de rede de malha quadrangular,
interceptado, ao centro. por um saco do mesmo género: o espaço da
intercepção corresponde à boca do saco e designa-se pelo nome de
bocada: às duas fracções do pano, que se desenvolvem para
cada lado desta, dá-se o nome de mangas, que, desde a junção à
bocada, decrescem em largura até à extremidade oposta, que tem o
nome de calão, ponta da manga onde se prendem as calas.
que são os cabos de alagem deste sistema de aparelho de pesca.
Esta é a descrição da arte, como nos é dada pelo etnógrafo Domingos José
de Castro, na sua obra "AVEIRO – Pescadores", editada pelo Instituto
para a Alta Cultura, em 1943.
Por essa altura, o saco, de forma trapezoidal, andava pelos 70
metros de circunferência, 40 de profundidade e 8 de largura, na cuada
ou fundo do saco. A malhagem era. somente, de 1 cm, na cuada, até
atingir 6,5 cm, na bocada, que era guarnecida, na sua parte
superior, por uma cortiçada – flutuadores de cortiça – e, na sua
parte inferior, era lastrada por tijolos.
Cada uma das mangas tinha 230 metros de comprimento, começando
por uma largura de 25 metros, na parte do saco, e decrescendo até
20 metros no calão. As mangas eram constituídas por
panos de fio singelo de malha, que só era dobrado junto à bocada.
Ao longo das mangas, pela parte de cima e por um e outro lados,
corriam, paralelamente, duas linhas, a uma distância de 35 cm e
guarnecidas com pandas, bocados de cortiça que suspendiam o
aparelho a uma altura de água que nunca deveria exceder a da bocada.
Pelo lado de baixo, mais duas linhas guarnecidas de discos de barro
cozido – pandulhos ou bolos – lastravam as mangas,
de forma a que o aparelho arrastasse mesmo pelo fundo. Nas extremidades
de cada uma das mangas, eram presos por uma corda barris
estanques, chamados balizas ou arinques. Um outro barril –
o clime – era colocado na cuada do saco.
O aparelho era feito, nesses tempos, de fio de linho, que era,
depois, posto numa infusão de casca de salgueiro, ficando com uma cor
acastanhada, para não assustar o peixe. As mangas, para
além do encasque, eram passadas por um banho de alcatrão.
As calas de alar o aparelho podiam ser de linho ou de
esparto e eram divididas em rolos, partes que se emendavam umas
nas outras. Estes rolos chamavam-se cordas, quando eram
singelos; cabos, quando eram dobrados; e olras, quando
eram triplos.
O número de rolos, que constituíam as calas, variava de
praia para praia, podendo ir de 160 rolos de 60 metros cada, até
29 rolos de 99 metros cada.
Isto define que os barcos de mar se poderiam afastar da praia,
de 2.800 até 9.600 metros, para lançar o aparelho de pesca.
As calas eram transportadas, do palheiro da praia até ao barco,
rolo a rolo, por vários grupos de 2 homens munidos de um
bordão, colocado ao ombro.
A rede era levada em procissão pelos tripulantes, colocando-se, no
barco, primeiro, a manga inicial, depois, o saco, seguido
da segunda manga; por fim, colocava-se, a bordo, o reçoeiro
– isto é: a cala de recolha da arte para terra.
Esta é uma descrição sumária dos elementos físicos que constituíam o
aparelho da xávega propriamente dito.
Hoje em dia, as artes de xávega, em esquema, são muito
semelhantes às dos tempos recuados, diferindo, somente, nas suas
dimensões e nos materiais de que são feitos os aparelhos ou
redes. Ao linho sucederam os nylons, os polipropilenos e os
polietilenos.
Com efeito, as maiores redes de xávega da nossa costa vão, agora,
somente, até cerca de 200 metros. Mas há xávegas mais pequenas que não
ultrapassam os 100 metros, se bem que todas mantenham a mesma estrutura
básica de outros tempos, quando a arte propriamente dita chegava
a ultrapassar os 300 metros.
Em 1993 ainda não havia enquadramento legal da arte de xávega que estava
em uso.
Nesse mesmo ano, surgiu um projecto de portaria com esse objectivo, da
autoria do ex-deputado pelo Distrito de Aveiro, Dr. Olinto Ravara,
congeminado a partir da realidade então verificável na arte e de
pareceres científicos emitidos pelo Instituto Português de Investigação
Marítima.
Tal projecto procurava definir as características e dimensões do
aparelho ou arte de xávega, de acordo com um mínimo de
exigências, que já se impunham.
Assim, teríamos que o saco não poderia ter um comprimento
superior a 50 m; que a sua largura máxima na boca não poderia
exceder os 20 m e na cuada 10 m. A malhagem do saco
deveria ter o tamanho mínimo de 20 mm.
As mangas ou asas da arte não poderiam exceder o
comprimento de 300 m; e a sua largura máxima, nos miúdos, seria
de 80 m e, nos claros, 40 m.
Os cabos de alagem da arte deveriam ter o comprimento máximo de 3 000 m.
As artes que se usavam, efectivamente, nesses não recuados tempos,
atraiçoariam, porém, estas bitolas, particularmente, no concernente a
malhagem do saco.
O que pauta, hoje em dia, a arte de xávega é o Regulamento da Pesca por
Arte Envolvente-Arrastante, constante da Portaria n.º 1102-F/2000 de 22
de Novembro, a qual expressamente revogou a Portaria n.º 488/96, de 13
de Setembro.
Conforme aquela Portaria, por «pesca por arte envolvente-arrastante
entende-se qualquer método de pesca que utiliza estruturas de rede, com
frequência dotadas de bolse central e grandes “asas” laterais que
arrastam e, prévia ou simultaneamente, envolvem ou cercam». Ainda de
acordo com a mesma Portaria, esta pesca só pode ser exercida com a
chamada arte de xávega, a qual é uma arte de alar para terra. O esforço
de tracção necessário à alagem da arte pode ter origem mecânica ou
animal, incluindo-se nesta a força braçal humana. A xávega só pode ser
largada por embarcações licenciadas para o efeito e estas só podem
operar na área da jurisdição da capitania de porto do seu registo.
Julgamos que já se descreveu de forma bastante pormenorizada este
aparelho de pesca, o qual se distingue de outros tipos de artes
envolventes arrastantes, como a bujiganga, o chinchorro,
etc., pelo facto de a xávega ser de maiores dimensões e
apresentar malhagens diferentes nas mangas e no saco,
malhagens essas que, nas asas, aumentam da boca do saco
para as extremidades, onde prendem os cabos de alagem, e, no saco,
aumentam do fundo para a boca.
Falemos agora de:
O Barco de Mar ou
Xávega
Fácil se torna entender que a arte de pesca empreste o seu nome ao barco
com que ela se exercita.
Com efeito, assim acontece no caso do barco de mar, que é
utilizado na xávega, na nossa costa ocidental atlântica, desde
Espinho até Vieira de Leiria, ao qual os pescadores também chamam, tão
simplesmente, de o xávega.
Difícil se me torna, todavia, chamar ao nosso barco de mar de
saveiro, como vejo acontecer, por eexmplo, no DICIONÁRIO DA
LINGUAGEM DE MARINHA ANTIGA E ACTUAL, obra rigorosa do comandante
Humberto Leitão e que constitui o mais completo elucidário da
especialidade existente em Portugal. Com efeito, nele se define
saveiro como embarcação de fundo chato, com as formas semelhantes às
do meia-lua, havendo por diferença principal ter a proa mais
erguida que a popa.
Os saveiros /.../ não se afastam da costa e servem,
especialmente, para conduzir as redes, que são lançadas em frente da
praia.
Saveiro também chama ao barco de mar o arqueólogo
Octávio Lixa Filgueiras, no seu trabalho THE XAVEGA BOAT – A Case
Study in the integration of Archaeological and Ethnological Data,
apresentado, em Setembro de 1976, num simpósio levado a cabo no Museu
Marítimo Nacional, em Greenwich, subordinado ao terra genérico de,
traduzo, Origens e Técnicas na Arqueologia de Barcos.
Mas saveiro será, já, tão somente, a nossa bateira de mar,
bem distinta do barco de mar na sua forma, se bem que não
totalmente na sua função e uso, aos olhos dos especialistas, D. Manuel
de Castelo Branco (EMBARCAÇÕES E ARTES DE PESCA, Lxª, 1981) e Domingos
José de Castro, na obra que já citámos no início.
Este etnógrafo define o barco de mar como "aparentemente
desprovido de solidez /.../, de bicas exageradamente alteadas /.../, mas
que, na realidade, possui um jogo de características especiais que
parece explicar as condições que o apropriam à função marítima que lhe é
atribuída.
Precisamente porque tem de oferecer às ondas a menor resistência para as
galgar de pronto, mal assente na água, como o descreve Raul Brandão,
este barco conjuga o seu formato, semelhante a um crescente, com o
sistema planiforme de fundo, condições estas que lhe permitem, pela
falta de portos de abrigo, o acesso directamente do areal para o mar e
vice-versa, e suportar com mais facilidade, pela elevação pronunciada
dos castelos da proa e da ré, a violência da pancada do mar, ou quebra
das ondas, na manobra arriscada da travessia da faixa de rebentação,
geralmente forte, no litoral de areia que se delimita, a norte, nas
primeiras rochas de Miramar e, a sul, ultrapassando o Cabo Mondego, nas
areias da praia de Vieira de Leiria.
Raul Brandão compara-o com "o feitio côncavo do espaço que vai de vaga a
vaga" – o seio da vaga, acrescentamos nós.
O barco grande de xávega é, ainda hoje, como sempre foi,
construído de madeira de pinheiro, e tinha, nas construções em uso nos
meados deste século, 16,5 m de fora a fora, 4,2 m de boca, 3,5 m de
largura máxima de fundo entre costados e um pontal de 1,3 m. Deslocava
cerca de 15,5 toneladas, calava cerca de 1 metro e tinha um esqueleto de
27 cavernas.
O período de vida útil dum barco deste tipo era de cerca de 8 anos,
desde que submetido a regulares tarefas de manutenção.
Desde os seus alvores, foi sempre um barco a remos, com grupos de 2 ou
de 4 remos. No primeiro caso, os remos chamam-se: o de vante, remo-maião;
o outro, remo-proa. Nos barcos de 4 remos, estes chamavam-se, de proa
para a ré: remo-castelo-da-proa, remo-maião, remo-proa e
remo-castelo-da-ré.
No caso dos barcos de dois remos, a tripulação era de 34 homens e nos de
4 remos, 46 homens.
Actualmente, a grande maioria, se não a totalidade dos barcos de mar, só
tem 2 remos, usados nas manobras de largada e de chegada à praia.
São mais pequenos de porte e a sua propulsão, no lance da arte, é
garantida por motores fora-de-borda, da ordem dos 40 cavalos, enxertados
na rabada dos barcos.
Quanto à origem destes barcos únicos na nossa costa, muito há que
esclarecer.
O nosso Rocha Madahil, no seu trabalho BARCOS DE PORTUGAL, escreveu:
"Na Costa baixa entre Espinho e Mira fixou-se há muitos séculos outro
tipo de barco de pesca, graciosíssimo, perfilado em crescente de lua,
que mal aflora a vaga e vai a grandes distâncias, sem leme sequer,
levado sempre pelos possantes remadores, que o empregam principalmente
na pesca da sardinha. Por comparação da sua silhueta com o petróglifo de
Häggeby, conseguimos determinar-lhe a ascendência normanda, dos Vikings,
que utilizavam barcos assim para viagens de longo curso; do conhecimento
da nossa costa por esses povos do Báltico não é lícito duvidar:
documentos portugueses do século XI referem algumas das piratarias
desses Laudomanes, e aprisionamento de populações das vizinhanças de
Ovar, resgatadas, depois, por cabeças de gado, artefactos e moios de
sal. Cerca de dois séculos duraram essas piratarias dos normandos nas
costas da Península, e nos nossos barcos do litoral vareiro ficou até ao
presente a imagem viva dos seus transportes marítimos, que fizeram o
terror dos nossos antepassados, mas que ofereciam notáveis condições de
navegabilidade, ainda hoje não excedidas para as fainas da pesca local.
Esse mesmo tipo de barco, que supera em elegância qualquer outro da
costa portuguesa, encontra-se em Lavos, ao sul do Mondego e na Caparica,
onde o conhecem por saveiro ou meia-lua; ao norte,
irradiou também para a Afurada e Lavadores; poucos mais anos durará."
Como se enganou Rocha Madahil neste vaticínio, como muito bem se prova
com o renascer actual da arte de xávega, por razões que adiante
aflorarei.
Rocha Madahil não se terá enganado, somente, neste seu antever das
coisas futuras. É que as origens normandas, que ele procurou justificar,
são totalmente contrariadas pelo arqueólogo naval Lixa Filgueiras, no
trabalho que já atrás mencionei.
Com efeito, este Professor Arquitecto tão dado às coisas da arqueologia,
à luz de conhecimentos muito mais recentes e profundos, divide o nosso
país em duas zonas. E o que o divide é o Douro, afirmando que, a Norte
deste, se verificam influências primevas escandinavo/germânicas, nas
embarcações de rio, e bretãs, nas embarcações da costa. Como exemplo
acabado das primeiras, aponta o rabelo do Douro: e das segundas,
a lancha da Póvoa, que aquele cientista compara, de forma
evidente, com o sinagot bretão.
Para sul do Douro, e em toda a nossa costa, Lixa Filgueiras afirma que o
saveiro, para ele o nosso barco de mar, é o tipo de barco
mais significativo e o vector principal da mais antiga influência
mediterrânica.
Referindo-se a uma origem mesopotâmica, ele realça a identidade
espantosa – técnica e formal – entre o nosso barco de mar e um barco da
antiga cidade babilónica de UR, que ainda sobrevive no baixo Eufrates e
que, pela rota comercial até Ugarit (via Eufrates, Aleppo, Alalakh),
terá chegado até ao Mediterrâneo.
Avança, ainda, com evidências iconográficas: selos cretenses,
reproduzindo barcos do mesmo tipo, pinturas da tumba de Hagia Tríada e,
possivelmente. os murais de Thera, que garantem a presença de barcos
idênticos no mar Egeu, numa progressão para ocidente. devidamente
documentada.
Mais procura alicerçar a sua tese, verdadeiramente enriquecedora do
nosso imaginário histórico recuado, avançando com o problema da origem
étnica das comunidades piscatórias, que praticam a xávega com o
nosso barco de mar, fundamentando-se, com as suas peculiaridades,
na coincidência das áreas de distribuição destes barcos, com as
principais áreas de refúgio dos povos do sul da Ibéria, depois da queda
de Tartesso.
Tudo isto, repondo a questão em aberto da influência cretense na
desaparecida Tartesso.
Não resisto a citar, recorrendo ao texto inglês, de Lixa Filgueiras, já
citado:
"Acredito que será muito mais gratificante rever a teoria de Schulten
quanto à origem cretense dos povoamentos pré-tartessianos do sul de
Espanha, desde os primeiros passos da metalúrgica local, cerca de 2700
a.C., até à chegada cerca de 1 100 antes de Cristo, dos fenícios a
Cádis, capital proposta por Schulten para Tartesso, período em que se
verificaram importantes acontecimentos na zona do mar Egeu e que, por
certo, se reflectiram na costa mediterrânica ibérica. Os selos cretenses
com barcos de meia-lua, datados de cerca 2.200 a 2.000 a. C., coincidem
com a emergência da talassocracia cretense e subsequente estabelecimento
do seu comércio nas praias peninsulares. A rota do estanho e da prata
funcionou e é o arqueólogo Schulten, a quem se recorre mais uma vez, que
afirma que há vasos, colares e braceletes encontrados no SE da península
e que são de origem cretense: assim como adagas de cobre peninsulares
datadas do III milénio a. C. foram também encontradas naquela ilha de
Creta. Tudo isto mercê do tráfego dos barcos de meia-lua, antepassados
dos saveiros, nossos barcos-de-mar.
A frota, em que assentava a talassocracia cretense, terá chegado a
Tartesso, e daqui até à nossa costa, como já veremos.
Recorrendo a Fernando de Almeida (in Enciclopédia Verbo),
Tartesso terá sido um lendário estado monárquico peninsular, que
abrangia uma vasta área, que iria desde a actual Cartagena até à foz do
Tejo e cuja capital, possivelmente do mesmo nome, se localizaria em
Cádis ou Sevilha. Tartesso manteve vastos contactos com os povos do
oriente mediterrânico, por força dos quais terá surgido uma escrita
semi-silábica, de que são conhecidas inúmeras inscrições, encontradas no
Algarve e no Alentejo.
Mercê das suas riquezas mineiras, manteve este reino contactos com
fenícios, etruscos, cartagineses, gregos, celtas e romanos.
Tartesso entrou em decadência e sucessores do seu último rei, Theron,
terão sido os turdetanos e, depois, os túrdulos.
E terá sido um grupo de túrdulos que, segundo Estrabão, acompanhou um
bando de "célticos", numa campanha em direcção ao norte da Península.
Conforme Matoso, terão sido os Túrdulos Velhos (Turduliveteres), citados
por Mela e Plínio, que ocuparam as regiões do Vouga e do Mondego,
alastrando até junto do Tejo.
Entre as suas cidades, contavam-se, entre outras, Aeminium (Coimbra),
Conímbriga e Talábriga.
A nossa Talábriga, topónimo formado por TALA + BRIGA, tendo o primeiro
elemento, possivelmente, origem na lingua tartéssica e que significa
"barro", "argila”; o segundo, "briga", é de origem céltica e quer dizer
“monte".
Ora, Talábriga ficaria, segundo o itinerário de Antonino, a 40.000
passos de Aeminium, (Coimbra), na estrada romana que iria desta até
"Cale", hoje Gaia: mais ou menos a 59 Km por norte de Coimbra, aqui
mesmo, na Branca, ao lado de Albergaria, onde ainda se vêem restos de
via romana.
Concluindo-se, para incitar a novas buscas: a dispersão das populações
do sul peninsular, depois da queda de Tartesso, pode-se comparar com as
rotas de unificação dos barcos de meia-lua, os nossos barcos-de-mar, que
se orientaram, em primeiro lugar, para a nossa região e, depois,
refluíram, por razões bem diferentes e em épocas bem posteriores, para
as várias praias de areia da nossa costa ocidental e do Algarve.
Falemos agora de:
Homens da xávega
A história da arte de xávega é, em larga medida, a história do
povoamento das areias litorâneas portuguesas do Atlântico ocidental e
algarvio, particularmente, no grande areal da costa norte de Espinho,
até Vieira de Leiria e, mais para baixo, na Costa da Caparica, Santo
André e Monte Gordo.
Habitando em precários palheiros construídos na praia ou, até, sob os
seus próprios barcos, ao longo dos séculos, começando muito antes até da
constituição da nossa nacionalidade, há provas do uso de redes lançadas
desde terra e recolhidas, também, para terra, só à força de braços; com
barcos e com ajuda de braços e com juntas de bois ou, como acontece
hoje, com tractores.
Os discípulos de Jesus, pescadores da Galileia, praticaram esta
pescaria. Assim como os fenícios, os gregos e os romanos; os árabes, os
catalães, os franceses e espanhóis e os andaluzes, também.
Contudo, as redes de xávega, tais como as descrevemos, terão sido
trazidas para Portugal, por catalães, tanto do lado da França como do
lado de Espanha, que aperfeiçoaram a arte, nas águas mediterrânicas.
Nós estamos numa terra que se pode também considerar o centro de
irradiação da xávega. Possivelmente, e já agora invocando Jaime de
Magalhães Lima, por causa da influência tartéssica. Por volta de 1925,
Magalhães Lima, com efeito, já sugeria que os pescadores de Ílhavo, uma
das mais importantes comunidades piscatórias da Ria de Aveiro,
descenderiam do povo de Tartesso.
Mas falemos, agora e aqui, acima de tudo, da pesca da nossa região.
No século XI, já se amanhavam marinhas de sal na nossa Ria. Ovar,
Aveiro, Ílhavo, Vagos e Mira já tinham deixado de ser povoações
bordejando o Atlântico, para passarem a ser terras da Ria.
No século XII, a nossa barra estava na Torreira; e só séculos mais tarde
é que a restinga de areia, crescendo do norte, a empurra até Mira.
Os nossos pescadores são pescadores-camponeses e os palheiros da nossa
costa só os abrigam nos períodos da safra.
No século XII, há provas de que já havia pescadores de Ovar a fazer
pesca de mar, assim como em Buarcos, Lavos e Mira.
À medida que a Barra avança para sul, deixa de haver marinhas de sal em
Ovar; as espécies de água salgada começam a rarear na laguna e a sua
pesca começa a empobrecer.
Os homens de Cabanões, Ovar, no século XVI, começam a trabalhar no
Furadouro, pois que era a praia mais próxima. Depois, avançam para a
Torreira e São Jacinto. A capela da Nossa Senhora das Areias é anterior
a 1549. Por essas alturas, usam o chinchorro, uma arte mais pequena que
a xávega e cujo pescado mais significativo era a sardinha.
No século XVIII, Aveiro não teria mais de 1 400 casas em ruinoso estado,
e a população morria de fome e de febres.
Mas, antes, no século XVI, Aveiro, no seu apogeu, armava mais de 150
barcos para o comércio do sal e para a pesca do bacalhau e não há
notícia de emigração de pescadores.
Já não assim no século XVIII, século da miséria das nossas terras, com a
Barra praticamente fechada.
Os Ílhavos fundam, em 1770, uma colónia na Caparica.
O século XIX é um período mau para a economia da Ria. A barra está má e
dá-se a migração dos nossos pescadores. Formam-se mais companhas ao
longo da nossa costa: na Costa Nova, na Vagueira, no Areão; os palheiros
de Mira começam a ser construídos por pescadores de Ílhavo, no princípio
desse século; e, depois, surge a Tocha.
É um Ílhavo de nome Barreto que leva para a Cova, a sul do Mondego, em
1808, a sua companha. Um outro Ílhavo, logo de seguida, funda a companha
de Lavos. E um outro, seu neto, chega à Leirosa.
Na mesma levada, é gente de Lavos e de Mira que começa a trabalhar com a
xávega, em Pedrógão.
Em Vieira de Leiria, a xávega também surge no princípio do séc. XIX.
Nos meados do século, a Costa da Caparica surge como colónia de ílhavos
e de algarvios.
No virar para o século XX, há lá 10 companhas com mais de 700 pessoas.
Depois, é a Fonte da Telha, a Costa da Galé, a lagoa de Santo André,
sempre com gente da mesma origem: Ílhavo.
Quando o mar não deixa, os pescadores de Ovar e de Aveiro ficam-se por
Cascais e, mais adentro no Tejo, nas águas de Vila-Franca: são os
avieiros.
Mas a verdade é que, no século XIX, as capturas feitas pelas companhas
de entre Espinho e Mira representam, grosso-modo, 1/6 do total das
pescas de Portugal.
Mais de 5.000 pessoas empregam-se em 90 companhas, que se espalham por
25 praias da nossa costa ocidental.
Os barcos e as xávegas aumentam de tamanho e começam a ser utilizados
bois na faina.
Uma companha, que chegava a empregar 200 pessoas, entre tripulantes e
pessoal de terra, com a utilização dos animais, passa para de 80 a 100
pessoas, como consequência do uso das juntas de bois.
As redes chegam a atingir os 700 metros, com lanços que chegam também a
afastar-se da costa 6 Km, usando, em cada manga, cordão de alagem que
atinge os 10 Km.
Os barcos de mar chegam a medir, de fora-a-fora, 16 metros, e os de 4
remos levam a bordo 46 homens, aos remos e aos cambões.
Até meados do século XIX, as companhas tinham uma natureza
cooperativista, repartindo-se o resultado da pesca em quinhões, uma vez
deduzidas as despesas.
Depois, surgem empresas dominadas pelos grandes proprietários,
comerciantes e conserveiros, pois que o espírito de companha se perdeu,
em consequência de abusos dos arrais, que tinham deixado de ser eleitos
e começaram a aparecer como patrões. Os pescadores passam a
assalariados, recebendo um salário em dinheiro – a soldada –, mais uma
pequena caldeirada e algum vinho.
Com o relançamento da pesca longínqua e do arrasto costeiro, em meados
do século XX e primeiras décadas da sua segunda metade, as xávegas quase
que desaparecem.
Mas, nas últimas dezenas de anos, com a política de abate de navios,
favorecida pela Comunidade Europeia, em consequência da implantação de
zonas económicas exclusivas e de uma tentativa de fazer com que se
adequem as capacidades de captura aos recursos piscícolas
sobre-explorados, em águas de países terceiros, está-se a assistir ao
renascer da arte de xávega na nossa costa e ao recrudescer das pescarias
artesanais, não só no litoral, como no interior da Ria. É que milhares
de pescadores perderam, por causa destas mudanças, o seu emprego nas
pescas industriais.
E, aí, Rocha Madahil não acertou no seu vaticínio, que até
corresponderia a um desiderato correcto.
A xávega renasceu, mas, nem por isso, deixa de ser uma arte, como sempre
foi, economicamente muito aleatória e por muitos considerada nociva para
as maternidades. Por regra, o peixe capturado é de dimensões reduzidas.
E os rendimentos dos pescadores são insatisfatórios, por insuficientes e
não regulares.
Este renascer de uma arte tão pouco segura, economicamente considerada,
é sinal de doença social, que carece de diagnóstico adequado e de
medidas curativas, que não passam, somente, pelo seu hipotético
valimento como atracção turística.
Como actividade económica, com futuro válido, por certo que não é, pelo
menos na nossa perspectiva
Apesar de os pescadores, no seu atavismo, poderem gritar que sim, como o
têm vindo a fazer nos últimos tempos, pois
não
vislumbram, só
por si mesmos, alternativa de vida.
E, contudo, o espectáculo está aí, nas nossas praias, na alacridade das
belíssimas imagens que as objectivas gulosas, ávidas, dos turistas vão
roubando ao suor de quem pratica tão ingrata arte.
Gaspar Albino. |