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IX
A vida, na minha
terra, nos meus tempos de garoto, processava-se a um ritmo que nada tem
a ver com o dos dias de hoje. Hoje, vive-se ao ritmo do automóvel e do
avião; naquele tempo, vivia-se ao ritmo do caminhar.
Com excepção das duas
estradas nacionais, que, partindo ambas do Eucalipto, atravessam, uma
Verdemilho, no sentido nascente-poente e outra Aradas e Quinta do
Picado, no sentido norte-sul, cujos pavimentos eram de paralelepípedos,
todas as restantes ruas, que não / 26 / eram muitas, eram de terra
batida. O acesso à maior parte dos locais da freguesia era constituído
por vielas, caminhos de carros de bois ou simples carreiros, onde só se
passava a pé ou de bicicleta.
A generalidade das
pessoas, quando precisava de ir algures, se não fosse de carro de bois,
era mesmo a pé que se deslocava. Os mais afortunados faziam-no de
bicicleta — aqueles que tinham dinheiro para a comprar e sabiam andar
nela. Porque, de facto, na segunda metade da década de 1940 e na
primeira metade da de 1950, possuir bicicleta era ainda um luxo a que
nem todos se podiam dar, um sinal de prosperidade relativa. Lembro-me
que a aspiração máxima das raparigas casadoiras desse tempo era
arranjarem namorado que tivesse bicicleta e relógio de pulso...
X
Sobre nós, os
garotos, a bicicleta exercia um fascínio quase mágico. Andar um bocado
numa constituía aventura a recordar: era o nosso máximo prazer possível!
Estávamos sempre atentíssimos a quem morria e a que horas era o funeral.
Os melhores eram os funerais que vinham de longe, das pontas da
freguesia... Não, não tínhamos gostos mórbidos. Era muito mais simples.
Eu explico.
Naquele tempo, na
minha terra, havia as irmandades. A generalidade dos homens fazia parte
delas. Lembro a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, a que mais tarde
também pertenci, que usava opa branca e era constituída por pessoas de
Verdemilho e do Bonsucesso, a Irmandade de Nossa Senhora do Livramento,
que usava idêntico / 27 / traje e era constituída por pessoas da Quinta
do Picado, a Irmandade de S. Sebastião, que usava opa branca com cabeção
vermelho e era constituída por pessoas de Aradas e a Irmandade do
Sagrado Coração de Jesus, que era constituída por pessoas de todos os
lugares da freguesia, indistintamente, e usava opa vermelha. As opas das
irmandades eram curtas, isto é, o seu comprimento era bastante inferior
ao das tradicionais opas de gala, que se usam nas cerimónias solenes e
nas procissões. Uma das obrigações dos membros das irmandades era
participar nos funerais. No fim, fazia-se a chamada dos presentes e quem
faltasse, sem motivo justificativo de força maior, era multado. Então,
compareciam sempre todos. Os funerais eram feitos a pé, em cortejo, com
os homens revestidos das suas opas, como nas procissões. Quando os
funerais partiam de longe, aqueles que tivessem bicicleta iam para lá
nela, para poupar tempo. Mas é evidente que ir de bicicleta só era útil
se arranjassem quem lha trouxesse para o cemitério, enquanto eles
participavam no funeral, de modo a poderem utilizá-la para regressar a
casa. Era aí que nós entrávamos: íamos buscar as bicicletas. Por certo
que já estão a perceber porque é que os funerais vindos de longe eram
tão desejados: demoravam mais de uma hora a chegar ao cemitério. Para a
revoada dos garotos, tanto tempo com uma bicicleta à disposição era uma
delícia. Fazíamos corridas e toda a sorte de habilidades de que cada um
era capaz, caíamos, levantávamo-nos... uma festa! Havia, contudo, uma
bicicleta que ninguém gostava de trazer; só a aceitávamos quando não
houvesse mais nenhuma disponível: era muito alta, muito pesada e o dono
inspeccionava-a minuciosamente à chegada e puxava-nos as orelhas se ela
tivesse alguma esmurradela: era a bicicleta do Sr. Vigário. |