Costa e Melo, Ilhas do Mundo Vário. I - Ilhas do Mar, Horta, CMH, 1999, págs. 71 a 90.

O nada para lá do Jorge

Ao Brito Câmara, este pedaço de nada que saiu da sua ilha e se perdeu.

 

Veio da sua Ilha em pleno fim da puberdade, a sonhar com Zarcos, Colombos e Machins e sentindo-se preso a todos aqueles calhaus, alicerces de berços onde cada palmo de terra dava verdes e flores de encher olhos e mãos que soubessem ser leves para a carícia.

Viera como todos os da sua igualha, em busca de canudo em cima do qual regressasse habilitado a ensinar os "vilões" em troca de patacas com que, calmamente, pudesse pagar o atum, o espada, a vaginha e o milho e quanto necessário fosse para o sustento de si, dos que tinha e ainda, lá mais para diante, dos que viesse a ter, tão certo era não tencionar desmentir, na parte que lhe cabia, a tradicional fecundidade das fêmeas da sua terra.

O Pai vivia em jeitos de pessoa de bens mas, cada noite, o rosário que rezava era o que lhe ensinasse a manter as aparências sem faltar com a mesada que o "Carvalho Araújo" levava para a pensão e os livros do Jorge, que assim se chamava o filho.

O nome nem era vulgar mas ouvira-o a ingleses que o pronunciavam com respeito, quase reverência, como se de titular de força e jeito se tratasse.

E tratava, segundo mais tarde veio a saber, ao serem-lhe contadas façanhas que ornamentavam bandeiras.

Mas, quando o soube, já nada adiantaria não gostar dele nem do que significava.

Era Jorge e estava muito bem.

Quem não quisesse ou do nome não gostasse, poderia chamar lhe só Menezes, que esse era de família, enraizada há muito lá para a Ponta do Sol, "bidé de marqueses" como se dizia, a rir, por referência aos arredondados maneirinhos, quase conchas, com que a terra recebia do mar os barquitos, finda a refrega com os bodiões, abróteas e outros peixes com que enchiam a panela e iam buscar tostões ao mercado da vila ou, se abundantes, ao da cidade.

E ainda porque eram dali umas três ou quatro famílias em fumaça de velha fidalguia ilhoa, sempre de pergaminhos acrescidos por todas aquelas léguas de água salgada que separavam, unindo, o Restelo ao Cabo Girão.

Instalou-se em Lisboa, num quarto modesto, partilhado com outro colega de curso, que a tanto o obrigava a magreza dos vinténs, e foi tomando pulso àquela vida nova, por diferente, sem nunca esquecer o quanto bastasse para em cada verão, dobrado o Julho dos exames, levar à família a vaidade de poder proclamar estar em bom caminho o futuro doutor.

Mas a tentação dos braços abertos de uma qualquer sereia foi mais forte que ele e não tardou que o fizesse dar-se, inteiro, completo, apaixonado, a uma luta que tinha a ver com a asfixia que começou a sentir e era filha do tempo.

Refugiou-se, a princípio com outros e depois isolado, na leitura de quanto lhe parecesse ajuda para vertebrar o todo, um pouco anárquico, do seu pensamento.

Sentia como sua a luta mental de todos.

Mas isso não lhe bastava, porque entendia ser ela estéril se travada sem liberdades de opção, de que todos os do tempo estavam privados.

Os jornais, as revistas, os espectáculos, até a movimentação de grupos, estavam policialmente controlados e eram filtrados por coadores incapazes de deixar passar o que não fosse do agrado ou do proveito do Senhor que perante todos ou quase todos, se apresentava ou o apresentavam como Messias, titular ou responsável por tudo quanto de bom acontecesse e vítima do que de mal sucedesse pela força das circunstâncias.

Era assim o tempo em que o Jorge viveu a sua experiência de Lisboa.

Sentia-se atraído para uma qualquer tarefa, mesmo violenta, da qual pudesse resultar, para si e para todos, uma luz que iluminasse, sem ter, obrigatoriamente, de criar sombras. Mas sabia que isso, até pelas leis frias da óptica, era impossível. Assim lhe tinham ensinado e a luz que buscava passou a ser quase só para si, embora jamais negasse com ela ajudar a alumiar a estrada de todos.

Sentia-se só mesmo quando, mesmo quando, acidentalmente e naquele estender de mãos a que nunca se mostrava avesso, desempenhava, acompanhado, tarefas perigosas que todas eram, então, as que visassem exprimir uma qualquer luta pela liberdade ou pelo não.

Era preciso aparecer e fazer e ele lá estava, mas dizia não ser para aquelas coisas, tão distante colocava sempre o caminho que queria pisar em busca não sabia bem de quê.

E procurava-o, a princípio calmamente e depois com incontrolada sofreguidão, nas bibliotecas que passou a frequentar como refúgios para o aclarar das dúvidas ou até como fermento para o explodir delas em aparentes verdades, sempre acolhidas como definitivas, por uns tantos dias, às vezes horas, até que uma página dobrada lhe mostrasse não poder haver certezas senão na dúvida permanente, único vulcão capaz de lava com força bastante para subir, depois de ter descido até à base duma aparência enganadora, próxima do homem.

Esgotava-se e com ele o cérebro que trazia no corpo sem nele caber em prumos e níveis capazes de respeitar a negação e a afirmação duma verdade anterior.

Julgou-se, o Jorge, incapaz de seguir um caminho e passou, num repente, a negar tudo sem procurar o que de positivo sonhava existir.

Entrou em queda real num mundo de apatia que sabia não ser o seu.

E fugiu, quase, exilando-se em Paris, sem recursos de qualquer espécie, cansado que o Pai ficou perante insucessos escolares repetidos e sem explicação a não ser as contidas nas informações piedosas que à Ilha chegavam dando-lhe o filho por perdido, sem cura visível, antes e cada vez mais absorvido numa espiral que em vez de para cima o atirava inexoravelmente para baixo, para o baixo de um nada que desmentia o que começara por ser.

Quase passou fome, frio nem se fala, aquela e este poucas vezes amenizados por um qualquer acolhimento que lograsse em troca de tarefas sem significado nem valia.

Porque teve uma crise profunda de quase total alheamento, incompreensível na sua idade, conseguiu voltar à busca, nos livros,  de um caminho de salvação ou perda rápida que não lhe desse tempo de sofrer o aniquilamento que sentia aproximar-se.

E tanto lhe fazia...

A princípio quase o conseguiu mas o calor de que carecia, não estava, todo, nas páginas dos livros ou nas pedras e telas dos museus.

Por isso, embora lhe custasse, procurava apoio e contactos, os mais variados, com trabalhadores emigrados, como ele, mas com a vida de certo modo estabilizada em volta dum sonho de regresso corporizado nas paredes e no telhado duma casa.

Também procurava, às vezes, grupos de vanguarda, indiferentes a tudo menos à tarefa ingente de dizer não a todos os sins.

Não se sentia seguro, nem mesmo capaz de se segurar. Chegava mesmo a pensar, nos momentos em que conseguia passar para lá do nada de que se sentia prisioneiro, ser esse o seu estado natural, aquele que correspondia a uma natureza cada vez mais presente em si.

Foi para Marselha onde hesitou entre o mar e a terra e nesta, entre um qualquer alistamento de mercenário e a oferta para uma causa, sem lhe importar qual fosse, mas, de preferência, a que ainda julgava ser a sua.

Mas sempre, ao chegar o momento de escolher, perguntava a si mesmo qual ela seria, tão perturbado começava a sentir o seu sentido de escolha.

Aguentou-se por lá uns tempos, vivendo de expedientes da mais variada ordem, às vezes procurando ser útil mas sem qualquer esperança de o conseguir ser.

E o que seria ser útil?

E útil a quê?

Regressou a Portugal, quase por favor de um Capitão que o matriculou a bordo dum cargueiro com escala por Lisboa.

Os anos que carregara, sem serem muitos, tornaram-no cansado, desiludido, mesmo.

Só sentia a esperança que no cais lhe deixou um amigo, encontrado por acaso e que ali tinha arribado, de muito longe, só porque sentia, como lei absoluta, a do "não matarás" dos catecismos, mesmo que por detrás do matagal pudesse ver-se o dedo e o gatilho apontados para si.

A esperança era leve e tão leve que qualquer nevoeiro a escondia.

Por isso a ilusão fugia e a desilusão o assaltava.

Quando chegou ao novo cais da sua vida, nem o distinguiu, tão de partida e de chegada o viu, na confusão dos olhos e dos pés.

Refugiou-se no primeiro nada que encontrou: uma pobre mulher, presa a passados tenebrosos e que nele viu um fio de salvação como bóia de ferro em mar tornado calmo e seguro da sua força, pelo abismo das águas que eram suas.

Nasceu um par onde só poderia existir a soma diferenciada de dois.

Mas havia pão, enxerga e tecto, sem luxos mas com confortos a que nem faltava o veludo e o arame farpado de alguns livros, muitos deles demolidores mas mesmo assim luzes dum caminho qualquer.

Ela morreu, um dia, quase sem um ai, mas deixando na cara áspera de mulher vivida, a que recusava retoques, um sorriso quase feliz, diferente dos esgares de nojo com que se habituara a viver, antes do Jorge.

Quando ele a foi levar, quase sem mais ninguém, ao favo onde comprara poiso para ela, sentiu que a vida não findara mas tinha que ser diferente por mais separada de dúvidas de interrogação angustiada.

Julgava ele.

Pelo menos, julgava ele.

Não lhe tinha aquilo a que chamam amor, bem o sabia, mas devia-lhe gratidão, a gratidão do caldo, do colchão e do telhado e, às vezes, a de algumas palavras, quase loucas, onde não era fácil distinguir o que fosse vício, hábito ou mesmo só máscara de enganar as verdades duma condição perdida.

A ideia da vida passou a ser gémea da da morte, assim como a quase certeza daquela atropelava, em cavalgada descontrolada, a dúvida sobre o que esta fosse para lá de si.

Tentou habituar-se mas não o conseguiu.

Vivia a vida que lhe ficara na ilusão de que poderia transportar se, para lá do limite dela, levando o que lhe interessasse e soubesse guardar na arca dos olhos.

Era uma quase alucinação!

Um dia sentiu-se diferente e tanto que nem se conheceu. Havia uma qualquer coisa que o afoitava ao mesmo tempo que o fazia amodorrar à espera do nada de uma solução.

Deixou de ler, mesmo os jornais e o mundo de pequenas esperanças que ainda era o seu, ruiu com a primeira porta que se lhe fechou.

Sonhou voltar para Paris mas a força do sonho nem à estação conseguiu levá-lo.

Fechava-se cada vez mais na concha cavada duma indiferença que sentia voltar e que era a negação completa daquela vida de intervenção e presenças que quis abraçar e lhe fugiu.
Ainda tentou escrever.

Mas cada caderno, cada folha, quase cada linha eram pasto do cesto que a seu lado se abria com voracidade acompanhada de leve sorriso de pena.

Durante a noite e enquanto dormia, não deixava de ver uma vida diferente para a qual se sentia atraído como borboleta na esperança de morte em chama de glória.

Quando acordava, sentia pena, mas até a consolação desta perdeu ao aperceber-se de que tudo, em breve, acabaria num vazio.

Daí o ter começado a tentar enchê-lo.

Podia fazê-lo porque na modéstia duma situação cómoda, não dependia de ninguém e podia criar o seu mundo, variá-lo, destrui-lo ou mesmo refiná-lo em amor de si.

E deu-se a percorrer, sem nexo ou programa, o mundo que o cercava.

Levava mundos pequenos consigo e punha-os num recanto qualquer do mundo grande, na esperança de os fundir, a ambos, em criação dum mundo novo, diferente, mas para o qual nem sequer havia estabelecido programa que fosse regra ou lei a respeitar.

E sentia-se bem com essa ausência de portas, janelas, patamares ou marcos.

Havia momentos em que sentia o chão a fugir-lhe dos pés; outros a chuva, mesmo miudinha, a partir-lhe os ossos; outros, ainda, em que o sol brilhante lhe tapava a paisagem como pesada cortina, mãe de escuros.

E já não encontrava, no sono, o refúgio capaz para deixar o delírio voar.

Tanto se atirava, exausto, para a enxerga do quarto a implorar em altos berros que queria morrer, como se levantava a gritar que não morrera, correndo pela porta fora em busca de diferenças que o dominassem, mesmo que fosse uma embriaguez anuladora de raciocínios e causadora de vertigens ou de indiferenças sem princípio nem fim.

Ele que não era − que nunca foi... − crente de qualquer religião, bateu à porta duma e entrou.

Abriram-lhe os braços em cruz, dobraram-lhe os joelhos em corte de alturas e puseram-lhe na frente uma centena de buracos por onde nada se via mas tudo o que fosse dito era escutado.

E sem saber porquê nem verdadeiramente como conseguira abrir-se, talvez só porque não visse a quem falava, chegou mesmo a crer não estar ninguém para lá do ralo.

O sangue da sua loucura vermelha não manchava qualquer linho que para lá estivesse, embora saísse em borbutões com a força duma erupção sem motivo, embrulhada em palavras.

Começara sem se dar conta verdadeira do que dizia ou do para quê daquela autópsia de si:

− Eu não sei se deveria abrir a arca do peito em frente do raio de qualquer confissão.

Sempre temi o ridículo e esta será, aos olhos de mim e apesar de sós, uma entrada nele.

Mas não importa.

Sempre se abriram sem ferrugens paralisantes as dobradiças de tal arca tão habituada ela sempre esteve a mostrar quanto guardava, fosse lata ou latão; pedras ou pedrarias; pratas ou oiros, mesmo platinas; pérolas ou areias; fomes ou abundância; claros ou escuros, sins e nãos, mas nunca talvez.

E era assim porque sempre guardei com igual carinho quanto me dissesse respeito no bom e no mau julgar dos outros. Foi por isso que enchi o baú de tanta coisa que, embora sem valor para os olhos dos outros, tomava, para os próprios, o tamanho de preciosidade em medida de avaliação. É que tão rico era, para os olhos, o calhau de xisto ou de basalto como o cristal de rocha ou a gema preciosa de um qualquer diamante negro. O que interessava era que tivesse falado à alma mostrando beleza ou ligação de vida a momentos vividos.

− Mas isso não são pecados que importe confessar.

− Ultimamente senti-me possuído, quase cruelmente, pela força invencível do desejo de encher os olhos com belezas já vistas, para recordar, ou só adivinhadas, para serem saudade de mim num dia dos que restam.

E vi-me incapaz de lutar, para só ver o que de novo me cercasse!

− Sente-se bem?

− Dou comigo, frequentemente, quase sem me dar conta, a deslizar, estradas fora, com os olhos em nassa para encher o caldeiro de tudo quanto é verde, luz, movimento, quietude, céu, terra e se apresente capaz de despertar regatos, rios, lagos e até mares de encantamento.

E sinto para lá duma ansiedade, quase a angústia receosa de não poder levar, quando for, os olhos cheios de com que alimentar a fome impossível, ao começar a viver quando já não for. E é essa ideia fixa que me empurra para a vertigem do nada, cada vez mais próximo, em mira de o encher de impossíveis.

− Que Deus lhe dê a Paz!

Mas isso não são pecados...

− E é então que sinto, nos raros momentos de raciocínio claro e frio, a sedução, quase a miragem, do para lá de mim. E quando volto a poisar do voo sem asas e as pedras do chão começam a ferir os pés e a descarná-los, roubando-lhes a mentira da carne que os afaga, não posso evitar o regresso à viagem julgada finda, como se com ele pudesse reforçar o recheio do alforge a levar.

− Mas... se continuar a escuta-lo, serei eu a ter de me confessar pecador!

− Montes e vales, relvas e pedras, árvores em floresta ou roseiras em jardim, gritos de cascatas ou murmúrios de águas paradas, voos tranquilos de águias reais ou nervosos de andorinhas em fim de Primavera, tudo reforça a sacola do peregrino que sou em caminho para o Santuário do Nada de que quero tornar-me devoto.

Às vezes consigo parar os olhos e olhar para mim! Sinto, então, que o peso desta passagem só com artifícios de linguagem falsa consegue mostrar-se como muralha para um qualquer amanhã que sempre, ao surgir, nos diz deixar de o ser por tornar-se, inexoravelmente, o real de hoje, sempre a mostrar-se como ontem para nunca poder ser amanhã.

E sinto o delírio.

Sinto e sofro-o. Mas não posso passar sem ele. Chega a fazer parte de mim, tanto me dói.

E é delírio porque não tem pés para poisar nem asas para voar em qualquer realidade, mesmo fantástica, a desmentir a imaginação.

Não vejo como vivê-lo, sem o desmentir, nem como desmenti-lo, sem o ter vivido!
- Pare. Pare, por Deus lhe peço. Tenha piedade de si!

O Jorge nem sequer ouvia a voz angustiada que, para lá do ralo, lhe implorava silêncio, um silêncio quase de piedade, tão ansiosa ela chegava aos ouvidos que teimavam em nada ouvir para que a boca tudo dissesse.

Tudo se passava como se nada houvesse para além das palavras em catadupa do confessado, ali sem saber porquê e buscando um alívio que lhe era negado, mesmo em andaina de conselho amigo, alheio a penitências por pecados que nem eram.

− Por isso vou. Por isso acudo ao chamamento. Por isso me embriago na loucura do irreal, na luz dum qualquer artifício que seja, tão só, uma falsa convicção: a de que continuo para lá do fim.

− E qual fim?

Era a primeira vez que o Jorge parecia ouvir a voz de quem não via e de quem chegara a pôr em dúvida a presença, tão longe até ali estivera.

− O trágico da dúvida está aí, na impossibilidade duma resposta que não seja o recomeço dela.

A glória da certeza mergulha, como a tragédia da dúvida, no mesmo de mim que só persistirá pelos artifícios ridículos de restos deixados num qualquer buraco de esquecimento inevitável, mais ou menos demorado e juncado ou não de flores que de viçosas, no começo, irão amarelecendo até ao logro das nascidas em milagre de retortas, prensas e anilina.

Sinto que assim será.

Que não poderá ser senão assim.

E que sendo, não há prolongamento para lá do fim da estrada.

Por isso encho os olhos para os levar cheios e tão cheios que, ao partir, consigam dar-me a mentira amiga da permanência da luz no e para lá do escuro.

E é aí que sinto mais forte a ilusão do eu que deixarei de ser, mas, por vaidade oca ou qualquer outro artifício, julgo poder levar comigo.

Sentia-se, adivinhava-se, para lá do ralo, que o Confessor se apiedava do confessado mas sem poder resistir a todo aquele delírio de dúvidas para o qual só teria, se tivesse, o consolo de uma fé que tudo indicava não morar naquele turbilhão humano em busca de paz. E sem ela, que poderia fazer se não encomendar a Deus a tarefa de salvar o desgraçado?

Mas porque não tivesse coragem bastante para cortar todo o fio daquele novelo de angústia, lá foi ouvindo, quase tão angustiado como o Jorge, na esperança de que ele acabasse antes dele próprio sucumbir em perda do que em si tinha por firme.

− Mas tudo isso continua a não ser pecado e, por isso, a não merecer a censura ou o castigo do céu ou da Igreja...

Nem assim o Jorge se aquietou.

Ele já não se pertencia e nada nem ninguém conseguiria travá-lo na tarefa vital de pôr-se nu, mesmo que fosse em simples desabafo da angústia que trazia consigo e o atormentava, principalmente, quando ousava pensar no que seria o fim.

Por isso continuou, como se nada ouvisse, apesar de tudo ter escutado de quanto o Confessor dissera em tentativa de o acalmar, isentando-o de qualquer pecado a que nem sequer dava a importância de temer.

− Só assim julgo compreender a ânsia com que revejo, em vez de ver, com que me embriago em vez de analisar, com que procuro ouvir-me, em vez de ouvir. Vão sendo mesmo raros os momentos de domínio ou daqueles em que possuo sem me deixar possuir.
E é principalmente nas paisagens vivas e nas pedras mortas, filhas do homem que as matou, dando-lhes vida, a golpes de génio ou de cinzel, que eu encontro quanto julgo poder levar e sei, de antemão, não o poder fazer. E sei, porque não consigo negar-me totalmente, na mentira dum pensamento nulo por artificial e sem ser possuidor, ao menos, da fantasia louca duma afirmação que a si própria se imponha como não.

Tenho mesmo a sensação estranha de viver em espaços de tempo em que não vivo, mas ainda não consegui articulá-los com o resto de mim que eles contradizem e até negam por mercê duma alquimia de cujas regras e retortas eu seja o sinal negativo.

− Não sei o que dizer-lhe mais para além do pouco ou nada que lhe disse. Se tem fé, aproveite-a como bússola para encontrar a paz de que carece. Se não a tem, procure ganhá-la. Com a misericórdia de Deus até as pedras voam.

O Jorge também estava exausto mas tinha, a empurrá-lo, a ideia e a necessidade de libertar-se do pesadelo que para ele era um sufoco, mesmo que, de tanto, ele não pudesse dar-se conta.

E foi como tentativa de fecho que conseguiu dizer, agora em tom mais vivo, menos ciciado e por isso mais firme como verdade a coroar alturas:

− Sinto tudo o que lhe disse, como realidade, como afirmação em negação frontal dum todo que aí deixa de ser para a metamorfose das esquírolas em pedaços de sonho, tentativas de ficar, depois de ir.

Sentia-se para lá do ralo, se não a confissão duma impotência, pelo menos a falta dum ingrediente. Mas nem por isso o homem deixava de o ser ao sentir junto de si um seu irmão em perigo de angústia perante um fim que ele queria passagem e desejava o fosse para que o fim deixasse de o ser.

− Vá na Paz possível! Que Deus o proteja de si roubando-lhe as dúvidas que tem e o atormentam, povoando-lhe o medo de fantasmas na sobrevivência que ninguém lhe pode dar. O fim também é começo e ninguém lhe poderá roubar a liberdade de tentar juntar nos olhos, para levar, as belezas da terra e a paz que nelas conseguir ver.

O Jorge, na aparência indiferente ao que ouvira, sentiu que a cortina pesada que consigo levara, corria em jeito de abrir-se para mostrar qualquer coisa.

Mostrar ou deixar ver.

O milagre seria dos olhos que vissem e não do que estivesse para ser visto.

Por isso foi, por ali fora, de olhos bem abertos em jeito de amealhar, para a jornada, quanto lhe mantivesse a esperança de um qualquer nada para lá de si.

E quando chegou àquele lanço da estrada em que ela abraçava, quase em carícia amorosa, o arredondado da serra que ia morrer ao mar, lá em baixo, abriu mais os olhos, sorvendo com eles o inteiro do que queria levar.

Era ali o seu recanto predilecto de meditação mesmo quando sentia fugir para fora do domínio de si as sensações estranhas do que não conseguia mas desejava ver.

E isso era ele próprio e tão ele que não ignorava, nem mesmo já procurava compreender, ser imperioso acabar. Mas sentia sempre, a seu lado, como que a sentinela em defesa de si e do que era embora sem nunca esquecer o que tinha sido.

Já não eram muito frequentes os momentos de lucidez que lhe fizessem recordar o que podia ter sido e não fora.

Estava para ali ou noutro qualquer lugar, alheio a tudo menos ao que os olhos pudessem guardar do que viam.

Tornara-se ideia fixa, quase obsessão, a ideia da vida para lá da morte, mas uma vida a que nem o do confessionário conseguiu prestar o aval duma garantia, apesar do piedoso que foi ao negar-lhe um exame só possível através da fé que não tinha...

Ouvira muitas vezes dizer que era para lá da morte que a vida começava, mas aquela ausência de explicação por parte de quem recebera o inteiro da sua angústia, perturbava-o.

E tanto que nem ousava ver, na recusa consciente do confessor, qualquer acto de soberba postura em arremedo de piedade.

Isolou-se ainda mais e porque ninguém, dos poucos que o conheciam, o olhava como louco, entregou-se à loucura para dela tirar o sonho possível, o que o fizesse chegar ao fim com a certeza de levar consigo o sustento para a eternidade desse sonho com que se sentia irmanado.

E era pelos olhos que procurava captar tudo, impondo-lhe a ausência de quanto pudesse, pelo desenvolver dos raciocínios, prejudicar a pureza do que visse.

Quando chegou ao ponto de julgar ter feito o pleno do que poderia levar consigo, ganhou forças bastantes para ir.

E foi.

Foi sem saber como mas em plena entrega de si ao aniquilamento dum conjunto material de que desrespeitara as regras de sobrevivência natural.

Escolheu o sítio.

Conseguiu pesar as hipóteses e lançou-se, de braços e olhos bem abertos, das alturas dum rochedo, sobranceiro ao mar.

Era dia de temporal desfeito.

Desfeito como ele esperava ficar depois de partilhado o corpo pelos gumes impiedosos das rochas que as ondas açoitavam e que, regressada a calma, costumavam beijar.

 

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