XI
A quase inexistência
de meios de transporte fazia com que as pessoas não saíssem praticamente
da sua terra. A sua vida passava-se toda aqui. Havia, é evidente,
deslocações que se tornavam obrigatórias: ir vender os produtos ao
mercado, em Aveiro ou Ílhavo; ir à feira mensal da Palhaça ou de Bustos;
uns iam ao mercado semanal de Angeja, outros ao de Águeda, outros ainda
ao de Oliveira do Bairro.
Ir à feira da Palhaça
ou de Bustos, sobretudo no Verão, além de trabalho, era também
divertimento. Partia-se de madrugada, à uma ou às duas horas, com a
carroça, puxada pela vaca, carregada com a hortaliça que se ia vender.
Chegava-se à feira ao raiar da manhã. Descarregava-se a carroça. A
pessoa que ia com o encargo de vender os produtos ficava na feira e, no
final, regressava a casa a pé. Nós regressávamos logo, em grupo,
conduzindo as vacas de volta com as carroças. Embora tivéssemos de tomar
conta do gado, não podendo, por isso, vir em cima da carroça, mas sim a
pé e de olho sempre atento, não fosse aparecer de repente qualquer
patrulha da GNR, que nos multaria se não viéssemos ao lado da vaca ou à
sua frente, com ela pela soga, fazíamos de todo o caminho uma festa.
Conversávamos, íamos roubar fruta, nomeadamente cachos de uvas... enfim,
habituados à frugalidade e ao trabalho duro, a nossa alegria espontânea
transformava a própria obrigação num prazer...
À cidade, além das
deslocações ao mercado e de outra, anual e obrigatória, para pagar a
décima, faziam-se duas deslocações de lazer por ano, para ver a
procissão do Senhor dos Passos e a procissão das cinzas. A procissão das
cinzas, que se fez em Aveiro, durante séculos, na quarta-feira de
cinzas, era a procissão mais majestosa e imponente a que jamais assisti
pessoalmente. A cidade ficava literalmente cheia
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com os milhares de pessoas que lá acorriam de toda a região para
devotamente a presenciarem. A transformação social da década de
sessenta, associada ao facto de se realizar num dia de trabalho, feriu-a
de morte: durante alguns anos ainda se foi realizando com a colaboração
dos dois regimentos militares que então havia em Aveiro, cujos soldados
eram escalados para transportar os pesadíssimos andores; depois,
subitamente, no início da década de setenta, as autoridades militares
deixaram de colaborar e a procissão desapareceu. Hoje restam a
recordação e a saudade duma tradição secular que se perdeu.
A procissão do Senhor
dos Passos eram afinal duas: uma que se realizava ao domingo, na
freguesia da Vera-Cruz, e outra, na freguesia da Glória, que se fazia na
segunda-feira seguinte. Íamos assistir a esta última.
Sempre era uma
tardada de trabalho a que nos baldávamos...
Mas o passeio mais
longo de todos os anos era a ida a uma das festas, da Costa Nova ou da
Barra. Na Costa Nova, a festa de Nossa Senhora da Saúde fazia-se no
último domingo de Setembro; na Barra, a festa de Nossa Senhora dos
Navegantes era no dia seguinte, segunda-feira.
Íamos a pé, claro.
Para a Barra, dirigíamo-nos a Aveiro, seguíamos depois pela estrada que
passava nas Pirâmides para a Gafanha da Nazaré, percorríamos esta
localidade a todo o comprimento até ao Forte e daí, atravessando a
antiga ponte de pau, chegávamos à Barra.
Para a Costa Nova
íamos por Ílhavo, continuávamos pela ponte de João Cale d'Ancho para a
Gafanha de Aquém, seguíamos através da mata para a Gafanha da
Encarnação, até à mota, onde apanhávamos a barca que fazia a travessia
para a Costa Nova. Um dia inteirinho: saíamos de casa ainda era
madrugada e quando regressávamos já estava outra a começar. |