David Paiva Martins, Fragmentos de Vida. A Minha Terra. 1ª ed., Aradas, ACAD (Associação Cultural de Aradas), 2005, 170 pp.

Dificuldades nas deslocações


XI

A quase inexistência de meios de transporte fazia com que as pessoas não saíssem praticamente da sua terra. A sua vida passava-se toda aqui. Havia, é evidente, deslocações que se tornavam obrigatórias: ir vender os produtos ao mercado, em Aveiro ou Ílhavo; ir à feira mensal da Palhaça ou de Bustos; uns iam ao mercado semanal de Angeja, outros ao de Águeda, outros ainda ao de Oliveira do Bairro.

Ir à feira da Palhaça ou de Bustos, sobretudo no Verão, além de trabalho, era também divertimento. Partia-se de madrugada, à uma ou às duas horas, com a carroça, puxada pela vaca, carregada com a hortaliça que se ia vender. Chegava-se à feira ao raiar da manhã. Descarregava-se a carroça. A pessoa que ia com o encargo de vender os produtos ficava na feira e, no final, regressava a casa a pé. Nós regressávamos logo, em grupo, conduzindo as vacas de volta com as carroças. Embora tivéssemos de tomar conta do gado, não podendo, por isso, vir em cima da carroça, mas sim a pé e de olho sempre atento, não fosse aparecer de repente qualquer patrulha da GNR, que nos multaria se não viéssemos ao lado da vaca ou à sua frente, com ela pela soga, fazíamos de todo o caminho uma festa. Conversávamos, íamos roubar fruta, nomeadamente cachos de uvas... enfim, habituados à frugalidade e ao trabalho duro, a nossa alegria espontânea transformava a própria obrigação num prazer...

À cidade, além das deslocações ao mercado e de outra, anual e obrigatória, para pagar a décima, faziam-se duas deslocações de lazer por ano, para ver a procissão do Senhor dos Passos e a procissão das cinzas. A procissão das cinzas, que se fez em Aveiro, durante séculos, na quarta-feira de cinzas, era a procissão mais majestosa e imponente a que jamais assisti pessoalmente. A cidade ficava literalmente cheia / 29 / com os milhares de pessoas que lá acorriam de toda a região para devotamente a presenciarem. A transformação social da década de sessenta, associada ao facto de se realizar num dia de trabalho, feriu-a de morte: durante alguns anos ainda se foi realizando com a colaboração dos dois regimentos militares que então havia em Aveiro, cujos soldados eram escalados para transportar os pesadíssimos andores; depois, subitamente, no início da década de setenta, as autoridades militares deixaram de colaborar e a procissão desapareceu. Hoje restam a recordação e a saudade duma tradição secular que se perdeu.

A procissão do Senhor dos Passos eram afinal duas: uma que se realizava ao domingo, na freguesia da Vera-Cruz, e outra, na freguesia da Glória, que se fazia na segunda-feira seguinte. Íamos assistir a esta última.

Sempre era uma tardada de trabalho a que nos baldávamos...

Mas o passeio mais longo de todos os anos era a ida a uma das festas, da Costa Nova ou da Barra. Na Costa Nova, a festa de Nossa Senhora da Saúde fazia-se no último domingo de Setembro; na Barra, a festa de Nossa Senhora dos Navegantes era no dia seguinte, segunda-feira.

Íamos a pé, claro. Para a Barra, dirigíamo-nos a Aveiro, seguíamos depois pela estrada que passava nas Pirâmides para a Gafanha da Nazaré, percorríamos esta localidade a todo o comprimento até ao Forte e daí, atravessando a antiga ponte de pau, chegávamos à Barra.

Para a Costa Nova íamos por Ílhavo, continuávamos pela ponte de João Cale d'Ancho para a Gafanha de Aquém, seguíamos através da mata para a Gafanha da Encarnação, até à mota, onde apanhávamos a barca que fazia a travessia para a Costa Nova. Um dia inteirinho: saíamos de casa ainda era madrugada e quando regressávamos já estava outra a começar.

 

 
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22-04-2018