XV
Vivendo as pessoas
circunscritas à sua terra, porque qualquer deslocação era difícil, é
evidente que tinham de ser elas a criar o próprio divertimento. As
festas, religiosas ou profanas, e o teatro, de cuja tradição na nossa
freguesia falarei, inserem-se no esforço de satisfação / 35 / dessa
necessidade natural de divertimento. Contudo, vindos de fora, de vez em
quando apareciam saltimbancos. Habitualmente instalavam-se e actuavam
no largo da Junta de Freguesia. Grupos pobrezinhos, compostos
normalmente por elementos duma só família: um trapézio, ginástica,
palhaços... Mas era uma fascinação para todos, miúdos e graúdos. Foi
graças a um desses grupos que, criancinha ainda, com os meus quatro ou
cinco anitos, descobri o mundo maravilhoso do circo. E não fui só eu a
ficar deslumbrado! Ficou famosa, nessa altura, a resposta dada pelo tio
Aristides, o coveiro, a uma vizinha, cínica notória, que, à saída do
espectáculo, dizia assombrada: — "Ah, que muito eu gostava de ser
cínica!". "Oh estupor, ainda mais do que já és?!" — foi a resposta
pronta do tio Aristides, para gáudio geral. Ratoeiras da língua
portuguesa...
Nos dias seguintes ao
do espectáculo de circo, esse mesmo grupo deu cinema. Filmes mudos,
projectados por uma máquina manual, a manivela. Que deslumbramento!!! As
figuras a correrem, a saltarem, a darem murros, a andarem a cavalo e de
automóvel... Meses mais tarde, no Clube Recreativo Verdemilhense, vi o
meu primeiro filme sonoro: "Um Homem do Ribatejo" — chamava-se ele. Mas
já não foi a mesma coisa. Já não teve o espanto daquelas primeiras
imagens dos saltimbancos. Ainda hoje as recordo. E como me fascinam
ainda esses velhos filmes mudos de então!...
XVI
Mas isto da vinda de
saltimbancos era acontecimento excepcional, que só ocorriam de anos a
anos. No tempo corrente tinham de ser as pessoas a bastarem-se a si
próprias. Nesse contexto, a festa que
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anualmente se fazia em honra do santo padroeiro da terra (em alguns dos
lugares da freguesia havia duas festas por ano), no caso de Verdemilho a
festa de S. João, assumia uma importância extraordinária. Para além do
carácter religioso de que se revestia, com missa cantada, com sermão, e
a procissão percorrendo o lugar, havia também o aspecto profano, que, em
termos sociológicos, era igualmente importante: havia música na rua, as
bandas a tocar no arraial, os foguetes... A família reunia-se e
convidavam-se os amigos mais chegados. Matava-se o carneiro. Cozia-se
pão de trigo (no dia-a-dia comia-se broa de milho), feito com farinha do
nosso próprio cereal, moído na azenha ou na fábrica do Sr. José Capela
pelo tio Manuel Sarrico, o moleiro. Uma delícia!
Para nós, garotos, a
emoção da festa começava uns dias antes, quando se iniciava a montagem
da arcada para o arraial. Era uma tristeza quando, após a festa, a
desmontavam. Só voltaria no ano seguinte. E um ano era tanto tempo!...
Crescia na antevéspera, quando vinham os homens dos carneiros. A
chanfana era o prato dos dias de festa. Todos os que podiam matavam o
seu carneiro. Lá vinham o tio João Roquete, da Póvoa do Valado, ou o tio
Álvaro Gama, de Salgueiro, ou o tio João Paulos, do Bonsucesso, ou o tio
Artur Paixão, de Verdemilho, uns com o seu rebanho rua acima, outros com
ele rua abaixo, batendo às portas e mostrando os carneiros. As pessoas
escolhiam aquele de que mais gostassem e o vendedor matava-o logo, no
pátio, esfolava-o e deixava-o dependurado, a escorrer, pronto para ser
cortado em pedaços e metido nas caçoilas.
Depois, na véspera da
festa, era a música, rua acima e rua abaixo, com os mordomos. O garotio
andava numa fona à volta dos músicos, correndo quando se deitavam
foguetes, para apanhar as canas. Era muito importante apanhar as canas
dos foguetes. Era com o fio deles que fazíamos e deitávamos as nossas
estrelas e papagaios... |