Leonor! Ó Leonor!
Era a mãe a chamá-la do
passeio empedrado que bordejava, naquele sítio, o redondo da Baia onde o
mar, mesmo nos temporais de Inverno, só chegava em salpicos que, apesar
da força do gigante, mais pareciam carícias a dizer à terra que eram
irmãos e para sempre comungando naquele noivado sacrílego que através
dos tempos se foi reavivando, sem dar mostras de cansaço.
E lá na outra margem daquele
rio fundo de águas salgadas que o Canal era, ia-se erguendo, em tons de
negro a que a neblina dava gazes de irrealidade fantasmagórica, o seio
túrgido da virgem atlântica que mostrava não ter-se de todo perdido na
alquimia telúrica dos séculos.
A Leonor estava sentada numa
pedrita e entretinha-se a dar os pés jovens à carícia das ondas
pequeninas que chegavam ao redondo da baia, já cansadas de serem
gigantes do largo, gozando assim a meninice que partilhavam com quem com
elas quisesse brincar.
Era raro o dia de bom tempo
em que a Leonor não se desse àquela comunhão para a qual não queria
companheiros e nem precisava de autorização, tão perto era a casa onde
com a mãe vivia, desde os tempos, já recuados, em que o pai, para ficar
mas perto das lidas da doca, para ali descera, vindo dos Flamengos, a
única das freguesias da ilha redonda que não tinha mar a beijar-lhe os
pés e conservava, no nome, a marca de colonizações antigas, não muito
significativas, mas que deixaram sinais nas estrigas loiras que cobriam
faces rosadas de alguns dos seus habitantes.
Mas a Leonor não era dessas.
A sua pele era de um moreno
macio que ela cultivava e procurava fazer realçar com o iodo pouco denso
daqueles sóis de Verão que, sem serem intensos, conseguiam por vezes
mostrar-se ao vencer as nuvens que nunca deixavam de cobrir, pelo menos
em parte, a ilha redonda e azul.
Desde muito novita que a
Leonor começara a sentir-se portadora de uma qualquer "varinha mágica"
que a fazia olhar para si como se sempre estivesse lá no alto do Pico
fronteiro, mesmo quando descia ao fundo dantesco da Caldeira, da mesma
forma que nunca o plaino das areias negras ou os pedregulhos basálticos
da costa, era para si trono bastante para o seu sentir de "rainha".
Sentia, sempre, necessidade
de ser primeira mesmo quando, lá bem no fundo de si embora sem nunca o
confessar, soubesse que os seus olhos e as suas palavras nem sempre viam
ou sabiam dizer o que desejava ver ou comunicar.
Era orgulhosa ao sentir-se
condutora de um poder que guardava e nem sempre tinha o recato de não
exercer em circunstancias que o desaconselhavam.
Não conseguia, mesmo, ver o
que todos tinham ao alcance da vista ou da voz, porque sentia, em si, a
força e o pecado de a tudo dizer "não", tão só porque, ao fazê-lo,
mostrava o poder de contrariar, embora não raro e logo a seguir,
afirmasse o que antes negara mas, agora, com a convicção de que a
verdade era só sua e já não seria verdade, a verdade que antes fora dos
outros.
Era curiosa esta rapariga,
há pouco entrada na puberdade, e em que os fenómenos do sexo, como
partilha, nem por ouvir dizer, conhecia.
Limitava-se a si e tanto que
ao por vezes dar aos outros atenções de carinho ou ajuda, o fazia,
sempre, como quem subia mais um degrau na escada que tinha como sua para
a levar ao patamar donde melhor pudesse manobrar a "varinha" do seu eu e
com toda a força da sua suficiência e exclusividade.
Era, assim, aquela Leonor a
quem a mãe chamava do passeio que orlava o redondo da baía.
E ela quase não dava por
isso, tão misturada estava com a espuma e o sussurro daquelas águas
salgadas.
Leonor!
Ó Leonor!
Vens ou não vens, dizia-lhe
a mãe ao chamá-la para qualquer ajuda na faina das couves, das batatas
ou do peixe que antes fora buscar ao mercado de ali ao pé, já que as
terras que tinham, nos Flamengos e subiam pela encosta da Estrada da
Caldeira, o pai as tinha vendido ao mudar-se para mais perto do trabalho
do seu suor e pão.
Mas não resistira à tentação
das Américas e, aproveitando a leva do Vulcão dos Capelinhos, lá foi até
ao Vale de S. Joaquim, em cata de um parente que prometera ajudá-lo mas
se finara, pouco antes, esmagado pelo aços de um tractor que manejava
nas fainas da sacha das terras de um pomar a perder de vista e que só
tinha fim nas pastagens onde, como açoriano de raiz que era, criava
vacas leiteiras para o leite das crianças e velhos de Oakland e San José
de ali não longe.
Isso sucedera em vésperas da
chegada, de nada valendo as suplicas aos herdeiros para que lhe dessem o
que o finado daria se não tivesse antecipado a partida.
Daí resultou o quase
desespero de quem, vendo-se atirado para terras madrastas ou mães,
encontrara só aquelas e se sentia sem forças de ânimo para enfrentar um
regresso sem forças e, portanto, despido do principal ornato dos
"calafonas" de torna-viagem.
Enfronhara-se nos meandros
do trabalho sem esperança e por lá se perdera sem atinar com a coragem
de como tal se confessar à mulher e à filha, aquela que passou a ser
viúva de vivo e esta filha de pai que fora mas já não era.
E viviam, ambas, de uns
trabalhitos que iam conseguindo na casa de senhoras condoídas ou
necessitadas e de uns bordados a que a mãe ainda conseguia transmitir o
segredo dos encantos que aprendera e que soubera conservar, a princípio
como deleite de dedos e, agora, como enxada de pão.
Mas ela, a Leonor, ainda que
sem recusa a pequenos trabalhos de ajuda à fonte da sua vida, não
conseguia, por completo, tapar o seu altivo ar e o sentido dominador que
consigo nascera, até que a tal "varinha" o reforçou ao sentir-se atraída
por um destino de patamar cimeiro donde pudesse voar e, sobretudo, fazer
voar os outros pelos céus e infernos da sua imaginação em que o "eu" só
era "nós" quando estes servissem para engrossar ou reforçar aquele.
Não era por vaidade ou ânsia
de poder mas para satisfação de uma fome infinita de mando e, sobretudo,
de evidência ou até deformação que a conduzia a tudo julgar saber mesmo
o que ignorava.
E era tal a cegueira que não
havia luz que a iluminasse para o entendimento das verdades de todos,
que sempre considerava mentiras, pelo menos até ao momento em que,
tendo-as antes negado, delas se apropriava e passava a exibir como suas,
de raiz e nascença.
O curioso, o mais curioso de
tudo, é que não era má nem maldosa com o intuito ou fito de causar mal,
mas tão só com a obediência à volúpia de si.
Era capaz, até, de
sacrifícios em benefício dos outros mas desde que eles fossem produto do
manejar da "varinha" da sua auto suficiência.
Embora não totalmente
esquecido, o pai foi-se transformando numa miragem para trás, num quase
raio-verde, mais adivinhado que visto, na linha de horizonte de um
Poente distante a que nem a fantasia era capaz de transmitir o dom de
uma realidade a reencontrar.
Crescida um pouco mais, sem
perder o tal pendor altivo de corpo e de atitudes, cedo atingiu os
contornos de mulher apetecível a que uma certa dose de não presença
concedia eflúvios de atracção para os quais os rapazes e senhores que a
viam e conheciam se sentiam chamados, embora não ignorando a presença
daquela ausência que só não existia na realidade da entrega que fazia,
dos pés, às espumas das ondas pequeninas que o mar vinha deixar no
arredondado da sua baía.
Mas porque até os fortes têm
fraquezas, lá surgiu, nas curvas do destino, uma mocidade garbosa que
para a ilha fora atirada pelas ondas do "cumprimento do dever".
E a Leonor sofreu, no todo
de si, as injúrias daquela sorte que já lhe levara o pai e não tardaria
a levá-la a ela para o redondo de uma qualquer outra baia, em tudo
diferente daquela à qual dera as primícias da carícia dos pés de
adolescente.
Sem o esperar, a Leonor viu,
no garbo natural do rapaz do continente, uma maneira simples de
encontrar o comando que a sua natureza, mais mental que física, exigia.
E, quase insensivelmente,
abdicou da "varinha" para não espantar o incauto passarito que embora
com o garrido das cores, nas penas da sua farda, se aproximava daquele
chamariz de atracção que começou por desejar como macho mas cedo se
transformou em ideia fixa capaz de abalar as montanhas de um
entendimento com muito da força antiga do vulcão de ali ao lado.
Viram-se por acaso, em pleno
Largo do Infante, quando ele se dirigia ao Castelo de Santa Cruz para
encontrar um amigo e ela, na simplicidade majestática do seu vestido de
chita escura que fazia realçar todos aqueles movimentos que, sem o
pretenderem ser efectivamente, eram gestos de comando dos próprios
passos a caminho de uma qualquer tarefa doméstica em que a Leonor
ajudava a mãe na colheita do suficiente para pagar a renda da casa e ir
ao mercado em busca do que manter o corpo vivo, retardando a morte.
Ninguém estabeleceu os fios
daquele contacto de pólos diferentes, antagónicos, mesmo, mas houve como
que uma força que os fez tocar e explodir, embora os separasse um tufo
de hortenses, azuladas e verdes, artisticamente semeado num oval de
relva fresca que nascia junto das veneráveis pedras do velho castelo.
É que a Leonor tinha nos
olhos, que nem eram bonitos, uma magia que permitia dar aos gestos,
esses sim, de uma beleza espontânea e quase ritual, uma força que nem
ela própria sabia medir para melhor a empregar.
E tudo se consumara, sem uma
palavra!
Ele jurara a si mesmo, fazer
daquela rapariga airosa e solenemente saltitante na segurança dos passos
no palco magnífico, propriedade sua, objecto dos seus prazeres, altar da
sua adoração, lei dos próprios actos.
Ela sentira nele a metade
necessária para uma unidade na qual o poder que em si adivinhava poderia
exercer-se, fosse pela adoração, fosse pela tentação de carnes em
ebulição, fosse, mesmo e até, por comandos com os quais desse vazão a
toda aquela necessidade que em si sentia, mesmo que para tanto entrasse
no jogo ciclónico do uso das negações e contradições, sempre
acompanhadas do "não" e do "sim" que se tornasse necessário para o
regresso a verdades antes desmenti das ou a mentiras, antes afirmadas
como realidades indiscutíveis.
Era uma força mental da
natureza, aquela rapariga simples que perdera o pai, ganhador do pão, e
que agora ajudava a mãe na tarefa ingrata de o substituir.
E essa força julgou, naquele
encontro do Largo do Infante, encontrar o quanto bastaria para se
exercer.
E não fôra pelos labirintos
do sexo ou mesmo e só da matéria do corpo, que a teia de atracção se
desenvolvera e o casulo se formara para palco do desenrolar de duas
vidas fundidas em cadinhos diferentes mas postas, a partir desse
momento, perante uma realidade vital avassaladora com a atracção, sempre
presente, do desconhecido.
Quando a Leonor, terminada a
ajuda prestada à mãe numa qualquer casa do Colónia Inglesa, entrou em
casa, fê-lo com a naturalidade de quem acabara de viver um dia igual aos
outros. Mas levava em si, e sentia-a em plena e forte, ainda que
inconsciente convicção, a certeza de que algo se havia passado e até
talvez fosse a dádiva de uma pequena barraca ou palco esplendoroso onde
passaria a dispor dos cordelinhos para o comando dos títeres que sentia
ter à volta de si, embora sem ainda os conhecer.
Ele, ao regressar ao Quartel
do seu ofício e, depois, ao quarto do seu alojamento temporário, também
sentia, no mais íntimo de si, o bizarro de uma situação, para si
inteiramente nova, em que, sem palavras, mesmo sem gestos, se sentia um
virar de página, um cair de folha, um rebentar de seiva ou mesmo um
despertar de manhã.
E logo resolveu, até com os
seus laivos de deformação profissional de comando na carreira que
escolhera, tudo fazer para corresponder à força que sentira explodir em
si, com aquela visão ou simples aparição, quase à sombra ciclópica do
gigante fronteira.
E não tinha havido uma
palavra naquele rastilho a caminho duma explosão que menos de sentidos o
era de sentimentos, sem nome no dicionário da vida.
Ela, a Leonor, continuava
fiel à natureza de um destino centralizado em si e capaz da força de
esperar o momento para que a força não desse a sensação de fraqueza.
Sentia que, para essa sua
rota, era importante ser descoberta e não descobrir, ainda que, de
antemão soubesse quem era o descobridor, no qual sentia existir terreno
para arrotear e jamais arado para rasgar o seu chão.
Ele não sabia bem mas sentia
que, qualquer que fosse o seu papel, ela seria o ponto que comandaria os
movimentos, as palavras, as atitudes, mesmo que de sujeição,
ultrapassada que fosse a fase da tentativa de sobreposição que todas as
forças desenvolvem para ser primeiras ou mesmo únicas, pelo
aniquilamento das contrárias.
Mas estava disposto a tudo,
ele que se chamava Alfredo e viera de longe, de terras de para lá do
mar, sem poder imaginar que o seu destino, mesmo que construído de
perdas de si, teria que mudar após aquele encontro mudo, de um e outro
lado de um canteiro de hortenses, à sombra do velho castelo, e da tutela
gigante dum seio túrgido de pedra e de nuvens.
E insensivelmente, sem quase
dar por isso mas com a pontualidade de um cronómetro de fé, lá passava
ele pelo canteiro florido de hortenses, sempre na esperança de encontrar
de novo aquilo que passou a considerar como parte de si, a princípio
como complemento negativo da sua própria afirmação de macho e, depois,
sempre como parte de si, como força a que, se fosse preciso,
subordinaria a sua própria metade.
Ela, não.
Ciosa do que sentia ser mais
do que poder, o seu destino, deixou, durante uns tempos, de acompanhar a
mãe, naquele caminho, e aguardava, em seu trono de chita e cotins, que o
"vassalo" viesse prestar homenagens, em pose de mão estendida na busca
de partilhas.
E era estranha, essa postura
de ambos!
É que, realmente, nem se
conheciam, e, entre eles, havia uma fronteira que separava as condições
de nascença e de viver que só com a força de um destino poderoso poderia
ser ultrapassada.
Mas este é caprichoso e
tanto pode tornar macio e mole o mais áspero e rijo dos rochedos, como
tornar doce o mais amargo dos aloés, como até amargo o mais doce do
melhor trabalho das abelhas silvestres.
Mas um dia não procurado nem
previsto mas tão só encontrado no caminho desencontrado de ambos, uma
qualquer força estranha chamou a Leonor e o Alfredo, em eco
reciprocamente ouvido, e cruzaram-se, ao alcance dos olhos e das mãos e,
quase sem se darem conta, estavam a dizer um ao outro que poderiam ser
metades dum sonho de atracção mas sem ocultarem que sabiam ser perigosa
uma ligação que ultrapassasse os impulsos que sentiam brotar de si.
Da parte dele a convicção
duma estabilidade mental, obtida que fosse a união carnal dos corpos
como cimento suficientemente forte para a ligação das almas.
Da parte dela a convicção de
um passo necessário para que a "varinha" do seu condão pudesse manobrar,
sem esforço mas em absoluto, como manifestação natural de si, e em que o
"não" e o "sim" pudessem ser, sempre, os contrários do que o "sim" e o
"não" fossem no outro.
Sentia-se, porém, mais do
que se via, a diferença dos degraus na escada dos valores que ambos, no
fundo, desejavam levassem, ainda que com fins diferentes, ao patamar
comum onde se julgavam com lugar.
Ela pouco mais tinha que as
primeiras e segundas letras de um elementar ensino, embora tudo se
traduzisse numa força que não abdicava de alturas para manter ou
encontrar igualdades que, para si, não eram mais que esmagamentos de
baixo para cima.
Ele tinha, na bagagem, um
curso superior e um razoável armazenamento de leituras sábias e
profundas que queria poder usar na ânsia de com elas convencer no
caminho de comunhões, nem sempre fáceis de conseguir, mas ainda mais
difíceis de conservar.
Mas o choque deu-se, ou
melhor, o encontro aconteceu e tudo passou a ser diferente como que em
pacto de transigência instintivas, a caminho de solução que nem ele nem
ela sabiam qual fosse.
− Não! Sinto que me podes
pertencer se, antes, eu te pertencer a ti. Mas não entendo como possível
que isso possa suceder sem deixarmos de ser o que somos, ou, pelo menos,
aquilo que julgamos ser. Sei que terás dificuldade em me entender nesta
linguagem de aparentes armadilhas que não posso deixar de usar como
retrato da verdade de mim.
− Compreendo, embora não
perceba o que quer dizer, mas sinto que essas verdades poderão facilitar
a busca de duas naturezas diferentes que como tal se conhecem mas se
julgam incapazes.
Sinto que tenho um destino a
que não posso fugir.
Ou me aceita como sou, ou me
recusa!
O Alfredo, espantado com
todo aquele enovelado de ideias e intenções, onde menos esperava, não
encontrou forças para um qualquer adiamento e logo ali, contra todas as
leis da natureza, deitou-se fora e rastejou um "sim" que era súplica e
não saíra do todo pensante que sabia ter e sempre, até então,
respeitara.
Uma noite, clara noite
enluarada com o Pico a testemunhar o desvario através da neblina do
canal, foram um do outro, num qualquer recanto da Estrada da Caldeira.
Mas ao Alfredo não passou despercebida a ausência do corpo que se lhe
dava e que só sentiu vivo através das contracções de defesa, naturais no
assalto que o acto nunca deixa de ser.
Em compreensão com o seu quê
de forçado, resolveram manter-se assim até ao fim da comissão e depois,
regressado ele ao continente e abandonada por ela a ilha que a vira
nascer, ou casariam, em mordaça para as bocas do mundo, ou permaneceriam
unidos sem formalidades espúrias, até que julgassem ter chegado o
momento de uma separação ou de um selar de continuidade, em final de
experiência.
A Leonor sentia, em si, tal
confiança, mais filha do seu próprio poder que da vontade e desejos do
Alfredo que, nem por um só momento, duvidava de ter encontrado nele,
apesar das diferenças, mais o terreno que o arado, para dar razão ao seu
destino na permanente busca de "sins" para os seus "nãos" e "nãos" para
os seus "sins".
E foram.
Sem alardes de noivado em perspectiva, embora com alguns salpicos de
pena da mãe, cada vez mais velha e carecida, mas não de todo
desesperançada de que, em breve, ela também iria para terras diferentes
de que só conhecia o que aprendera na Escola, há tantos anos já, mas que
conseguira não esquecer.
Foram para uma terra de
província donde não se via nem ouvia o mar, a não ser na caricatura de
uma albufeira ou no ecrã do cinema onde, por vezes, eram despejadas as
latas que o traziam.
A vida do Quartel era por
demais absorvente para que pudesse continuar a adoração nascida junto ao
relvado das hortenses, mas não tanto que impedisse a busca continuada de
uma comunhão de corpos em que um se não limitasse a receber sem nada
dar.
Nas a adoração era tal que,
por si só ,justificava a esperança de chegar ao diálogo, aquele
monólogo, cada vez mais frouxo, cada vez mais desesperado de si.
Nos poucos momentos de
convivência, que não de comunhão, a Leonor não conseguia, nem procurava,
evitar os choques, nem sempre pacíficos, das opiniões acerca de não
importa o quê. Ela só sabia, sentia e agia como se fosse detentora de
todas as verdades e certezas do mundo e, para além disso, com o dom
supremo de, naturalmente, se transformarem em mentiras e erros logo que
o Alfredo, por convicção ou condescendência pacificadora, as aceitava
como boas. E até chegavam ao ponto de duvidar das certezas de um
qualquer dicionário enciclopédia ou gramática, sempre que um deles se
baseava em tais instrumentos para dar base às afirmações ou negações que
fazia.
Só que era o Alfredo a
usá-los como conhecedor que era do respectivo valor. Mas nem assim
conseguia que a eventual e sempre rara concordância da Leonor se
manifestasse sem começar pelo "não" que lhe estava na massa do sangue,
só substituído pelo "sim" quando com este pretendia opor-se a qualquer
discordância do Alfredo.
A Leonor bem procurou e por
vezes consegui u aproveitar o maior e mais seguro desenvolvimento
intelectual do Alfredo e dos instrumentos de cultura que possuía e com
os quais, quase sempre em vão, pretendia puxar à razão a companheira,
conhecedor que era da sua inteligência viva mas terrivelmente dominada
pelos descontrolos mentais que, quase doentiamente cultivava para uso e
abuso da "varinha do condão" de que se julgava possuidora como agulha
magnética do que julgava ser a sua rota infalível.
E até era sincera, a Leonor!
Tão sincera e tão poderosa
que nem a ela própria julgava poder resistir, se confrontada com
verdades, sempre diferentes das suas e que sempre destas considerava
como negação violadora do seu pendor para o mando e para a
superioridade.
A vida foi-se tornando
insuportável para qualquer deles e nem a ideia de tentarem, através de
um filho, amenizar as arestas abrasivas do seu contacto, obteve sucesso
já que das duas vezes que ela surgiu, em momentos de acalmia, logo o
"não" de quem ouvia e afagava a intenção, dava lugar ao "sim" dos
inconvenientes em esmagamento de uma tentativa por demais aleatória em
seus resultados de contradições em fogo.
Chegaram ao ponto de
considerar como ilegítimo qualquer resultado de uma conjunção carnal em
que a comunhão só estaria presente pelos efeitos.
Nem chegaram a casar,
convencidos como estavam de que, mais tarde ou mais cedo, aqui ou ali, a
separação era mais simples, embora da parte do Alfredo houvesse sincera
pena pela perda de um altar de adoração e, da parte da Leonor, pelo
acabar de um campo propício ao manejar dos "nãos" e dos "sins" do
recheio da sua arca de vida.
Um estúpido acidente com
armas de fogo no paiol do Quartel, atirou o Alfredo com todas as honras,
toques de sentido e continências para um qualquer campo de verdade e a
Leonor, ao ver-se forçada pelas circunstâncias, apesar do "irregular" da
sua situação, a acompanhá-lo, não deixou de confessar a uma das poucas
amigas íntimas que criara, que o Alfredo lhe fazia muita falta porque a
sua não presença era uma afirmação de concordância a que dificilmente
iria habituar-se.
Não houve ultrapassagem das
barreiras sociais que eles próprios desejaram assumir em manifestação de
força. Mas a realidade tornou-se outra e, apesar de todas as
manifestações de compreensão, mesmo e até de amizade e carinho por parte
de camaradas do Alfredo, o certo é que a Leonor se viu, de um momento
para o outro, atirada para o lodaçal de uma situação de míngua que a
levaria a um não desejado regresso à sua ilha.
Mas, porque era atraente e
conservava todo aquele ondular solene que fizera o Alfredo naufragar, em
esperança, junto ao renque de hortenses do Largo do Infante, em perda
total de si para a ela não perder, não tardaram propostas para que não
fosse e por ali se ficasse em tentativa de dádiva a outros, do que ao
Alfredo nunca soubera ou quisera dar.
Mas a Leonor era por demais
de si para dar-se a outros, e a resposta surgiu em explosão calma de
sinceridade humana, desta vez não ditada pela coerência que sempre
julgou existir entre o seu "sim" e o seu "não", mesmo em reflexo do
"não" e do "sim" daqueles com quem falava.
− Não!
Volto à minha ilha, mais
pobre do que vim mas com a riqueza de ter encontrado lá quem para aqui
me trouxe e soube ser a terra que sulquei com o arado cruel do meu
destino de contradições.
E foi!
09.09.1997 |