Resolvera com o acordo dos
pais e depois de feito o balanço às possibilidades de o manterem em
Coimbra ou em Lisboa durante os anos necessários ao curso e a um
razoável período de prática nos Hospitais, ir para Medicina, terminado
que foi o Liceu, em colégios do Porto.
E não teve a ideia de ficar
na bela e vetusta cidade do Douro, porque, com o tempo, foi sentindo
necessidade de, aos olhos e aos passos, dar outro conforto menos triste
que o dos cinzentos escurecidos pela patina dos granitos velhos e o
íngreme daquelas escadas e ladeiras que tanto levavam à beleza líquida
do rio como dele o afastavam dos poucos verdes que, encosta acima, só de
longe e em ocasionais buracos deixados em aberto pelos prédios
construídos sem visão, para além do perto, se avistavam nos pequenos
plainos da Cordoaria e das Fontainhas.
Contudo, nunca deixava de
sentir uma certa nostalgia por aquela tristeza de ruas tortas, pois fora
nelas que tivera os seus primeiros e fugidios amores com uma rapariga,
empregada de balcão nos Armazéns do Chiado, lá em cima, perto do pátio
dos leões e junto à mole imensa da Universidade e não longe da velha
Torre dos Clérigos, dedo que aponta ao Porto o caminho do céu para os
seus anseios e passos em frente.
Era o Abel.
Tinha boa figura e a altura,
mesmo naquela idade em que se acabou de crescer e ainda se está muito
longe de começar a mingar, dava-lhe um ar distinto a que nem faltava um
quase permanente sorriso de troça inocente que atraia mais do que
afastava aqueles com quem contactava ou o viam, sem o conhecer.
Tinha uma personalidade
forte de que não raro se servia, em proveito próprio, conseguindo
convencer os irmãos mais novos que com ele estudavam, também no Porto,
de que ele, por mais velho, poderia e deveria ir para os melhores
lugares da plateia, enquanto eles teriam de contentar-se com as
galerias, já que o dinheiro que o Tio, em casa de quem estavam, lhes
dava para irem ao Teatro, aquando da vinda de companhias de Lisboa, para
mais não chegava.
Era o tempo dos Brasões, dos
Rosas, dos Chaby, este quase ainda na juventude, e, do lado feminino, da
Adelina Abranches, da Pai mira Bastos e dessa incomparável Maria Matos
que tanto era a cómica como a trágica, com igual categoria.
É que eles gostavam muito de
teatro, todos eles, e só não iam ao Sá da Bandeira, ao Chave d'Ouro ou
ao S. João, quando à pequena mesada, na medida das possibilidades, o Tio
não queria ou não podia reforçar para a compra dos bilhetes de ingresso.
Mas a decisão de ir para
Coimbra e, seguidamente, para Lisboa, estava tomada e numa manhã chuvosa
de Outubro, lá foi o Abel e, com ele, bem encrostada em si, a ideia de
conseguir o diploma necessário ao exercício lucrativo de uma profissão
que ele antevia como perfeitamente compatível com o que começava a
pensar acerca da vida e da morte, tão ligadas, entre si, como o nascer e
o findar.
Pensava nisso muitas vezes,
o Abel, e não se impressionou demasiado, no desenrolar do curso, quando
da Maternidade passava para a Cirurgia ou para a Morgue, onde se
começava, se corrigia e se apuravam causas de fim ou consequências de
substâncias ou actos de violência.
Tudo seguia com aparente
maturidade e aquelas passadas da Ladeira do Seminário até ao Hospital e
suas enfermarias eram iguais àquelas que se desenvolveriam quando, três
anos depois, se transferiu para Lisboa onde haveria mais doentes, mais
carne morta para retalhar em pesquisas, mais e mais categorizados
Mestres, entre os quais brilhavam, já, um Pulido Valente, um Augusto
Monjardino, um Egas Moniz e começava a ensinar o que com eles aprendera,
o Fernando da Fonseca, e levavam o Abel das ruas do Conde de Redondo até
à Santa Marta do Hospital e ao Campo de Santana, da Faculdade,
propriamente dita.
Quando o Abel terminou o
curso, já estava preso, definitivamente, a uns olhos negros, daqueles
que, por vezes, encandeiam sem deixarem de marcar destinos.
Fora uma grande alegria para
os pais que, com o facto, viram uma porta aberta no futuro do filho e um
fim à sangria da pequena bolsa, só reabastecida pelos minguados lucros
da lojeca do pai e pelos também reduzidos proventos vindos da venda do
trigo, do milho e dos feijões das courelas e dos almudes de vinho com
origem nas vinhas que haviam herdado ou adquirido com as economias
consegui das antes dos filhos começarem a estudar.
Entretanto o Abel tinha
resolvido casar, alternando períodos na aldeia com os pais, com períodos
de Lisboa para frequentar hospitais em busca de traquejo no manejo do
bisturi, do estetoscópio e das seringas, ausências essas agora só
possíveis por ter passado a contar com a casa, cama, mesa e roupa lavada
dos sogros que, sem serem ricos, desfrutavam de nível económico bastante
para o efeito.
O Abel sempre gostou de se
dar um pouco à noite e, nela, dedicar algum do seu tempo aos manejos do
pano verde e dos baralhos do solo ou do "bridge" em que era exímio e,
por isso, tão desejado quanto temido pelos companheiros, já que jogava
sempre a dinheiro, embora "baratinho".
Entre estes contava-se um,
de origem açoriana, que pela sua arguta inteligência e tendências
ideológicas, logo se tornou no principal amigo do Abel, ao ponto de o
passar a influenciar em muitos dos seus passos pois era mais velho e dos
tais que sabem convencer e cativar sem jamais se imporem com outros
argumentos que não os da razão.
E não tardou que o Abel se
sentisse conquistado pela ideia, incutida pelo amigo, de ir fazer um
período de medicina, quase de pioneirismo, numa das mais recônditas
ilhas do arquipélago onde o esperavam vários milhares de habitantes, nem
todos sãos e, por isso, carecidos de quem os medicasse e,
ocasionalmente, fosse ao ponto de intervir, cirurgicamente, em casos de
urgência não conciliáveis com demoras do vapor que só de mês a mês os
poderia levar até ao Faial, já dotado de alguns médicos, enfermeiros e
hospital com um mínimo de possibilidades para enfrentar as crises mais
agudas.
Era a Ilha das Flores, um
naco de paraíso, verde e azul, despejado no mar mas onde, como em outros
lados, se nascia, se vivia e se morria com solavancos de saúde em tudo
semelhantes aos das vacas que nos úberes pastos das encostas, dos
plainos altos e das fajãs, também nasciam, viviam e morriam na quase
única tarefa de se darem, em leite e carne, a quem delas fosse dono,
tratador, comprador ou talho.
Só tinha um cavalo para as
deslocações, algumas de vários, muitos quilómetros ou léguas e de um
ajudante, tratador do bicho, a ele e ao dono dedicado por igual, e que,
nos primeiros tempos, lhe serviu de guia para os ignotos caminhos das
freguesias rurais da outra ponta da Ilha; ou de um barco a remos que,
pelo mar, nem sempre ou quase nunca manso, o levava àqueles lugares,
quase sempre fajãs de seu nome, onde só por mar se poderia chegar na
ajuda a pessoas atacadas de gripe, pneumonias, diarreias ou prisões de
ventre que, quando persistentes, se tornariam perigosos se não atacadas
a tempo.
Mas o que o Abel mais
gostava de fazer era ajudar a pôr à luz do mundo, os pequeninos seres
que o continuavam e que os seus compridos dedos de pianista sabiam
trazer para fora das mães que, por qualquer motivo, o não conseguiam
fazer naturalmente ou com a simples mas preciosa ajuda das "comadres" da
freguesia própria ou vizinha.
Era um apaixonado da vida, o
Abel, apesar de partilhar com ela tantos amargos que a idade, a bem
dizer jovem, fazia suportar sem sacrifício.
Mas, exactamente por o ser,
olhava a vida dos outros como bem inestimável e tudo fazia para, além
dos remédios que receitava, com o seu sábio poder de convencimento,
levar os seus pacientes a encarar esses amargos como fatalidades
inevitáveis que da vida tanto faziam parte como os doces da alegria e do
prazer.
E adoravam-no, exactamente
por isso!
Viam nele um predestinado
para toda aquela ajuda que dava, ainda que profissionalmente, mas com o
coração e até, se fosse caso disso, com o desinteresse material. Só
exigia, sempre, que entre os seus pacientes e a verdade não houvesse um
milímetro que fosse a separá-los. Por sua parte, ainda que respeitador,
quase fanático, dessa mesma verdade, não deixava de dar a maior
importância ao fenómeno da dor, chegando a considerá-la o mal maior de
todas as doenças e estados que faziam parte da vida.
Chegava a ultrapassar, às
vezes, o limite da prudência para evitar a dor de ouvidos de uma criança
ou aquelas, por vezes lancinantes do parto, sempre largamente
compensadas pela alegria do surgimento de um novo ser, principalmente
quando era o primeiro e tinha o seu quê de rasgar de carnes e despejar
de sangues, sempre marcas de vida mesmo quando possam significar o final
dela.
Esse temperamento múltiplo
do Abel, naquela Ilha do meio do Atlântico, não raro lhe trazia
problemas que só não eram mais graves porque o facto de ser único, em
toda aquela extensão de verdes e azuis das pastagens sem fim bordadas de
hortenses, o livrava de ciúmes e malquerenças deles, quase sempre,
filhos legítimos.
Era naturalmente aceite com
gratidão, no exercício do seu sacerdócio. Mesmo aquelas e aqueles que,
em estado de necessidade, o substituíam por crendices e outros
"mistérios" com isso ganhando umas águias americanas ou um punhado de
serrilhas ou patacas dos que pela ilha ficaram, contentes com o que ela
lhes dava ou eles nela sabiam encontrar, o respeitavam e ousavam, até,
consultá-lo como se doentes fossem e já tivessem perdido a fé nas
mezinhas da sua tradição e lucro.
O Abel, é certo que os não
recebia como "colegas" mas não os hostilizava, até os compreendendo,
dado os largos períodos que a Ilha passava sem Delegado de Saúde, lá
então denominado Guarda-Mor de Saúde, título talvez mais condizente com
a função.
Eram períodos de angústia,
esses, para quantos por seu mal ou injúrias da sorte se viam obrigados a
passar semanas e semanas à espera de quem por demais tardava e, nos
casos de maior urgência, era substituído pelo médico de bordo do vapor
"São Miguel" durante as escassas horas que demorava no porto de Santa
Cruz ou no das lajes, e isso mesmo só quando ele estava disposto a
atendê-los ou, ao boticário da terra dar um mínimo de instruções acerca
dos remédios a tomar ou até tratamentos a fazer dentro dos limites da
tintura de iodo, da água oxigenada, do penso ou do adesivo.
Tudo decorria naquela quase
modorra de paz sem intromissões de imagens ou sons espúrios, para além
dos poucos dos Serviços de Meteorologia, ali tão importantes por a Ilha
ser a fonte ou, pelo menos, o primeiro sinal do tempo, bom ou mau, que
fazia amarrar mais forte as embarcações de pesca ou soltá-las para pesca
do bonito, da albacora ou, para os maiores e mais apetrechados, uma
saltada até ao Banco da princesa Alice, já nas vizinhanças do Mar dos
Sargaços, viveiro e maternidade de espécies mais valiosas.
O Abel dedicava muitos dos
poucos momentos livres, à leitura, quer das revistas e tratados médicos
que o mantinham mais ou menos actualizado; quer a obras de História,
sobretudo aquelas que tapavam ou destapavam os passos de Napoleão, o
grande corso, por quem tinha verdadeira adoração ao ponto de saber de
cor tiradas inteiras das suas falas aos soldados e aos generais que o
acompanhavam em suas aventuras guerreiras.
Havia mesmo algumas que
frequentemente usava nas conversas com o padre, o Boticário ou o
professor da Escola Primária, única que então havia, já que Liceus, só
os das capitais de Distrito e a mais próxima era a Horta, na Ilha do
Faial, a uma noite inteira de viagem, no "S. Miguel". Sobretudo aquela
tirada atribuída a Napoleão, ao desembarcar da Ilha de Elba e apontava o
caminho até às Torres de Notre-Dame e que veio a tomar o nome do grande
pequeno imperador dos franceses, essa andava-lhe sempre nos lábios a
propósito de qualquer coisa que lhe cheirasse a feito heróico.
Mas, a par da História, sua
maior paixão para lá da do ofício, embrenhava-se em pensamentos e
lucubrações sobre os mistérios da vida e da morte que nunca ligava a
vontades omnipotentes de qualquer "extra-terrestre", mesmo engalanado
com as plumas de séculos de aceitação, devoção e fanatismo.
Era um materialista de
natureza embora o imaterial das alegrias, das tristezas e sobretudo das
dores pesasse, como chumbo, na sua maneira de ser, pensar e agir.
A morte do amigo e o
conhecimento de que tinha sido acompanhada, durante bastante tempo, por
dores atrozes, fê-lo recolher-se, dentro de si, e só de lá sair, como
farrapo humano, para escrever à Mãe, a quem adorava, uma carta de fel
acerca das Impotências do homem na luta que trava com a morte para
conservar a vida. E sentia-se com o seu grau de culpa, como médico que
era e, também, pela cobardia que dele se apossava, por vezes, como
chicote em castigo por obediência a costumes enraizados, sempre filhos
da hipocrisia social em que vivia e, não raro, o esmagava.
Ele que quase limitava às
linhas de um "estou bem e o mesmo vos desejo a todos" as cartas que
escrevia à Mãe, quase sempre a bordo onde tinha por obrigação ir no
exercício de funções, dessa vez encheu três folhas de papel de bordo
para deixar escorrer todo o fel da sua amargura. Nela o Abel se
confessava angustiado só em pensar que, com o galope da Ciência, não
tardaria a ser encontrada a cura para aquele mal terrível que lhe levara
o Amigo.
A carta, por inabitual no
Abel, quase atemorizou a Mãe, tão ciosa do "seu menino", longe, agora,
dos seus afagos e cuidados. E até mediu o tormento do Abel pela dor que
ele tão extensamente transmitira ao papel, ele que quase não gostava de
escrever para além das receitas para o Boticário e de um ou outro
relatório, feito no âmbito da Medicina Legal, para o Delegado da
Comarca, actos que sempre praticava com respeito pelas normas e pelo
interesse que lhe mereciam as funções do cargo e o exercício da
profissão.
E só repousou a Mãe, dos
seus cuidados, quando, passado o mês do intervalo nas escalas do "S.
Miguel", recebeu nova carta, esta já naquele estilo telegráfico que era
bem o do Abel.
Mas o Abel tardou a
encontrar o equilíbrio emocional ainda que sem deixar, nunca, de com
rigor e humanidade, cuidar de cumprir os seus deveres fossem os de
preencher papéis, fossem, principalmente, aqueles que sem serem
propriamente o terreno do que aprendera com os Mestres da sua Faculdade,
não deixavam de fazer parte da maleta onde guardava a seringa, o
estetoscópio, a tesoura, o frasco do álcool e a caixa dos comprimidos de
aspirina.
Eram as palavras de
convencimento e conforto para os momentos de crise, sobretudo daqueles
que surgiam acompanhados de dor, essa espécie estranha de vida que em
muitos momentos chama a morte como forma de libertação.
Era esse o caso daquela
mulher, relativamente nova - não teria mais de quarenta anos... - que
desde os vinte ensinava crianças na aldeola da Caveira, ali a dois
passos de Santa Cruz onde semanalmente vinha a servir de emissária das
necessidades daquelas duas dúzias de famílias que formavam a Aldeia.
Eram os medicamentos na
botica, as compras nas lojecas, a orientação para os poucos negócios de
pastos e quintais após informações que colhia nas Finanças, no Notário
ou na Conservatória. Só não ia ao Tribunal já que sempre conseguia fazer
os acordos que o evitavam.
E nunca lhe faltava barco a
remos ou à vela que a levasse e trouxesse, movido ou dirigido por
músculos sãos de quem fora Mestra e em muitos casos com carinhos de mãe,
castigos de pai e conselhos de amigo.
O Abel conhecia-a bem e
tinha por ela, para além da mais alta consideração, aquilo a que chamava
simpatia, quase amor sem carne, apesar dela ser ainda uma bela mulher,
nunca estragada ou sublimada por actos de sexo ou de maternidade.
Ouvia-a sempre com o maior
respeito e atenção, fosse no consultório do pequeno e rudimentar
Hospital da vila, fosse quando à Caveira tinha de deslocar-se, nos casos
mais delicados.
Olhava-a como se ela fizesse
parte da Ilha e quase a julgava tão parte dela como aqueles azuis dos
renques de hortenses que faziam a fronteira das pastagens, como que a
dizer, com suavidade, o "isto é meu" dos egoísmos da terra.
Mas porque há sempre um dia
na sucessão de dias que a vida é, houve um que marcou para a o. Hermínia
que era esse o nome daquela que de todos não era senão a Mestra, um
começo que não queria fosse, mas era, de fim, traduzido por um grande
mal estar que chegou a levá-la, coisa que jamais havia sucedido, a,
durante uma semana, faltar às aulas de todo aquele canteiro de rosas −
ela assim dizia... − que era a sua Escola.
O caso foi notado quase como
se um aluimento de terras altas da costa, fronteira e vizinha do mar,
tivesse provocado o aparecimento de toda uma fajã de angústia, ainda sem
verdes, sem cais e sem capelinha branca e negra para o orago a eleger
pelas crendices e fé do povo que lá viesse instalar-se como pioneiro.
E tão notado foi que dois ou
três dos pais dos alunos não deixaram de o comunicar ao Abel, ao Dr.
Abel, para que este, sem despertar demasiadas preocupações, a visse e
medicasse em busca de cura ou, pelo menos, melhoras.
Tão depressa os recebeu logo
o Abel largou tudo para se inteirar da situação e quis ir à Caveira sob
o pretexto de ver outra pessoa que acamara.
E, assim, não lhe foi
difícil convencer a "Velha Mestra" a ir, num dos próximos dias, à vila,
para ser examinada em melhores condições e até serem feitas umas
análises sumárias cujos resultados poderiam constituir um primeiro
rebate para outros cuidados mais atentos no caminho de um seguro
diagnóstico.
Ela não quis ouvir o Abel e
só quando ele lhe falou na idade dela, habitualmente crítica para certas
mudanças, nem sempre tranquilas, e, sobretudo, na falta que ela poderia
fazer como jardineira daquele canteiro de rosas a desabrochar, se
resolveu pela promessa de ir à vila durante uns dias, que esperava
poucos, para esclarecer a situação.
O Abel já viera preocupado
da Caveira e tudo preparou para que os exames e análises, possíveis ali,
fossem céleres pois, em caso de necessidade, haveria a possibilidade do
"S. Miguel" levar a D. Hermínia até à Horta, Angra ou Ponta Delgada, ou
mesmo até Lisboa, onde poderia ser examinada com outras certezas de
diagnóstico e eventual intervenção cirúrgica, impossível naquele pedaço
de terra verde e azul, do meio do Atlântico.
O Abel estava realmente
preocupado pois não lhe passaram despercebidos certos sintomas, ainda
que ligeiros mas já alarmantes, verificados ou, para melhor dizer,
confirmados durante os três dias que a D. Hermínia passou na vila para,
no rudimentar Hospital, se sujeitar a exames e testes.
Preocupado como ficou, logo
o Abel se prontificou a preparar, no Faial, através de um Colega Amigo,
companheiro de Coimbra, o necessário para que fosse internada no
Hospital da Horta, esse sim, embora modestamente, capaz de fazer os
exames pretendidos.
Por mercê de contactos
radiotelegráficos em que não foi de pequeno valor a boa vontade dos
encarregados dos respectivos serviços meteorológicos, tudo ficou assente
para que a D. Hermínia pudesse embarcar no "S. Miguel", já daí a oito
dias.
Mas a dificuldade maior era
convencê-la, à D. Hermínia, a abandonar o canteiro e a estar ausente das
suas flores, pelo menos um mês, sendo até certo que poderia ser maior a
ausência.
Mas como "água mole em pedra
dura, tanto bate até que fura" toda aquela insistência do Abel e dos
pais das crianças, agora reforçada pela oferta das duas professoras da
vila, para se deslocarem duas vezes por semana à pequena escola da
Caveira, com o fim de não deixar estiolar, de todo, aqueles rebentos
tenros e frágeis do canteiro da Colega, de todos tão querida e por todos
tão respeitada, acabou por vencer, e tudo ficou assente.
Só não foi maior a romaria
ao pequeno cais do porto, porque se pretendeu não preocupar a D.
Hermínia, na hora da despedida.
E o "S. Miguel" lá foi
levando-a no seu modesto conforto e durante a noite que tardaria a
chegar ao Monte da Guia, um dos braços que abraçava a linda baía da
Horta, donde era fácil ver, na encosta, o edifício do Hospital, não
grande mas maior que todos os que o cercavam.
O Abel tinha combinado tudo
e a D. Hermínia, cujo estado ainda lhe permitia andar normalmente, lá
foi até ao Cais da Alfândega onde já a aguardava o Dr. Goulart que dali
a acompanhou, no carro do Chico Claudino, até ao Hospital onde já a
esperava um quarto branco, de brancura que poderia significar, em sua
pureza, a esperança de voltar em breve ao canteiro das suas flores
pequeninas que deixara em mãos diferentes, a que não estavam habituadas.
Conforme fora prometido ao
Abel, logo começaram os exames, as análises e um minucioso
interrogatório com base em muitos elementos transmitidos por intermédio
do Médico de bordo ao Dr. Goulart que, tal como o Abel, desempenhava, na
Horta, funções idênticas às dele, em Santa Cruz.
Foram naturalmente morosos
os exames mas a tudo resistiu, sem perder a esperança, a D. Hermínia,
sempre saudosa das rosas do seu jardim, embora tranquila quanto à forma
carinhosa como as Colegas as tratariam.
Aproveitando as escalas dos
barcos do Pico, chegou o Dr. Goulart a mandar, para Ponta Delgada e para
maiores certezas, os resultados incompletos obtidos na Horta, por falta
de meios necessariamente incompletos e carecidos de confirmação.
Ao mandá-los, porém, era
visível a preocupação já que havia indícios de que o pior estava a
tomar, cada vez mais, o lugar do melhor.
E assim foi quando, uma
semana depois, veio a confirmação de que o caso era grave, muito grave
mesmo, e, cientificamente, de evolução rápida e imparável.
Tudo foi feito para, ao
menos, libertar a D. Hermínia dos sofrimentos que começavam a aumentar,
só cedendo e mesmo assim em parte, a analgésicos cada vez mais fortes e
menos capazes de a eles obstar e mais, de causarem outros males a
acrescentar aos já existentes.
Essa evolução, quase
galopante, não passou despercebida à própria D. Hermínia que com a
proximidade do regresso do "S. Miguel" à sua Ilha de verdes e azuis,
começou a ter como único objectivo da vida o ir morrer junto das
rosinhas do canteiro dos seus amores.
Chegada a hora do apito da
largada, já o "obrigado" da Professora ao Médico que a tratara foi mais
de adeus agradecido que de "até qualquer dia" de esperança.
Quando o "S. Miguel" lançou
o ferro que o seguraria, ali, à vista da terra verde e azul da Ilha,
durante umas poucas de horas, ouviram-se foguetes que pretendiam, com o
seu estralejar frenético, dar à D. Hermínia sinais de alegria por verem
de novo a grande amiga das crianças que lhe levavam, em braçado, o azul
das hortenses.
Por momentos a D. Hermínia
deixou-se enganar e sorriu ao ver as rosas do seu jardim, ali perfiladas
como em parada de quartel, postura que durou pouco tão depressa a
abandonaram para abraçar e beijar aquela que julgaram recuperada em
milagre de que seriam as bem-aventuradas.
Quase foi de festa esse dia
com o pitoresco de um humilde cortejo de barcos até ao minúsculo cais da
Caveira, logo a seguir ao morro que o abrigava das vagas do nordeste.
Houve uma conversa ligeira
com o Abel e ficou combinado que num dos dias seguintes a D. Hermínia
iria à vila se ele, médico, entretanto não fosse à Caveira.
Mas foi só em casa que o
Abel se inteirou do evoluir da situação por mercê da carta-relatório
que, por intermédio do Médico de Bordo, o Dr. Goulart enviara ao colega
e velho amigo, de Santa Cruz.
O caso era grave e tão grave
que os prognósticos preliminares feitos antes da ida à Horta, não só se
confirmavam, como até se agravaram pelos sucessivos exames e análises.
Não restavam dúvidas ao Abel
de que à D. Hermínia não restariam muitos meses de vida, tudo levando a
crer no tormento de dores progressivamente mais fortes, até à libertação
que a morte causaria.
Logo o Abel a si próprio
marcou o objectivo de privilegiar a vigilância médica à D. Hermínia e,
nesta, encontrar soluções para que o sofrimento fosse reduzido ao
mínimo.
Ela juntara forças para
voltar à Escola mas não tardou uma semana que não se sentisse condenada,
com lágrimas que conseguia verter para dentro de si, a abandonar a sua
paixão e voltar à vila, quase às caldeirinhas, para se avistar de novo
com o Abel e saber do seu destino.
− Sabe, D. Hermínia, o seu
caso, como já deve ter pressentido, é grave, muito grave mesmo, mas
espero que me ajude a torná-lo suportável.
Foi o que o Abel encontrou
para dizer àquela doente que, de há muito, considerava digna de um
destino diferente e que, por ser superiormente inteligente e arguta, não
era merecedora de qualquer mentira, mesmo piedosa.
− Eu sei que pouco me resta
de vida e que já nem verei as minhas rosas florir de novo, antes dos
exames de Julho. Não vá ocultar-me nada. Qualquer tentativa nesse
sentido só servirá para agravar a situação. Confio na sua dedicação e no
seu saber. Sou paciente. Estou resignada. Não tenho medo de morrer
apesar de tão bem ter vivido na missão que na terra me foi dado cumprir.
Mas tenho medo de sofrer. Não me deixe sofrer, peço-lhe, mesmo que o
preço seja a diminuição do tempo de espera. Não lhe peço que mo prometa.
Conheço-o bem para acreditar que me fará a vontade.
O Abel, mais uma vez, ficou
impressionado com o que acabara de ouvir e que logo pôs no mesmo painel
de vida em que colocara a dor e a morte do seu grande Amigo, o que
motivara a sua ida para aquelas terras do meio do mar.
Durante dias e noites o Abel
não parou de ler tudo quanto pudesse servir, não já para salvar a D.
Hermínia, mas para preparar aquele corpo, precocemente cansado da vida,
dando-lhe uma maior resistência anímica ante a cavalgada de tormentos
que se aproximava.
E julgou-se preparado e,
sobretudo, determinado a olhar o trágico daquela situação com a
inteligência necessária para a encarar sem obediência a preconceitos de
moral duvidosa que nada tinham a ver com a verdade da vida viva, em que,
por inteiro, acreditava.
Acamada por fraqueza
generalizada das suas condições de resistência, a Mestra querida de
tantas próximas órfãos do seu carinho, começou a sentir dores
lancinantes, progressivamente maiores, que a levaram, quase diariamente,
a solicitar a presença do Abel e das crianças, junto das quais ainda
conseguia forças para armar sorrisos falsos, aparentando alegria onde só
tristeza havia.
O Abel ia atenuando o que
podia com os argumentos químicos e psicológicos que a Ciência punha ao
seu alcance. Mas sofria, ele também, os tormentos da sua própria
impotência.
Quando se deslocava à Fajã
Grande, a chamamento de qualquer paciente e tinha de atravessar o
redondo daquela Ilha a que, com tanta verdade, chamaram das Flores, num
qualquer ponto alto donde se avistasse o infinito do mar, logo parava e
mandava à frente o moço que lhe servia de eguariço, sob o pretexto de
avisar a família que o chamara para que tudo estivesse em ordem, e
deixava-se ficar a olhar os longes da vida e dos salgados de todo aquele
vasto abismo, sepultura de tantas vidas e berço de muitas mais.
Não era fácil de compreender
toda aquela meditação num corpo ainda jovem, mal dobrados os trinta anos
e, sobretudo, aquele borbulhar de pensamentos em que a vida, nem sempre
ou quase nunca, ia de braço dado com a morte, ambas dando lugar ao
começo e ao fim dos fenómenos de dor que, mais que elas, o preocupavam,
quase mesmo o esmagavam. Mas o Abel, por estar ainda a caminho da
maturidade plena, fosse na Medicina, fosse na própria idade, desde a
morte do Amigo que não deixava de se sentir comandado por forças
conscientes que, em cada caso surgiam como condições necessárias ao
silogismo da própria existência.
O mar, em seu azul esbatido
até à linha longínqua do horizonte e as flores azuis e os chãos verdes,
eram pouco de vida, desde as baleias que ao longe passavam na esperança
de fugir aos arpões, espelhas e lanças dos baleeiros e ao caldeirão
fervente que as transformaria em óleo sem outra dignidade que não a do
sabão; até às vacas que por ali passeavam, talvez alheias à beleza
envolvente, a transformar em espumas brancas de leite os verdes de que
careciam para viver e fazer viver.
Tudo isso bailava, em
erupção contínua, no espírito do Abel que, apesar de toda aquela beleza
sugada pelos olhos, não deixava de procurar soluções ou, pelo menos,
explicações.
Esquecia-se do tempo, naquela contemplação do exterior e do interior de
si, e não raro o moço eguariço voltava para trás, a ver se algum mal
tinha sucedido ao "senhor doutor".
Qualquer entidade suprema a
quem se desse a totalidade dos poderes de princípio e de fim, não era
aceite pelo Abel, embora, como resquícios da sua educação de menino,
surgissem pensamentos de respeito e de medo em luta, quase permanente,
com as leis de causa e efeito que o formaram e depois, sem esforço,
aceitara como verdades de sim e de não, na floresta ou desertos da
existência.
Mas a vida chamava por ele
e, como que estremunhado, lá ia descendo, no passo cauteloso da alimária
que o conduzia, até à borda, pedregosa e negra da pequena concha onde
encontraria, para lá das paredes brancas da Igreja e ao cimo. de uma
escada de poucos degraus, o catre de ferro em cima do qual o doente ia
sofrendo, sob o olhar impotente de um "Senhor Santo Cristo dos Milagres"
representado por gravura amarelecida, já herdada dos avós.
Aí o Abel transformava-se e
sentia ter capacidade para alterar rotas do destino, com a ajuda de pós,
comprimidos ou outros recursos de ali ao pé da porta, como ervas e sumos
que a natureza dera e os avós foram aceitando como eficazes mezinhas de,
pelo menos, não fazer mal.
Todos consideravam já o Abel
como "santo milagreiro" dado o respeito que sempre mostrava pelas
crendices daquela gente carecida de alívios, mais que de pão.
E ele próprio conseguia, sem
esforço, corresponder a essa confiança, nem sempre inocente ou
desinteressada, embora sem nunca poder libertar-se, de todo, daquele
fantasma da dor que, poderia dizer-se, dançava a "dança das horas" com a
D. Hermínia, cada vez mais sujeita às suas investidas, nem sempre
recebidas com resignação.
Ela revoltava-se quando,
quase sempre no isolado do seu modesto quarto, perdia a paciência de ler
e chegava ao insólito de atirar os livros para o chão, mesmo ou até
quando eles pretendiam mostrar que todo o começo tinha um fim e tudo não
passava de contínua transformação sem possibilidades de fixação de
limites ou de retornos prováveis.
Mais que a morte próxima que
adivinhava a bater-lhe à porta da vida, era a dor, as dores, as muitas e
terríveis dores que a levavam a fazer o que, tantas vezes, aconselhava
os outros a não fazerem.
E numa das vezes em que o
Abel foi à Caveira para a ver, mais armado da convicção do que seria
mais piedoso fazer por palavras amigas que por injecções ou outros
enganos, a D. Hermínia encontrou forças para, uma vez mais, lhe dizer,
em súplica:
− Eu não sou capaz de ter
forças que bastem para chegar de novo à vida pela mão da morte que já
sinto em mim.
Não desejo morrer mas sei
que posso deixar de sofrer, morrendo.
Para isso tem o senhor
doutor tantos poderes como o "Senhor Santo Cristo dos Milagres".
Não deixe de fazer uso de um
deles, por suas mãos, já que ele se não tem apiedado de mim, nem parece
saber medir o tamanho do meu sofrer.
É tempo, senhor doutor!
Mais uma vez o Abel saiu
dali atordoado, subjugado, mesmo, com toda aquela visão lúcida de que a
D. Hermínia continuava a dar mostras.
O baloiçar do barco, no
caminho do regresso a Santa Cruz, como que o ajudava a juntar tudo o que
aprendera, vivera e jurara àquilo que sabia ser o inevitável do aumento
daquele sofrimento atroz com que aquela paciente senhora estava a ser
penalizada sem obediência a outras leis que não fossem as da vida e da
morte que julgava suas.
E, antes mesmo de pôr de
novo em terra os passos hesitantes, viu como único caminho para impedir
a rota daquelas dores lancinantes, que já tomava como suas, o pôr-lhes
fim, tão certo estava de que o seu prolongamento seria por semanas,
meses até, sem esperança de qualquer espécie ou retrocesso possível.
E era madrugada alta quando,
após leituras e pensamentos, o Abel chegou à conclusão de que,
contrariamente a todas as convenções morais ou desígnios religiosos, a
cura do mal das dores era mais importante que o prolongamento, em vida
artificial, do alfobre em que elas cresciam em ritmo cada vez maior.
Dificilmente conseguiu
adormecer o tempo curto que o separava da hora a que tinha, no Hospital,
doentes para ver e tratar.
Tinha na sua razoável
Biblioteca, para além de livros ligados à profissão, outros, muitos
outros, em que o problema do sofrimento era analisado até às minúcias,
com o desprendimento de regras falsas e postiças que só tinham de
humanas o facto de partirem de homens e mulheres a quem a cegueira dera
a ilusão de verem uma realidade diferente do real.
Mas era o do Mestre
argentino, José Ingenieros, que mais o impressionava naquela passagem
sublime onde dizia que "aliviar é um dever do bom amigo e negar-se a
fazê-lo, reputa-se como acto desonroso, mistura de impiedade e
cobardia."
E até pensava, muitas vezes,
na designação antiquíssima de "boa morte" que, desde os celtas e outros
povos se dava ao acto de acelerar o fim quando este era o assalto, por
vezes demorado, através do atroz de sofrimentos que tornavam
insuportável o continuar a viver.
E ultimamente, desde o
conhecimento que passou a ter dessas angústias na pessoa daquela que,
por tanto bem espalhar, tanto merecia ser poupada do mal, sentia, sentia
em si a necessidade que havia de seguir um pouco a utopia de ver morrer
em paz e alívio os portadores de doenças incuráveis e causadoras de
dores que amargavam, até ao tutano, a despedida da vida.
E conseguia distinguir a
morte libertadora daquela que, lá bem no fundo, visava um comodismo
social ou até familiar, traduzido pelo fim de um incómodo ou presença
sofredora... cansativa!
Quase não conseguia, o Abel,
libertar-se por inteiro, daquilo que julgava culpa própria, já que,
apesar de médico, não conseguia por fim a um tão grande sofrimento
alheio.
Começou a usar morfina, em
doses crescentes, já que um dos seus mais admirados Mestres da
Faculdade, afirmara, um dia, conscientemente, que "a prudente
morfinização de um canceroso, não prejudicava, notavelmente, o seu
estado geral".
Mas, apesar disso, a D.
Hermínia nem sequer sentia o alívio de saber a morte próxima de si e da
própria libertação dos seus tormentos.
O Abel, cada vez que
verificava essa distância e media, por rictos de dor, quanto ela iria
obrigar a sua respeitada amiga a sofrer, procurava convencer-se da
falsidade de todas as leis que, dizendo-se de vida, se opunham à morte
como libertação.
Chegou a temer, por si e em
si, uma perda total do que sentia valer e que ousava considerar mais
grave que arrostar todas as incompreensões sociais. Por isso sentiu
crescer em si, a ideia, que quase se tornou fixa, de, qualquer que fosse
o preço, libertar a D. Hermínia do seu muito e cada vez mais
insuportável penar.
Já dela tinha ouvido, em
palavras de consciente determinação, aquilo que importava para saber que
a vida, para ela, não podia limitar-se a servir de palco para a dor e os
tormentos psicológicos que trazia ao colo.
Mas, a par desta
constatação, aparecia para ele, para o Abel, médico e ser humano, a
dúvida sobre se deveria ou não a paciente conhecer o momento do desejado
fim.
E nesta luta se passaram
alguns dias, atormentados dias, até que, numa manha luminosa de fim de
Primavera, o Abel acordou embalado ou sacudido no sonho ou pesadelo de
fazer aquilo que julgava ser o seu dever.
E quando, frente ao espelho,
no quarto de banho, olhou a própria cara, conseguiu ver nela uma paz que
ainda mais o fez acreditar em si.
E muniu-se do necessário, de
tudo aquilo que, melhor e mais rapidamente, conseguisse fazer adormecer,
em paz definitiva, sem riscos de acordar e em defesa da vida, aquela que
em dor ia morrendo aos poucos, tão poucos, que não era possível prever
quantos seriam.
Ele sabia não dispor ali,
naquele naco do paraíso que a Ilha era, do que lera ser a mais humana
maneira de acabar com os sofrimentos da vida pela piedade da morte, mas
não deixou de a substituir por equivalente pendão de libertação.
O barquito levou-o até à
Caveira e era calmo o seu semblante quando entrou no quarto e, antes de
olhar o macilento rosto da sua amada doente, olhou a gravura do "Senhor
Santo Cristo dos Milagres" como que a pedir-lhe, apesar de ser ateu, que
o ajudasse, não a levar a D. Hermínia para um qualquer canto do céu, mas
a libertá-la do inferno em que vivia e era tempo de abandonar.
Ainda falou um pouco com a
doente que mal o podia fazer de tão grandes e lancinantes serem as
dores.
Teve o cuidado de não lhe
dar esperanças nem de lhas retirar.
Tão só lhe disse que
precisava de descansar, ao que ela respondeu com um sorriso que só não
era esgar porque ainda havia nos olhos a ternura de um obrigado.
No dia seguinte, tal como
fora previsto pelo Abel, foi ele chamado para certificar que a tormenta
tinha acabado e a bonança chegara.
Não ia preocupado, antes com
um sentido de alívio e calma, em tudo igual ao dos que sabem ter
cumprido o seu dever perante a vida, mesmo que esse dever se traduza na
libertação pela morte.
Mas lá bem dentro dele, já
fermentava a ideia de que chegara ao fim a sua carreira, não tanto pelo
que fizera mas por tudo aquilo que não poderia fazer.
E foi a D. Hermínia, a sua
última doente e a primeira que ele verdadeiramente salvara! |