Veio da sua Ilha em pleno
fim da puberdade, a sonhar com Zarcos, Colombos e Machins e sentindo-se
preso a todos aqueles calhaus, alicerces de berços onde cada palmo de
terra dava verdes e flores de encher olhos e mãos que soubessem ser
leves para a carícia.
Viera como todos os da sua
igualha, em busca de canudo em cima do qual regressasse habilitado a
ensinar os "vilões" em troca de patacas com que, calmamente, pudesse
pagar o atum, o espada, a vaginha e o milho e quanto necessário fosse
para o sustento de si, dos que tinha e ainda, lá mais para diante, dos
que viesse a ter, tão certo era não tencionar desmentir, na parte que
lhe cabia, a tradicional fecundidade das fêmeas da sua terra.
O Pai vivia em jeitos de
pessoa de bens mas, cada noite, o rosário que rezava era o que lhe
ensinasse a manter as aparências sem faltar com a mesada que o "Carvalho
Araújo" levava para a pensão e os livros do Jorge, que assim se chamava
o filho.
O nome nem era vulgar mas
ouvira-o a ingleses que o pronunciavam com respeito, quase reverência,
como se de titular de força e jeito se tratasse.
E tratava, segundo mais
tarde veio a saber, ao serem-lhe contadas façanhas que ornamentavam
bandeiras.
Mas, quando o soube, já nada
adiantaria não gostar dele nem do que significava.
Era Jorge e estava muito
bem.
Quem não quisesse ou do nome
não gostasse, poderia chamar lhe só Menezes, que esse era de família,
enraizada há muito lá para a Ponta do Sol, "bidé de marqueses" como se
dizia, a rir, por referência aos arredondados maneirinhos, quase
conchas, com que a terra recebia do mar os barquitos, finda a refrega
com os bodiões, abróteas e outros peixes com que enchiam a panela e iam
buscar tostões ao mercado da vila ou, se abundantes, ao da cidade.
E ainda porque eram dali
umas três ou quatro famílias em fumaça de velha fidalguia ilhoa, sempre
de pergaminhos acrescidos por todas aquelas léguas de água salgada que
separavam, unindo, o Restelo ao Cabo Girão.
Instalou-se em Lisboa, num
quarto modesto, partilhado com outro colega de curso, que a tanto o
obrigava a magreza dos vinténs, e foi tomando pulso àquela vida nova,
por diferente, sem nunca esquecer o quanto bastasse para em cada verão,
dobrado o Julho dos exames, levar à família a vaidade de poder proclamar
estar em bom caminho o futuro doutor.
Mas a tentação dos braços
abertos de uma qualquer sereia foi mais forte que ele e não tardou que o
fizesse dar-se, inteiro, completo, apaixonado, a uma luta que tinha a
ver com a asfixia que começou a sentir e era filha do tempo.
Refugiou-se, a princípio com
outros e depois isolado, na leitura de quanto lhe parecesse ajuda para
vertebrar o todo, um pouco anárquico, do seu pensamento.
Sentia como sua a luta
mental de todos.
Mas isso não lhe bastava,
porque entendia ser ela estéril se travada sem liberdades de opção, de
que todos os do tempo estavam privados.
Os jornais, as revistas, os
espectáculos, até a movimentação de grupos, estavam policialmente
controlados e eram filtrados por coadores incapazes de deixar passar o
que não fosse do agrado ou do proveito do Senhor que perante todos ou
quase todos, se apresentava ou o apresentavam como Messias, titular ou
responsável por tudo quanto de bom acontecesse e vítima do que de mal
sucedesse pela força das circunstâncias.
Era assim o tempo em que o
Jorge viveu a sua experiência de Lisboa.
Sentia-se atraído para uma
qualquer tarefa, mesmo violenta, da qual pudesse resultar, para si e
para todos, uma luz que iluminasse, sem ter, obrigatoriamente, de criar
sombras. Mas sabia que isso, até pelas leis frias da óptica, era
impossível. Assim lhe tinham ensinado e a luz que buscava passou a ser
quase só para si, embora jamais negasse com ela ajudar a alumiar a
estrada de todos.
Sentia-se só mesmo quando,
mesmo quando, acidentalmente e naquele estender de mãos a que nunca se
mostrava avesso, desempenhava, acompanhado, tarefas perigosas que todas
eram, então, as que visassem exprimir uma qualquer luta pela liberdade
ou pelo não.
Era preciso aparecer e fazer
e ele lá estava, mas dizia não ser para aquelas coisas, tão distante
colocava sempre o caminho que queria pisar em busca não sabia bem de
quê.
E procurava-o, a princípio
calmamente e depois com incontrolada sofreguidão, nas bibliotecas que
passou a frequentar como refúgios para o aclarar das dúvidas ou até como
fermento para o explodir delas em aparentes verdades, sempre acolhidas
como definitivas, por uns tantos dias, às vezes horas, até que uma
página dobrada lhe mostrasse não poder haver certezas senão na dúvida
permanente, único vulcão capaz de lava com força bastante para subir,
depois de ter descido até à base duma aparência enganadora, próxima do
homem.
Esgotava-se e com ele o
cérebro que trazia no corpo sem nele caber em prumos e níveis capazes de
respeitar a negação e a afirmação duma verdade anterior.
Julgou-se, o Jorge, incapaz
de seguir um caminho e passou, num repente, a negar tudo sem procurar o
que de positivo sonhava existir.
Entrou em queda real num
mundo de apatia que sabia não ser o seu.
E fugiu, quase, exilando-se
em Paris, sem recursos de qualquer espécie, cansado que o Pai ficou
perante insucessos escolares repetidos e sem explicação a não ser as
contidas nas informações piedosas que à Ilha chegavam dando-lhe o filho
por perdido, sem cura visível, antes e cada vez mais absorvido numa
espiral que em vez de para cima o atirava inexoravelmente para baixo,
para o baixo de um nada que desmentia o que começara por ser.
Quase passou fome, frio nem
se fala, aquela e este poucas vezes amenizados por um qualquer
acolhimento que lograsse em troca de tarefas sem significado nem valia.
Porque teve uma crise
profunda de quase total alheamento, incompreensível na sua idade,
conseguiu voltar à busca, nos livros, de um caminho de salvação ou
perda rápida que não lhe desse tempo de sofrer o aniquilamento que
sentia aproximar-se.
E tanto lhe fazia...
A princípio quase o
conseguiu mas o calor de que carecia, não estava, todo, nas páginas dos
livros ou nas pedras e telas dos museus.
Por isso, embora lhe
custasse, procurava apoio e contactos, os mais variados, com
trabalhadores emigrados, como ele, mas com a vida de certo modo
estabilizada em volta dum sonho de regresso corporizado nas paredes e no
telhado duma casa.
Também procurava, às vezes,
grupos de vanguarda, indiferentes a tudo menos à tarefa ingente de dizer
não a todos os sins.
Não se sentia seguro, nem
mesmo capaz de se segurar. Chegava mesmo a pensar, nos momentos em que
conseguia passar para lá do nada de que se sentia prisioneiro, ser esse
o seu estado natural, aquele que correspondia a uma natureza cada vez
mais presente em si.
Foi para Marselha onde
hesitou entre o mar e a terra e nesta, entre um qualquer alistamento de
mercenário e a oferta para uma causa, sem lhe importar qual fosse, mas,
de preferência, a que ainda julgava ser a sua.
Mas sempre, ao chegar o
momento de escolher, perguntava a si mesmo qual ela seria, tão
perturbado começava a sentir o seu sentido de escolha.
Aguentou-se por lá uns
tempos, vivendo de expedientes da mais variada ordem, às vezes
procurando ser útil mas sem qualquer esperança de o conseguir ser.
E o que seria ser útil?
E útil a quê?
Regressou a Portugal, quase
por favor de um Capitão que o matriculou a bordo dum cargueiro com
escala por Lisboa.
Os anos que carregara, sem
serem muitos, tornaram-no cansado, desiludido, mesmo.
Só sentia a esperança que no
cais lhe deixou um amigo, encontrado por acaso e que ali tinha arribado,
de muito longe, só porque sentia, como lei absoluta, a do "não matarás"
dos catecismos, mesmo que por detrás do matagal pudesse ver-se o dedo e
o gatilho apontados para si.
A esperança era leve e tão
leve que qualquer nevoeiro a escondia.
Por isso a ilusão fugia e a
desilusão o assaltava.
Quando chegou ao novo cais
da sua vida, nem o distinguiu, tão de partida e de chegada o viu, na
confusão dos olhos e dos pés.
Refugiou-se no primeiro nada
que encontrou: uma pobre mulher, presa a passados tenebrosos e que nele
viu um fio de salvação como bóia de ferro em mar tornado calmo e seguro
da sua força, pelo abismo das águas que eram suas.
Nasceu um par onde só
poderia existir a soma diferenciada de dois.
Mas havia pão, enxerga e
tecto, sem luxos mas com confortos a que nem faltava o veludo e o arame
farpado de alguns livros, muitos deles demolidores mas mesmo assim luzes
dum caminho qualquer.
Ela morreu, um dia, quase
sem um ai, mas deixando na cara áspera de mulher vivida, a que recusava
retoques, um sorriso quase feliz, diferente dos esgares de nojo com que
se habituara a viver, antes do Jorge.
Quando ele a foi levar,
quase sem mais ninguém, ao favo onde comprara poiso para ela, sentiu que
a vida não findara mas tinha que ser diferente por mais separada de
dúvidas de interrogação angustiada.
Julgava ele.
Pelo menos, julgava ele.
Não lhe tinha aquilo a que
chamam amor, bem o sabia, mas devia-lhe gratidão, a gratidão do caldo,
do colchão e do telhado e, às vezes, a de algumas palavras, quase
loucas, onde não era fácil distinguir o que fosse vício, hábito ou mesmo
só máscara de enganar as verdades duma condição perdida.
A ideia da vida passou a ser
gémea da da morte, assim como a quase certeza daquela atropelava, em
cavalgada descontrolada, a dúvida sobre o que esta fosse para lá de si.
Tentou habituar-se mas não o
conseguiu.
Vivia a vida que lhe ficara
na ilusão de que poderia transportar se, para lá do limite dela, levando
o que lhe interessasse e soubesse guardar na arca dos olhos.
Era uma quase alucinação!
Um dia sentiu-se diferente e
tanto que nem se conheceu. Havia uma qualquer coisa que o afoitava ao
mesmo tempo que o fazia amodorrar à espera do nada de uma solução.
Deixou de ler, mesmo os
jornais e o mundo de pequenas esperanças que ainda era o seu, ruiu com a
primeira porta que se lhe fechou.
Sonhou voltar para Paris mas
a força do sonho nem à estação conseguiu levá-lo.
Fechava-se cada vez mais na
concha cavada duma indiferença que sentia voltar e que era a negação
completa daquela vida de intervenção e presenças que quis abraçar e lhe
fugiu.
Ainda tentou escrever.
Mas cada caderno, cada
folha, quase cada linha eram pasto do cesto que a seu lado se abria com
voracidade acompanhada de leve sorriso de pena.
Durante a noite e enquanto
dormia, não deixava de ver uma vida diferente para a qual se sentia
atraído como borboleta na esperança de morte em chama de glória.
Quando acordava, sentia
pena, mas até a consolação desta perdeu ao aperceber-se de que tudo, em
breve, acabaria num vazio.
Daí o ter começado a tentar
enchê-lo.
Podia fazê-lo porque na
modéstia duma situação cómoda, não dependia de ninguém e podia criar o
seu mundo, variá-lo, destrui-lo ou mesmo refiná-lo em amor de si.
E deu-se a percorrer, sem
nexo ou programa, o mundo que o cercava.
Levava mundos pequenos
consigo e punha-os num recanto qualquer do mundo grande, na esperança de
os fundir, a ambos, em criação dum mundo novo, diferente, mas para o
qual nem sequer havia estabelecido programa que fosse regra ou lei a
respeitar.
E sentia-se bem com essa
ausência de portas, janelas, patamares ou marcos.
Havia momentos em que sentia
o chão a fugir-lhe dos pés; outros a chuva, mesmo miudinha, a partir-lhe
os ossos; outros, ainda, em que o sol brilhante lhe tapava a paisagem
como pesada cortina, mãe de escuros.
E já não encontrava, no
sono, o refúgio capaz para deixar o delírio voar.
Tanto se atirava, exausto,
para a enxerga do quarto a implorar em altos berros que queria morrer,
como se levantava a gritar que não morrera, correndo pela porta fora em
busca de diferenças que o dominassem, mesmo que fosse uma embriaguez
anuladora de raciocínios e causadora de vertigens ou de indiferenças sem
princípio nem fim.
Ele que não era − que nunca
foi... − crente de qualquer religião, bateu à porta duma e entrou.
Abriram-lhe os braços em
cruz, dobraram-lhe os joelhos em corte de alturas e puseram-lhe na
frente uma centena de buracos por onde nada se via mas tudo o que fosse
dito era escutado.
E sem saber porquê nem
verdadeiramente como conseguira abrir-se, talvez só porque não visse a
quem falava, chegou mesmo a crer não estar ninguém para lá do ralo.
O sangue da sua loucura
vermelha não manchava qualquer linho que para lá estivesse, embora
saísse em borbutões com a força duma erupção sem motivo, embrulhada em
palavras.
Começara sem se dar conta
verdadeira do que dizia ou do para quê daquela autópsia de si:
− Eu não sei se deveria
abrir a arca do peito em frente do raio de qualquer confissão.
Sempre temi o ridículo e
esta será, aos olhos de mim e apesar de sós, uma entrada nele.
Mas não importa.
Sempre se abriram sem
ferrugens paralisantes as dobradiças de tal arca tão habituada ela
sempre esteve a mostrar quanto guardava, fosse lata ou latão; pedras ou
pedrarias; pratas ou oiros, mesmo platinas; pérolas ou areias; fomes ou
abundância; claros ou escuros, sins e nãos, mas nunca talvez.
E era assim porque sempre
guardei com igual carinho quanto me dissesse respeito no bom e no mau
julgar dos outros. Foi por isso que enchi o baú de tanta coisa que,
embora sem valor para os olhos dos outros, tomava, para os próprios, o
tamanho de preciosidade em medida de avaliação. É que tão rico era, para
os olhos, o calhau de xisto ou de basalto como o cristal de rocha ou a
gema preciosa de um qualquer diamante negro. O que interessava era que
tivesse falado à alma mostrando beleza ou ligação de vida a momentos
vividos.
− Mas isso não são pecados
que importe confessar.
− Ultimamente senti-me
possuído, quase cruelmente, pela força invencível do desejo de encher os
olhos com belezas já vistas, para recordar, ou só adivinhadas, para
serem saudade de mim num dia dos que restam.
E vi-me incapaz de lutar,
para só ver o que de novo me cercasse!
− Sente-se bem?
− Dou comigo,
frequentemente, quase sem me dar conta, a deslizar, estradas fora, com
os olhos em nassa para encher o caldeiro de tudo quanto é verde, luz,
movimento, quietude, céu, terra e se apresente capaz de despertar
regatos, rios, lagos e até mares de encantamento.
E sinto para lá duma
ansiedade, quase a angústia receosa de não poder levar, quando for, os
olhos cheios de com que alimentar a fome impossível, ao começar a viver
quando já não for. E é essa ideia fixa que me empurra para a vertigem do
nada, cada vez mais próximo, em mira de o encher de impossíveis.
− Que Deus lhe dê a Paz!
Mas isso não são pecados...
− E é então que sinto, nos
raros momentos de raciocínio claro e frio, a sedução, quase a miragem,
do para lá de mim. E quando volto a poisar do voo sem asas e as pedras
do chão começam a ferir os pés e a descarná-los, roubando-lhes a mentira
da carne que os afaga, não posso evitar o regresso à viagem julgada
finda, como se com ele pudesse reforçar o recheio do alforge a levar.
− Mas... se continuar a
escuta-lo, serei eu a ter de me confessar pecador!
− Montes e vales, relvas e
pedras, árvores em floresta ou roseiras em jardim, gritos de cascatas ou
murmúrios de águas paradas, voos tranquilos de águias reais ou nervosos
de andorinhas em fim de Primavera, tudo reforça a sacola do peregrino
que sou em caminho para o Santuário do Nada de que quero tornar-me
devoto.
Às vezes consigo parar os
olhos e olhar para mim! Sinto, então, que o peso desta passagem só com
artifícios de linguagem falsa consegue mostrar-se como muralha para um
qualquer amanhã que sempre, ao surgir, nos diz deixar de o ser por
tornar-se, inexoravelmente, o real de hoje, sempre a mostrar-se como
ontem para nunca poder ser amanhã.
E sinto o delírio.
Sinto e sofro-o. Mas não
posso passar sem ele. Chega a fazer parte de mim, tanto me dói.
E é delírio porque não tem
pés para poisar nem asas para voar em qualquer realidade, mesmo
fantástica, a desmentir a imaginação.
Não vejo como vivê-lo, sem o
desmentir, nem como desmenti-lo, sem o ter vivido!
- Pare. Pare, por Deus lhe peço. Tenha piedade de si!
O Jorge nem sequer ouvia a
voz angustiada que, para lá do ralo, lhe implorava silêncio, um silêncio
quase de piedade, tão ansiosa ela chegava aos ouvidos que teimavam em
nada ouvir para que a boca tudo dissesse.
Tudo se passava como se nada
houvesse para além das palavras em catadupa do confessado, ali sem saber
porquê e buscando um alívio que lhe era negado, mesmo em andaina de
conselho amigo, alheio a penitências por pecados que nem eram.
− Por isso vou. Por isso
acudo ao chamamento. Por isso me embriago na loucura do irreal, na luz
dum qualquer artifício que seja, tão só, uma falsa convicção: a de que
continuo para lá do fim.
− E qual fim?
Era a primeira vez que o
Jorge parecia ouvir a voz de quem não via e de quem chegara a pôr em
dúvida a presença, tão longe até ali estivera.
− O trágico da dúvida está
aí, na impossibilidade duma resposta que não seja o recomeço dela.
A glória da certeza
mergulha, como a tragédia da dúvida, no mesmo de mim que só persistirá
pelos artifícios ridículos de restos deixados num qualquer buraco de
esquecimento inevitável, mais ou menos demorado e juncado ou não de
flores que de viçosas, no começo, irão amarelecendo até ao logro das
nascidas em milagre de retortas, prensas e anilina.
Sinto que assim será.
Que não poderá ser senão
assim.
E que sendo, não há
prolongamento para lá do fim da estrada.
Por isso encho os olhos para
os levar cheios e tão cheios que, ao partir, consigam dar-me a mentira
amiga da permanência da luz no e para lá do escuro.
E é aí que sinto mais forte
a ilusão do eu que deixarei de ser, mas, por vaidade oca ou qualquer
outro artifício, julgo poder levar comigo.
Sentia-se, adivinhava-se,
para lá do ralo, que o Confessor se apiedava do confessado mas sem poder
resistir a todo aquele delírio de dúvidas para o qual só teria, se
tivesse, o consolo de uma fé que tudo indicava não morar naquele
turbilhão humano em busca de paz. E sem ela, que poderia fazer se não
encomendar a Deus a tarefa de salvar o desgraçado?
Mas porque não tivesse
coragem bastante para cortar todo o fio daquele novelo de angústia, lá
foi ouvindo, quase tão angustiado como o Jorge, na esperança de que ele
acabasse antes dele próprio sucumbir em perda do que em si tinha por
firme.
− Mas tudo isso continua a
não ser pecado e, por isso, a não merecer a censura ou o castigo do céu
ou da Igreja...
Nem assim o Jorge se
aquietou.
Ele já não se pertencia e
nada nem ninguém conseguiria travá-lo na tarefa vital de pôr-se nu,
mesmo que fosse em simples desabafo da angústia que trazia consigo e o
atormentava, principalmente, quando ousava pensar no que seria o fim.
Por isso continuou, como se
nada ouvisse, apesar de tudo ter escutado de quanto o Confessor dissera
em tentativa de o acalmar, isentando-o de qualquer pecado a que nem
sequer dava a importância de temer.
− Só assim julgo compreender
a ânsia com que revejo, em vez de ver, com que me embriago em vez de
analisar, com que procuro ouvir-me, em vez de ouvir. Vão sendo mesmo
raros os momentos de domínio ou daqueles em que possuo sem me deixar
possuir.
E é principalmente nas paisagens vivas e nas pedras mortas, filhas do
homem que as matou, dando-lhes vida, a golpes de génio ou de cinzel, que
eu encontro quanto julgo poder levar e sei, de antemão, não o poder
fazer. E sei, porque não consigo negar-me totalmente, na mentira dum
pensamento nulo por artificial e sem ser possuidor, ao menos, da
fantasia louca duma afirmação que a si própria se imponha como não.
Tenho mesmo a sensação
estranha de viver em espaços de tempo em que não vivo, mas ainda não
consegui articulá-los com o resto de mim que eles contradizem e até
negam por mercê duma alquimia de cujas regras e retortas eu seja o sinal
negativo.
− Não sei o que dizer-lhe
mais para além do pouco ou nada que lhe disse. Se tem fé, aproveite-a
como bússola para encontrar a paz de que carece. Se não a tem, procure
ganhá-la. Com a misericórdia de Deus até as pedras voam.
O Jorge também estava
exausto mas tinha, a empurrá-lo, a ideia e a necessidade de libertar-se
do pesadelo que para ele era um sufoco, mesmo que, de tanto, ele não
pudesse dar-se conta.
E foi como tentativa de
fecho que conseguiu dizer, agora em tom mais vivo, menos ciciado e por
isso mais firme como verdade a coroar alturas:
− Sinto tudo o que lhe
disse, como realidade, como afirmação em negação frontal dum todo que aí
deixa de ser para a metamorfose das esquírolas em pedaços de sonho,
tentativas de ficar, depois de ir.
Sentia-se para lá do ralo,
se não a confissão duma impotência, pelo menos a falta dum ingrediente.
Mas nem por isso o homem deixava de o ser ao sentir junto de si um seu
irmão em perigo de angústia perante um fim que ele queria passagem e
desejava o fosse para que o fim deixasse de o ser.
− Vá na Paz possível! Que
Deus o proteja de si roubando-lhe as dúvidas que tem e o atormentam,
povoando-lhe o medo de fantasmas na sobrevivência que ninguém lhe pode
dar. O fim também é começo e ninguém lhe poderá roubar a liberdade de
tentar juntar nos olhos, para levar, as belezas da terra e a paz que
nelas conseguir ver.
O Jorge, na aparência
indiferente ao que ouvira, sentiu que a cortina pesada que consigo
levara, corria em jeito de abrir-se para mostrar qualquer coisa.
Mostrar ou deixar ver.
O milagre seria dos olhos
que vissem e não do que estivesse para ser visto.
Por isso foi, por ali fora,
de olhos bem abertos em jeito de amealhar, para a jornada, quanto lhe
mantivesse a esperança de um qualquer nada para lá de si.
E quando chegou àquele lanço
da estrada em que ela abraçava, quase em carícia amorosa, o arredondado
da serra que ia morrer ao mar, lá em baixo, abriu mais os olhos,
sorvendo com eles o inteiro do que queria levar.
Era ali o seu recanto
predilecto de meditação mesmo quando sentia fugir para fora do domínio
de si as sensações estranhas do que não conseguia mas desejava ver.
E isso era ele próprio e tão
ele que não ignorava, nem mesmo já procurava compreender, ser imperioso
acabar. Mas sentia sempre, a seu lado, como que a sentinela em defesa de
si e do que era embora sem nunca esquecer o que tinha sido.
Já não eram muito frequentes
os momentos de lucidez que lhe fizessem recordar o que podia ter sido e
não fora.
Estava para ali ou noutro
qualquer lugar, alheio a tudo menos ao que os olhos pudessem guardar do
que viam.
Tornara-se ideia fixa, quase
obsessão, a ideia da vida para lá da morte, mas uma vida a que nem o do
confessionário conseguiu prestar o aval duma garantia, apesar do piedoso
que foi ao negar-lhe um exame só possível através da fé que não tinha...
Ouvira muitas vezes dizer
que era para lá da morte que a vida começava, mas aquela ausência de
explicação por parte de quem recebera o inteiro da sua angústia,
perturbava-o.
E tanto que nem ousava ver,
na recusa consciente do confessor, qualquer acto de soberba postura em
arremedo de piedade.
Isolou-se ainda mais e
porque ninguém, dos poucos que o conheciam, o olhava como louco,
entregou-se à loucura para dela tirar o sonho possível, o que o fizesse
chegar ao fim com a certeza de levar consigo o sustento para a
eternidade desse sonho com que se sentia irmanado.
E era pelos olhos que
procurava captar tudo, impondo-lhe a ausência de quanto pudesse, pelo
desenvolver dos raciocínios, prejudicar a pureza do que visse.
Quando chegou ao ponto de
julgar ter feito o pleno do que poderia levar consigo, ganhou forças
bastantes para ir.
E foi.
Foi sem saber como mas em
plena entrega de si ao aniquilamento dum conjunto material de que
desrespeitara as regras de sobrevivência natural.
Escolheu o sítio.
Conseguiu pesar as hipóteses
e lançou-se, de braços e olhos bem abertos, das alturas dum rochedo,
sobranceiro ao mar.
Era dia de temporal
desfeito.
Desfeito como ele esperava
ficar depois de partilhado o corpo pelos gumes impiedosos das rochas que
as ondas açoitavam e que, regressada a calma, costumavam beijar. |