David Paiva Martins, Fragmentos de Vida. A Minha Terra. 1ª ed., Aradas, ACAD (Associação Cultural de Aradas), 2005, 170 pp.

Verdemilho

I

«VERDEMILHO, que lindo nome para uma terra! — parece que está a gente a ver essas benditas planícies regaladas de pãozinho fresco, com duas e três maçarocas de respeito em cada haste, com as bandeiras pitorescas a ondular ao sabor dos ventos que passam! — parece que está a gente a ouvir esses moinhos de vento, que vão gemendo e cantando pelos campos fora a sua doce e interminável tarefa! — e o rouxinol a dar sinal de si no meio dos salgueirais! — e o sol a descair para as águas! — e a bulha dos que passam na estrada! — e a alegria daqueles que estão ocupados na faina! — e os álamos, e as faias, e os eucaliptos, e os plátanos, e os pinheiros! (...) Verdemilho não é um nome suposto: é o nome de uma aldeia real autêntica, genuína, com tudo aquilo que eu disse e muito mais que eu não saberia dizer. »(1)

Que evocação linda da minha terra! Deve-se à pena inspirada do aveirense insigne que foi D. João Evangelista de Lima Vidal. Era assim que, cerca de 1915, em Luanda, onde então desempenhava as altas funções eclesiásticas de Bispo de Angola e Congo, ele relembrava Verdemilho. Inicia com este texto o capítulo XXV do seu livro "Lições da Natureza e dos Homens".

 

II

Essa era a romântica Verdemilho daquele tempo. E hoje, quem poderia descrevê-la assim? Onde estão os moinhos de vento — e tantos havia?! Gemendo eternamente a sua melodia pelos campos fora? E os rouxinóis? E a alegre bulha do grupo de trabalhadores que vai para o campo ou está na faina?

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Contudo, foi ainda nessa Verdemilho romântica que em 1938 eu nasci. Foi nela que brinquei em garoto, cresci e me tornei homem. Foi nela que aprendi o amor à minha terra e às suas gentes. Um amor tão entranhado que faz parte de mim mesmo, do mesmo modo que de mim faz parte o ar que respiro, sem o qual não poderia viver. Tendo-­me a vida e as incidências duma carreira profissional levado às quatro partidas, foi em Verdemilho que tive sempre a minha casa e a minha família; foi a Verdemilho que sempre me acolhi ao fim dum dia ou duma semana de trabalho, por mais longe que esse trabalho tivesse sido; é aqui que vivo agora e é aqui que quero ser sepultado quando morrer.

 

lII

Mas Verdemilho — como aliás os outros três lugares, Aradas, Bonsucesso e Quinta do Picado, que com ela constituem a freguesia de S. Pedro de Aradas — mudou muito. Deixou inteiramente de ter o romantismo da minha infância. Nem Verdemilho é mais a Vila de Milho de outrora, nem a freguesia de Aradas é o concelho que já foi. No entanto, vive-se hoje incomparavelmente melhor. Mas a transformação operou-se tão rápida e profundamente que um simples quarto de século quase apagou por completo os vestígios do passado. Não dum passado remoto, mas de coisas dos nossos dias. Os jovens de hoje já não o conhecem; os de amanhã nem sonharão que tenha existido.

Esse passado é a nossa vida; somos nós! Não poderemos deixá-lo desaparecer assim, sem deixar rasto. Seria como renegar-nos, negarmos a nossa existência. Este despretensioso trabalho surge da consciência / 19 / de que é importante que, algum dia, alguém com capacidade escreva sobre nós e o nosso tempo nesta terra. Sabemos tão pouco do nosso passado que temos obrigação de acautelar que, no futuro, não haja tamanha ignorância acerca desta época fabulosa em que nos coube viver. Época de transformações sociais profundíssimas e velozes, como a Humanidade jamais conheceu.

Não tenho, pessoalmente, habilitações que me permitam fazer um trabalho profundo, de rigor histórico. Nem é esse o meu objectivo. Não se trata aqui de escrever a HISTÓRIA, mas simplesmente de contar algumas das histórias do quotidiano da nossa terra nos meus tempos de menino — as suas coisas, os acontecimentos, as pessoas com que a minha vida se cruzou.

 

IV

Antes de avançar, parece-me indispensável fazer duas salvaguardas prévias. A primeira é que, no texto, além de referir as pessoas pelo nome, indico também a sua alcunha. Referir as alcunhas, mesmo que algumas possam conter certo grau de malícia, não implica nenhuma desconsideração para com as pessoas. Dou o exemplo comigo próprio, referindo e explicando a razão de ser aparente das duas alcunhas por que eu e os meus familiares somos conhecidos: Terroeiro pelo lado do meu pai e Piolho pelo da minha mãe. Com efeito, o meu pai, António da Rosa Martins (1892-1957), era conhecido pelo António Terroeiro e a minha mãe, Maria Gonçalves Paiva (1906-1992), era conhecida pela Micas Piolha. É referindo-os assim que ainda hoje me apresento às pessoas mais idosas que porventura não saibam quem sou. Penso que a alcunha de Terroeiro resulta de corruptela da palavra torroeiro. O meu trisavô paterno, Francisco da Rocha Martins de seu nome completo, / 20 / era de Vagos e dedicava-se a fornecer torrões de terra (que, em termos de construção civil, foram os antepassados dos adobes de areia, assim como estes o foram dos actuais tijolos de barro) para as primitivas obras da Barra. Por virtude da profissão exerci da, chamavam-lhe o Francisco torroeiro. E a alcunha nasceu daí e ficou na tradição popular. Quanto à de Piolho, o caso é diferente. Anteriormente, foi mesmo apelido. Com efeito, o meu trisavô materno, que era originário da Branca, chamava-se Tomé Nunes Piolho. Não sei porquê, ao baptizar o seu filho, meu bisavô, deixou cair o Piolho e chamou-lhe Francisco Nunes de Paiva.

Também o seu irmão, que se radicou na Quinta do Picado, retirou o nome de Piolho aos filhos, transformando-o em Rocha. Daí que, a maior parte dos Rochas e Paivas existentes na freguesia, que de cá sejam naturais, e ainda alguns outros que devido ao rodar das gerações já nem têm nenhum destes nomes, são ainda hoje Piolhos. Porque o antigo apelido, transformado em alcunha, permaneceu no falar do povo. De facto, no mundo rural — e é do mundo rural que aqui se trata — a alcunha por que se é conhecido integra indissociavelmente o conjunto de características definidoras da personalidade de cada um. Se não as referisse, a narrativa perderia autenticidade.

A segunda salvaguarda é quanto ao uso da palavra tio. No mundo rural, ao falar-se do tio António ou da tia Maria, não implica necessariamente que se esteja a falar de parentes. Esse tratamento, que é uma forma de respeito, é dado às pessoas mais velhas que sejam da nossa igualha social. Se a pessoa, independentemente da sua idade, for de classe social mais elevada que a nossa, será então tratada por senhor: o senhor professor, o senhor doutor, o senhor vigário...

A explicação parece-me devida porque esta linguagem, para os não iniciados, pode por vezes ser confusa. Eu próprio tive experiência disso. Na linguagem oral, as pessoas não dizem de facto tio António ou tia Maria, mas sim ti António e ti Maria. Garotinho ainda, eu tinha um vizinho dos seus vinte e tal anos a quem, naturalmente, chamava / 21 / ti Amantino. A certa altura, ao aperceber-me de que pessoas bastante mais velhas do que ele também lhe chamavam ti Amantino, fiquei perplexo. Não via no rapaz nada que pudesse justificar que as pessoas idosas o tratassem com tal respeito. Levei um tempão para perceber que, afinal, o homem se chamava... Diamantino!

 

V

A minha terra mudou muito! Penso, aliás, que as pessoas da minha geração têm da vida uma experiência que é única na História da Humanidade. Provavelmente, muitas nem disso se aperceberão. Mas o facto é que as gerações que nos antecederam nasceram num mundo que, no essencial, se manteve estável ao longo de toda a sua vida. Claro que havia mudanças. Mas operavam-se num processo lento, entrando paulatinamente na vida das pessoas, sem modificar radicalmente o seu modo de estar. Isso já não se passou connosco. O mundo em que hoje vivem os nossos filhos não é o mesmo em que nós próprios nascemos e crescemos. No espaço duma vida a população mundial duplicou duas vezes, inúmeras profissões desapareceram e novas profissões foram criadas. Mudaram, radicalmente, as condições do trabalho e do lazer...

A segunda metade do século XX, e em particular o seu último quartel, correspondem à mais profunda revolução que jamais a Humanidade conheceu!

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VI

Para nos consciencializarmos da profundidade dessa revolução e das suas implicações na nossa vida concreta, nada melhor do que recordarmos e analisarmos o significado de dois ou três acontecimentos passados. Uma noite de Setembro de 1957, estando o meu pai já gravemente doente (veio a falecer cerca de um mês depois), o Dr. Paiva foi, como de costume, vê-lo. Vinha muito contente. Como estávamos em família, depois de observado e tratado o meu pai, ficamos à conversa. O Dr. Paiva confessou o motivo do seu contentamento: tinha comprado um frigorífico para oferecer à mulher. Naquele tempo, um frigorífico era quase como um automóvel, um objecto caro e de luxo, a que poucos poderiam chegar. E afinal, que utilidade tinha? O Dr. Paiva explicou. Mas o facto é que nenhum de nós ficou convencido da utilidade prática do frigorífico. Para guardar comida não valia a pena, porque, como a época não era de fartura, tudo o que se cozinhasse... comia-se, não sobrava para guardar; e, ainda que sobrasse, dava-se ao porco da ceva, que ele precisava de ser engordado. Para guardar os géneros, antes de serem cozinhados, também não era preciso: o peixe comprava-se fresco à peixeira, que vinha todos os dias à porta com a canastra à cabeça; a carne ia-se buscar à salgadeira; a hortaliça ia-se colher ao aido na hora de cozinhar; as batatas estavam no celeiro... numa palavra: o frigorífico não servia para nada! Pois bem: hoje, experimentem tê-lo avariado em casa durante três dias... e depois falem comigo. Dá para ver a diferença?

Curiosa é a razão por que nunca esqueci essa noite concreta da história do frigorífico. Quando o Dr. Paiva chegou, seriam umas nove horas, estava escuro como breu. Porém, cerca das onze, quando saímos para o acompanhar à porta, ficámos estupefactos: via-se tudo, como se / 23 / estivéssemos em pleno dia, mas um dia especial, com uma luz amarelo­ avermelhada que, não obstante, permitia visibilidade plena das coisas, ao perto e ao longe. Foi o espanto geral! O que será? O que não será? As pessoas ficaram assustadas. "É uma aurora boreal" — sugeri eu. Com efeito, os jornais do dia seguinte deram conta ao país espantado que, nessa noite, tínhamos tido a oportunidade, raríssima na nossa latitude, de assistir a uma aurora boreal. Foi um espectáculo soberbo! Único!

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(1) - Citação feita pelo cónego Moysés Nora em artigo no jornal "A Comarca" N.º 1790, de 8 de Agosto de 1915, publicado em S. Paulo, Brasil, pág. 1 e seguintes.

 

 
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22-04-2018