David Paiva Martins, Fragmentos de Vida. A Minha Terra. 1ª ed., Aradas, ACAD (Associação Cultural de Aradas), 2005, 170 pp.

A bicicleta na vida das gentes

/ 25 /

IX

A vida, na minha terra, nos meus tempos de garoto, processava-se a um ritmo que nada tem a ver com o dos dias de hoje. Hoje, vive-se ao ritmo do automóvel e do avião; naquele tempo, vivia-se ao ritmo do caminhar.

Com excepção das duas estradas nacionais, que, partindo ambas do Eucalipto, atravessam, uma Verdemilho, no sentido nascente-poente e outra Aradas e Quinta do Picado, no sentido norte-sul, cujos pavimentos eram de paralelepípedos, todas as restantes ruas, que não / 26 / eram muitas, eram de terra batida. O acesso à maior parte dos locais da freguesia era constituído por vielas, caminhos de carros de bois ou simples carreiros, onde só se passava a pé ou de bicicleta.

A generalidade das pessoas, quando precisava de ir algures, se não fosse de carro de bois, era mesmo a pé que se deslocava. Os mais afortunados faziam-no de bicicleta — aqueles que tinham dinheiro para a comprar e sabiam andar nela. Porque, de facto, na segunda metade da década de 1940 e na primeira metade da de 1950, possuir bicicleta era ainda um luxo a que nem todos se podiam dar, um sinal de prosperidade relativa. Lembro-me que a aspiração máxima das raparigas casadoiras desse tempo era arranjarem namorado que tivesse bicicleta e relógio de pulso...

 

X

Sobre nós, os garotos, a bicicleta exercia um fascínio quase mágico. Andar um bocado numa constituía aventura a recordar: era o nosso máximo prazer possível! Estávamos sempre atentíssimos a quem morria e a que horas era o funeral. Os melhores eram os funerais que vinham de longe, das pontas da freguesia... Não, não tínhamos gostos mórbidos. Era muito mais simples. Eu explico.

Naquele tempo, na minha terra, havia as irmandades. A generalidade dos homens fazia parte delas. Lembro a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, a que mais tarde também pertenci, que usava opa branca e era constituída por pessoas de Verdemilho e do Bonsucesso, a Irmandade de Nossa Senhora do Livramento, que usava idêntico / 27 / traje e era constituída por pessoas da Quinta do Picado, a Irmandade de S. Sebastião, que usava opa branca com cabeção vermelho e era constituída por pessoas de Aradas e a Irmandade do Sagrado Coração de Jesus, que era constituída por pessoas de todos os lugares da freguesia, indistintamente, e usava opa vermelha. As opas das irmandades eram curtas, isto é, o seu comprimento era bastante inferior ao das tradicionais opas de gala, que se usam nas cerimónias solenes e nas procissões. Uma das obrigações dos membros das irmandades era participar nos funerais. No fim, fazia-se a chamada dos presentes e quem faltasse, sem motivo justificativo de força maior, era multado. Então, compareciam sempre todos. Os funerais eram feitos a pé, em cortejo, com os homens revestidos das suas opas, como nas procissões. Quando os funerais partiam de longe, aqueles que tivessem bicicleta iam para lá nela, para poupar tempo. Mas é evidente que ir de bicicleta só era útil se arranjassem quem lha trouxesse para o cemitério, enquanto eles participavam no funeral, de modo a poderem utilizá-la para regressar a casa. Era aí que nós entrávamos: íamos buscar as bicicletas. Por certo que já estão a perceber porque é que os funerais vindos de longe eram tão desejados: demoravam mais de uma hora a chegar ao cemitério. Para a revoada dos garotos, tanto tempo com uma bicicleta à disposição era uma delícia. Fazíamos corridas e toda a sorte de habilidades de que cada um era capaz, caíamos, levantávamo-nos... uma festa! Havia, contudo, uma bicicleta que ninguém gostava de trazer; só a aceitávamos quando não houvesse mais nenhuma disponível: era muito alta, muito pesada e o dono inspeccionava-a minuciosamente à chegada e puxava­-nos as orelhas se ela tivesse alguma esmurradela: era a bicicleta do Sr. Vigário.

 

 
Página anterior Página inicial Página seguinte

22-04-2018