I
«VERDEMILHO, que
lindo nome para uma terra! — parece que está a gente a ver essas
benditas planícies regaladas de pãozinho fresco, com duas e três
maçarocas de respeito em cada haste, com as bandeiras pitorescas a
ondular ao sabor dos ventos que passam! — parece que está a gente a
ouvir esses moinhos de vento, que vão gemendo e cantando pelos campos
fora a sua doce e interminável tarefa! — e o rouxinol a dar sinal de si
no meio dos salgueirais! — e o sol a descair para as águas! — e a bulha
dos que passam na estrada! — e a alegria daqueles que estão ocupados na
faina! — e os álamos, e as faias, e os eucaliptos, e os plátanos, e os
pinheiros! (...) Verdemilho não é um nome suposto: é o nome de uma
aldeia real autêntica, genuína, com tudo aquilo que eu disse e muito
mais que eu não saberia dizer. »(1)
Que evocação linda da
minha terra! Deve-se à pena inspirada do aveirense insigne que foi D.
João Evangelista de Lima Vidal. Era assim que, cerca de 1915, em Luanda,
onde então desempenhava as altas funções eclesiásticas de Bispo de
Angola e Congo, ele relembrava Verdemilho. Inicia com este texto o
capítulo XXV do seu livro "Lições da Natureza e dos Homens".
II
Essa era a romântica
Verdemilho daquele tempo. E hoje, quem poderia descrevê-la assim? Onde
estão os moinhos de vento — e tantos havia?! Gemendo eternamente a sua
melodia pelos campos fora? E os rouxinóis? E a alegre bulha do grupo de
trabalhadores que vai para o campo ou está na faina?
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Contudo, foi ainda
nessa Verdemilho romântica que em 1938 eu nasci. Foi nela que brinquei
em garoto, cresci e me tornei homem. Foi nela que aprendi o amor à minha
terra e às suas gentes. Um amor tão entranhado que faz parte de mim
mesmo, do mesmo modo que de mim faz parte o ar que respiro, sem o qual
não poderia viver. Tendo-me a vida e as incidências duma carreira
profissional levado às quatro partidas, foi em Verdemilho que tive
sempre a minha casa e a minha família; foi a Verdemilho que sempre me
acolhi ao fim dum dia ou duma semana de trabalho, por mais longe que
esse trabalho tivesse sido; é aqui que vivo agora e é aqui que quero ser
sepultado quando morrer.
lII
Mas Verdemilho — como
aliás os outros três lugares, Aradas, Bonsucesso e Quinta do Picado, que
com ela constituem a freguesia de S. Pedro de Aradas — mudou muito.
Deixou inteiramente de ter o romantismo da minha infância. Nem
Verdemilho é mais a Vila de Milho de outrora, nem a freguesia de Aradas
é o concelho que já foi. No entanto, vive-se hoje incomparavelmente
melhor. Mas a transformação operou-se tão rápida e profundamente que um
simples quarto de século quase apagou por completo os vestígios do
passado. Não dum passado remoto, mas de coisas dos nossos dias. Os
jovens de hoje já não o conhecem; os de amanhã nem sonharão que tenha
existido.
Esse passado é a
nossa vida; somos nós! Não poderemos deixá-lo desaparecer assim, sem
deixar rasto. Seria como renegar-nos, negarmos a nossa existência. Este
despretensioso trabalho surge da consciência
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de que é importante que, algum dia, alguém com capacidade escreva
sobre nós e o nosso tempo nesta terra. Sabemos tão pouco do nosso
passado que temos obrigação de acautelar que, no futuro, não haja
tamanha ignorância acerca desta época fabulosa em que nos coube viver.
Época de transformações sociais profundíssimas e velozes, como a
Humanidade jamais conheceu.
Não tenho,
pessoalmente, habilitações que me permitam fazer um trabalho profundo,
de rigor histórico. Nem é esse o meu objectivo. Não se trata aqui de
escrever a HISTÓRIA, mas simplesmente de contar algumas das histórias do
quotidiano da nossa terra nos meus tempos de menino — as suas coisas, os
acontecimentos, as pessoas com que a minha vida se cruzou.
IV
Antes de avançar,
parece-me indispensável fazer duas salvaguardas prévias. A primeira é
que, no texto, além de referir as pessoas pelo nome, indico também a sua
alcunha. Referir as alcunhas, mesmo que algumas possam conter certo grau
de malícia, não implica nenhuma desconsideração para com as pessoas. Dou
o exemplo comigo próprio, referindo e explicando a razão de ser aparente
das duas alcunhas por que eu e os meus familiares somos conhecidos:
Terroeiro pelo lado do meu pai e Piolho pelo da minha mãe. Com efeito, o
meu pai, António da Rosa Martins (1892-1957), era conhecido pelo António
Terroeiro e a minha mãe, Maria Gonçalves Paiva (1906-1992), era
conhecida pela Micas Piolha. É referindo-os assim que ainda hoje me
apresento às pessoas mais idosas que porventura não saibam quem sou.
Penso que a alcunha de Terroeiro resulta de corruptela da palavra
torroeiro. O meu trisavô paterno, Francisco da Rocha Martins de seu nome
completo,
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era de Vagos e
dedicava-se a fornecer torrões de terra (que, em termos de construção
civil, foram os antepassados dos adobes de areia, assim como estes o
foram dos actuais tijolos de barro) para as primitivas obras da Barra.
Por virtude da profissão exerci da, chamavam-lhe o Francisco torroeiro.
E a alcunha nasceu daí e ficou na tradição popular. Quanto à de Piolho,
o caso é diferente. Anteriormente, foi mesmo apelido. Com efeito, o meu
trisavô materno, que era originário da Branca, chamava-se Tomé Nunes
Piolho. Não sei porquê, ao baptizar o seu filho, meu bisavô, deixou cair
o Piolho e chamou-lhe Francisco Nunes de Paiva.
Também o seu irmão,
que se radicou na Quinta do Picado, retirou o nome de Piolho aos filhos,
transformando-o em Rocha. Daí que, a maior parte dos Rochas e Paivas
existentes na freguesia, que de cá sejam naturais, e ainda alguns outros
que devido ao rodar das gerações já nem têm nenhum destes nomes, são
ainda hoje Piolhos. Porque o antigo apelido, transformado em alcunha,
permaneceu no falar do povo. De facto, no mundo rural — e é do mundo
rural que aqui se trata — a alcunha por que se é conhecido integra
indissociavelmente o conjunto de características definidoras da
personalidade de cada um. Se não as referisse, a narrativa perderia
autenticidade.
A segunda salvaguarda
é quanto ao uso da palavra tio. No mundo rural, ao falar-se do tio
António ou da tia Maria, não implica necessariamente que se esteja a
falar de parentes. Esse tratamento, que é uma forma de respeito, é dado
às pessoas mais velhas que sejam da nossa igualha social. Se a pessoa,
independentemente da sua idade, for de classe social mais elevada que a
nossa, será então tratada por senhor: o senhor professor, o senhor
doutor, o senhor vigário...
A explicação
parece-me devida porque esta linguagem, para os não iniciados, pode por
vezes ser confusa. Eu próprio tive experiência disso. Na linguagem oral,
as pessoas não dizem de facto tio António ou tia Maria, mas sim ti
António e ti Maria. Garotinho ainda, eu tinha um vizinho dos seus vinte
e tal anos a quem, naturalmente, chamava
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ti Amantino. A certa altura, ao aperceber-me de que pessoas bastante
mais velhas do que ele também lhe chamavam ti Amantino, fiquei perplexo.
Não via no rapaz nada que pudesse justificar que as pessoas idosas o
tratassem com tal respeito. Levei um tempão para perceber que, afinal, o
homem se chamava... Diamantino!
V
A minha terra mudou
muito! Penso, aliás, que as pessoas da minha geração têm da vida uma
experiência que é única na História da Humanidade. Provavelmente, muitas
nem disso se aperceberão. Mas o facto é que as gerações que nos
antecederam nasceram num mundo que, no essencial, se manteve estável ao
longo de toda a sua vida. Claro que havia mudanças. Mas operavam-se num
processo lento, entrando paulatinamente na vida das pessoas, sem
modificar radicalmente o seu modo de estar. Isso já não se passou
connosco. O mundo em que hoje vivem os nossos filhos não é o mesmo em
que nós próprios nascemos e crescemos. No espaço duma vida a população
mundial duplicou duas vezes, inúmeras profissões desapareceram e novas
profissões foram criadas. Mudaram, radicalmente, as condições do
trabalho e do lazer...
A segunda metade do
século XX, e em particular o seu último quartel, correspondem à mais
profunda revolução que jamais a Humanidade conheceu!
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VI
Para nos
consciencializarmos da profundidade dessa revolução e das suas
implicações na nossa vida concreta, nada melhor do que recordarmos e
analisarmos o significado de dois ou três acontecimentos passados. Uma
noite de Setembro de 1957, estando o meu pai já gravemente doente (veio
a falecer cerca de um mês depois), o Dr. Paiva foi, como de costume,
vê-lo. Vinha muito contente. Como estávamos em família, depois de
observado e tratado o meu pai, ficamos à conversa. O Dr. Paiva confessou
o motivo do seu contentamento: tinha comprado um frigorífico para
oferecer à mulher. Naquele tempo, um frigorífico era quase como um
automóvel, um objecto caro e de luxo, a que poucos poderiam chegar. E
afinal, que utilidade tinha? O Dr. Paiva explicou. Mas o facto é que
nenhum de nós ficou convencido da utilidade prática do frigorífico. Para
guardar comida não valia a pena, porque, como a época não era de
fartura, tudo o que se cozinhasse... comia-se, não sobrava para guardar;
e, ainda que sobrasse, dava-se ao porco da ceva, que ele precisava de
ser engordado. Para guardar os géneros, antes de serem cozinhados,
também não era preciso: o peixe comprava-se fresco à peixeira, que vinha
todos os dias à porta com a canastra à cabeça; a carne ia-se buscar à
salgadeira; a hortaliça ia-se colher ao aido na hora de cozinhar; as
batatas estavam no celeiro... numa palavra: o frigorífico não servia
para nada! Pois bem: hoje, experimentem tê-lo avariado em casa durante
três dias... e depois falem comigo. Dá para ver a diferença?
Curiosa é a razão por
que nunca esqueci essa noite concreta da história do frigorífico. Quando
o Dr. Paiva chegou, seriam umas nove horas, estava escuro como breu.
Porém, cerca das onze, quando saímos para o acompanhar à porta, ficámos
estupefactos: via-se tudo, como se
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estivéssemos em pleno dia, mas um dia especial, com uma luz amarelo
avermelhada que, não obstante, permitia visibilidade plena das coisas,
ao perto e ao longe. Foi o espanto geral! O que será? O que não será? As
pessoas ficaram assustadas. "É uma aurora boreal" — sugeri eu. Com
efeito, os jornais do dia seguinte deram conta ao país espantado que,
nessa noite, tínhamos tido a oportunidade, raríssima na nossa latitude,
de assistir a uma aurora boreal. Foi um espectáculo soberbo! Único!
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(1) -
Citação feita pelo cónego Moysés Nora
em artigo no jornal "A Comarca" N.º 1790, de 8 de Agosto de 1915,
publicado em S. Paulo, Brasil, pág. 1 e seguintes. |