Costa e Melo, Ilhas do Mundo Vário. I - Ilhas do Mar, Horta, CMH, 1999, págs. 53 a 70.

Foi formosa e não segura

à memória da Maria José e do Raul e em aceno de simpatia, à Raquel, companheiros da vivência açoriana.

 

Leonor! Ó Leonor!

Era a mãe a chamá-la do passeio empedrado que bordejava, naquele sítio, o redondo da Baia onde o mar, mesmo nos temporais de Inverno, só chegava em salpicos que, apesar da força do gigante, mais pareciam carícias a dizer à terra que eram irmãos e para sempre comungando naquele noivado sacrílego que através dos tempos se foi reavivando, sem dar mostras de cansaço.

E lá na outra margem daquele rio fundo de águas salgadas que o Canal era, ia-se erguendo, em tons de negro a que a neblina dava gazes de irrealidade fantasmagórica, o seio túrgido da virgem atlântica que mostrava não ter-se de todo perdido na alquimia telúrica dos séculos.

A Leonor estava sentada numa pedrita e entretinha-se a dar os pés jovens à carícia das ondas pequeninas que chegavam ao redondo da baia, já cansadas de serem gigantes do largo, gozando assim a meninice que partilhavam com quem com elas quisesse brincar.

Era raro o dia de bom tempo em que a Leonor não se desse àquela comunhão para a qual não queria companheiros e nem precisava de autorização, tão perto era a casa onde com a mãe vivia, desde os tempos, já recuados, em que o pai, para ficar mas perto das lidas da doca, para ali descera, vindo dos Flamengos, a única das freguesias da ilha redonda que não tinha mar a beijar-lhe os pés e conservava, no nome, a marca de colonizações antigas, não muito significativas, mas que deixaram sinais nas estrigas loiras que cobriam faces rosadas de alguns dos seus habitantes.

Mas a Leonor não era dessas.

A sua pele era de um moreno macio que ela cultivava e procurava fazer realçar com o iodo pouco denso daqueles sóis de Verão que, sem serem intensos, conseguiam por vezes mostrar-se ao vencer as nuvens que nunca deixavam de cobrir, pelo menos em parte, a ilha redonda e azul.

Desde muito novita que a Leonor começara a sentir-se portadora de uma qualquer "varinha mágica" que a fazia olhar para si como se sempre estivesse lá no alto do Pico fronteiro, mesmo quando descia ao fundo dantesco da Caldeira, da mesma forma que nunca o plaino das areias negras ou os pedregulhos basálticos da costa, era para si trono bastante para o seu sentir de "rainha".

Sentia, sempre, necessidade de ser primeira mesmo quando, lá bem no fundo de si embora sem nunca o confessar, soubesse que os seus olhos e as suas palavras nem sempre viam ou sabiam dizer o que desejava ver ou comunicar.

Era orgulhosa ao sentir-se condutora de um poder que guardava e nem sempre tinha o recato de não exercer em circunstancias que o desaconselhavam.

Não conseguia, mesmo, ver o que todos tinham ao alcance da vista ou da voz, porque sentia, em si, a força e o pecado de a tudo dizer "não", tão só porque, ao fazê-lo, mostrava o poder de contrariar, embora não raro e logo a seguir, afirmasse o que antes negara mas, agora, com a convicção de que a verdade era só sua e já não seria verdade, a verdade que antes fora dos outros.

Era curiosa esta rapariga, há pouco entrada na puberdade, e em que os fenómenos do sexo, como partilha, nem por ouvir dizer, conhecia.

Limitava-se a si e tanto que ao por vezes dar aos outros atenções de carinho ou ajuda, o fazia, sempre, como quem subia mais um degrau na escada que tinha como sua para a levar ao patamar donde melhor pudesse manobrar a "varinha" do seu eu e com toda a força da sua suficiência e exclusividade.

Era, assim, aquela Leonor a quem a mãe chamava do passeio que orlava o redondo da baía.

E ela quase não dava por isso, tão misturada estava com a espuma e o sussurro daquelas águas salgadas.

Leonor!

Ó Leonor!

Vens ou não vens, dizia-lhe a mãe ao chamá-la para qualquer ajuda na faina das couves, das batatas ou do peixe que antes fora buscar ao mercado de ali ao pé, já que as terras que tinham, nos Flamengos e subiam pela encosta da Estrada da Caldeira, o pai as tinha vendido ao mudar-se para mais perto do trabalho do seu suor e pão.

Mas não resistira à tentação das Américas e, aproveitando a leva do Vulcão dos Capelinhos, lá foi até ao Vale de S. Joaquim, em cata de um parente que prometera ajudá-lo mas se finara, pouco antes, esmagado pelo aços de um tractor que manejava nas fainas da sacha das terras de um pomar a perder de vista e que só tinha fim nas pastagens onde, como açoriano de raiz que era, criava vacas leiteiras para o leite das crianças e velhos de Oakland e San José de ali não longe.

Isso sucedera em vésperas da chegada, de nada valendo as suplicas aos herdeiros para que lhe dessem o que o finado daria se não tivesse antecipado a partida.

Daí resultou o quase desespero de quem, vendo-se atirado para terras madrastas ou mães, encontrara só aquelas e se sentia sem forças de ânimo para enfrentar um regresso sem forças e, portanto, despido do principal ornato dos "calafonas" de torna-viagem.

Enfronhara-se nos meandros do trabalho sem esperança e por lá se perdera sem atinar com a coragem de como tal se confessar à mulher e à filha, aquela que passou a ser viúva de vivo e esta filha de pai que fora mas já não era.

E viviam, ambas, de uns trabalhitos que iam conseguindo na casa de senhoras condoídas ou necessitadas e de uns bordados a que a mãe ainda conseguia transmitir o segredo dos encantos que aprendera e que soubera conservar, a princípio como deleite de dedos e, agora, como enxada de pão.

Mas ela, a Leonor, ainda que sem recusa a pequenos trabalhos de ajuda à fonte da sua vida, não conseguia, por completo, tapar o seu altivo ar e o sentido dominador que consigo nascera, até que a tal "varinha" o reforçou ao sentir-se atraída por um destino de patamar cimeiro donde pudesse voar e, sobretudo, fazer voar os outros pelos céus e infernos da sua imaginação em que o "eu" só era "nós" quando estes servissem para engrossar ou reforçar aquele.

Não era por vaidade ou ânsia de poder mas para satisfação de uma fome infinita de mando e, sobretudo, de evidência ou até deformação que a conduzia a tudo julgar saber mesmo o que ignorava.

E era tal a cegueira que não havia luz que a iluminasse para o entendimento das verdades de todos, que sempre considerava mentiras, pelo menos até ao momento em que, tendo-as antes negado, delas se apropriava e passava a exibir como suas, de raiz e nascença.

O curioso, o mais curioso de tudo, é que não era má nem maldosa com o intuito ou fito de causar mal, mas tão só com a obediência à volúpia de si.

Era capaz, até, de sacrifícios em benefício dos outros mas desde que eles fossem produto do manejar da "varinha" da sua auto suficiência.

Embora não totalmente esquecido, o pai foi-se transformando numa miragem para trás, num quase raio-verde, mais adivinhado que visto, na linha de horizonte de um Poente distante a que nem a fantasia era capaz de transmitir o dom de uma realidade a reencontrar.

Crescida um pouco mais, sem perder o tal pendor altivo de corpo e de atitudes, cedo atingiu os contornos de mulher apetecível a que uma certa dose de não presença concedia eflúvios de atracção para os quais os rapazes e senhores que a viam e conheciam se sentiam chamados, embora não ignorando a presença daquela ausência que só não existia na realidade da entrega que fazia, dos pés, às espumas das ondas pequeninas que o mar vinha deixar no arredondado da sua baía.

Mas porque até os fortes têm fraquezas, lá surgiu, nas curvas do destino, uma mocidade garbosa que para a ilha fora atirada pelas ondas do "cumprimento do dever".

E a Leonor sofreu, no todo de si, as injúrias daquela sorte que já lhe levara o pai e não tardaria a levá-la a ela para o redondo de uma qualquer outra baia, em tudo diferente daquela à qual dera as primícias da carícia dos pés de adolescente.

Sem o esperar, a Leonor viu, no garbo natural do rapaz do continente, uma maneira simples de encontrar o comando que a sua natureza, mais mental que física, exigia.

E, quase insensivelmente, abdicou da "varinha" para não espantar o incauto passarito que embora com o garrido das cores, nas penas da sua farda, se aproximava daquele chamariz de atracção que começou por desejar como macho mas cedo se transformou em ideia fixa capaz de abalar as montanhas de um entendimento com muito da força antiga do vulcão de ali ao lado.

Viram-se por acaso, em pleno Largo do Infante, quando ele se dirigia ao Castelo de Santa Cruz para encontrar um amigo e ela, na simplicidade majestática do seu vestido de chita escura que fazia realçar todos aqueles movimentos que, sem o pretenderem ser efectivamente, eram gestos de comando dos próprios passos a caminho de uma qualquer tarefa doméstica em que a Leonor ajudava a mãe na colheita do suficiente para pagar a renda da casa e ir ao mercado em busca do que manter o corpo vivo, retardando a morte.

Ninguém estabeleceu os fios daquele contacto de pólos diferentes, antagónicos, mesmo, mas houve como que uma força que os fez tocar e explodir, embora os separasse um tufo de hortenses, azuladas e verdes, artisticamente semeado num oval de relva fresca que nascia junto das veneráveis pedras do velho castelo.

É que a Leonor tinha nos olhos, que nem eram bonitos, uma magia que permitia dar aos gestos, esses sim, de uma beleza espontânea e quase ritual, uma força que nem ela própria sabia medir para melhor a empregar.

E tudo se consumara, sem uma palavra!

Ele jurara a si mesmo, fazer daquela rapariga airosa e solenemente saltitante na segurança dos passos no palco magnífico, propriedade sua, objecto dos seus prazeres, altar da sua adoração, lei dos próprios actos.

Ela sentira nele a metade necessária para uma unidade na qual o poder que em si adivinhava poderia exercer-se, fosse pela adoração, fosse pela tentação de carnes em ebulição, fosse, mesmo e até, por comandos com os quais desse vazão a toda aquela necessidade que em si sentia, mesmo que para tanto entrasse no jogo ciclónico do uso das negações e contradições, sempre acompanhadas do "não" e do "sim" que se tornasse necessário para o regresso a verdades antes desmenti das ou a mentiras, antes afirmadas como realidades indiscutíveis.

Era uma força mental da natureza, aquela rapariga simples que perdera o pai, ganhador do pão, e que agora ajudava a mãe na tarefa ingrata de o substituir.

E essa força julgou, naquele encontro do Largo do Infante, encontrar o quanto bastaria para se exercer.

E não fôra pelos labirintos do sexo ou mesmo e só da matéria do corpo, que a teia de atracção se desenvolvera e o casulo se formara para palco do desenrolar de duas vidas fundidas em cadinhos diferentes mas postas, a partir desse momento, perante uma realidade vital avassaladora com a atracção, sempre presente, do desconhecido.

Quando a Leonor, terminada a ajuda prestada à mãe numa qualquer casa do Colónia Inglesa, entrou em casa, fê-lo com a naturalidade de quem acabara de viver um dia igual aos outros. Mas levava em si, e sentia-a em plena e forte, ainda que inconsciente convicção, a certeza de que algo se havia passado e até talvez fosse a dádiva de uma pequena barraca ou palco esplendoroso onde passaria a dispor dos cordelinhos para o comando dos títeres que sentia ter à volta de si, embora sem ainda os conhecer.

Ele, ao regressar ao Quartel do seu ofício e, depois, ao quarto do seu alojamento temporário, também sentia, no mais íntimo de si, o bizarro de uma situação, para si inteiramente nova, em que, sem palavras, mesmo sem gestos, se sentia um virar de página, um cair de folha, um rebentar de seiva ou mesmo um despertar de manhã.

E logo resolveu, até com os seus laivos de deformação profissional de comando na carreira que escolhera, tudo fazer para corresponder à força que sentira explodir em si, com aquela visão ou simples aparição, quase à sombra ciclópica do gigante fronteira.

E não tinha havido uma palavra naquele rastilho a caminho duma explosão que menos de sentidos o era de sentimentos, sem nome no dicionário da vida.

Ela, a Leonor, continuava fiel à natureza de um destino centralizado em si e capaz da força de esperar o momento para que a força não desse a sensação de fraqueza.

Sentia que, para essa sua rota, era importante ser descoberta e não descobrir, ainda que, de antemão soubesse quem era o descobridor, no qual sentia existir terreno para arrotear e jamais arado para rasgar o seu chão.

Ele não sabia bem mas sentia que, qualquer que fosse o seu papel, ela seria o ponto que comandaria os movimentos, as palavras, as atitudes, mesmo que de sujeição, ultrapassada que fosse a fase da tentativa de sobreposição que todas as forças desenvolvem para ser primeiras ou mesmo únicas, pelo aniquilamento das contrárias.

Mas estava disposto a tudo, ele que se chamava Alfredo e viera de longe, de terras de para lá do mar, sem poder imaginar que o seu destino, mesmo que construído de perdas de si, teria que mudar após aquele encontro mudo, de um e outro lado de um canteiro de hortenses, à sombra do velho castelo, e da tutela gigante dum seio túrgido de pedra e de nuvens.

E insensivelmente, sem quase dar por isso mas com a pontualidade de um cronómetro de fé, lá passava ele pelo canteiro florido de hortenses, sempre na esperança de encontrar de novo aquilo que passou a considerar como parte de si, a princípio como complemento negativo da sua própria afirmação de macho e, depois, sempre como parte de si, como força a que, se fosse preciso, subordinaria a sua própria metade.

Ela, não.

Ciosa do que sentia ser mais do que poder, o seu destino, deixou, durante uns tempos, de acompanhar a mãe, naquele caminho, e aguardava, em seu trono de chita e cotins, que o "vassalo" viesse prestar homenagens, em pose de mão estendida na busca de partilhas.

E era estranha, essa postura de ambos!

É que, realmente, nem se conheciam, e, entre eles, havia uma fronteira que separava as condições de nascença e de viver que só com a força de um destino poderoso poderia ser ultrapassada.

Mas este é caprichoso e tanto pode tornar macio e mole o mais áspero e rijo dos rochedos, como tornar doce o mais amargo dos aloés, como até amargo o mais doce do melhor trabalho das abelhas silvestres.

Mas um dia não procurado nem previsto mas tão só encontrado no caminho desencontrado de ambos, uma qualquer força estranha chamou a Leonor e o Alfredo, em eco reciprocamente ouvido, e cruzaram-se, ao alcance dos olhos e das mãos e, quase sem se darem conta, estavam a dizer um ao outro que poderiam ser metades dum sonho de atracção mas sem ocultarem que sabiam ser perigosa uma ligação que ultrapassasse os impulsos que sentiam brotar de si.

Da parte dele a convicção duma estabilidade mental, obtida que fosse a união carnal dos corpos como cimento suficientemente forte para a ligação das almas.

Da parte dela a convicção de um passo necessário para que a "varinha" do seu condão pudesse manobrar, sem esforço mas em absoluto, como manifestação natural de si, e em que o "não" e o "sim" pudessem ser, sempre, os contrários do que o "sim" e o "não" fossem no outro.

Sentia-se, porém, mais do que se via, a diferença dos degraus na escada dos valores que ambos, no fundo, desejavam levassem, ainda que com fins diferentes, ao patamar comum onde se julgavam com lugar.

Ela pouco mais tinha que as primeiras e segundas letras de um elementar ensino, embora tudo se traduzisse numa força que não abdicava de alturas para manter ou encontrar igualdades que, para si, não eram mais que esmagamentos de baixo para cima.

Ele tinha, na bagagem, um curso superior e um razoável armazenamento de leituras sábias e profundas que queria poder usar na ânsia de com elas convencer no caminho de comunhões, nem sempre fáceis de conseguir, mas ainda mais difíceis de conservar.

Mas o choque deu-se, ou melhor, o encontro aconteceu e tudo passou a ser diferente como que em pacto de transigência instintivas, a caminho de solução que nem ele nem ela sabiam qual fosse.

− Não! Sinto que me podes pertencer se, antes, eu te pertencer a ti. Mas não entendo como possível que isso possa suceder sem deixarmos de ser o que somos, ou, pelo menos, aquilo que julgamos ser. Sei que terás dificuldade em me entender nesta linguagem de aparentes armadilhas que não posso deixar de usar como retrato da verdade de mim.

− Compreendo, embora não perceba o que quer dizer, mas sinto que essas verdades poderão facilitar a busca de duas naturezas diferentes que como tal se conhecem mas se julgam incapazes.

Sinto que tenho um destino a que não posso fugir.

Ou me aceita como sou, ou me recusa!

O Alfredo, espantado com todo aquele enovelado de ideias e intenções, onde menos esperava, não encontrou forças para um qualquer adiamento e logo ali, contra todas as leis da natureza, deitou-se fora e rastejou um "sim" que era súplica e não saíra do todo pensante que sabia ter e sempre, até então, respeitara.

Uma noite, clara noite enluarada com o Pico a testemunhar o desvario através da neblina do canal, foram um do outro, num qualquer recanto da Estrada da Caldeira. Mas ao Alfredo não passou despercebida a ausência do corpo que se lhe dava e que só sentiu vivo através das contracções de defesa, naturais no assalto que o acto nunca deixa de ser.

Em compreensão com o seu quê de forçado, resolveram manter-se assim até ao fim da comissão e depois, regressado ele ao continente e abandonada por ela a ilha que a vira nascer, ou casariam, em mordaça para as bocas do mundo, ou permaneceriam unidos sem formalidades espúrias, até que julgassem ter chegado o momento de uma separação ou de um selar de continuidade, em final de experiência.

A Leonor sentia, em si, tal confiança, mais filha do seu próprio poder que da vontade e desejos do Alfredo que, nem por um só momento, duvidava de ter encontrado nele, apesar das diferenças, mais o terreno que o arado, para dar razão ao seu destino na permanente busca de "sins" para os seus "nãos" e "nãos" para os seus "sins".

E foram.
Sem alardes de noivado em perspectiva, embora com alguns salpicos de pena da mãe, cada vez mais velha e carecida, mas não de todo desesperançada de que, em breve, ela também iria para terras diferentes de que só conhecia o que aprendera na Escola, há tantos anos já, mas que conseguira não esquecer.

Foram para uma terra de província donde não se via nem ouvia o mar, a não ser na caricatura de uma albufeira ou no ecrã do cinema onde, por vezes, eram despejadas as latas que o traziam.

A vida do Quartel era por demais absorvente para que pudesse continuar a adoração nascida junto ao relvado das hortenses, mas não tanto que impedisse a busca continuada de uma comunhão de corpos em que um se não limitasse a receber sem nada dar.

Nas a adoração era tal que, por si só ,justificava a esperança de chegar ao diálogo, aquele monólogo, cada vez mais frouxo, cada vez mais desesperado de si.

Nos poucos momentos de convivência, que não de comunhão, a Leonor não conseguia, nem procurava, evitar os choques, nem sempre pacíficos, das opiniões acerca de não importa o quê. Ela só sabia, sentia e agia como se fosse detentora de todas as verdades e certezas do mundo e, para além disso, com o dom supremo de, naturalmente, se transformarem em mentiras e erros logo que o Alfredo, por convicção ou condescendência pacificadora, as aceitava como boas. E até chegavam ao ponto de duvidar das certezas de um qualquer dicionário enciclopédia ou gramática, sempre que um deles se baseava em tais instrumentos para dar base às afirmações ou negações que fazia.

Só que era o Alfredo a usá-los como conhecedor que era do respectivo valor. Mas nem assim conseguia que a eventual e sempre rara concordância da Leonor se manifestasse sem começar pelo "não" que lhe estava na massa do sangue, só substituído pelo "sim" quando com este pretendia opor-se a qualquer discordância do Alfredo.

A Leonor bem procurou e por vezes consegui u aproveitar o maior e mais seguro desenvolvimento intelectual do Alfredo e dos instrumentos de cultura que possuía e com os quais, quase sempre em vão, pretendia puxar à razão a companheira, conhecedor que era da sua inteligência viva mas terrivelmente dominada pelos descontrolos mentais que, quase doentiamente cultivava para uso e abuso da "varinha do condão" de que se julgava possuidora como agulha magnética do que julgava ser a sua rota infalível.

E até era sincera, a Leonor!

Tão sincera e tão poderosa que nem a ela própria julgava poder resistir, se confrontada com verdades, sempre diferentes das suas e que sempre destas considerava como negação violadora do seu pendor para o mando e para a superioridade.

A vida foi-se tornando insuportável para qualquer deles e nem a ideia de tentarem, através de um filho, amenizar as arestas abrasivas do seu contacto, obteve sucesso já que das duas vezes que ela surgiu, em momentos de acalmia, logo o "não" de quem ouvia e afagava a intenção, dava lugar ao "sim" dos inconvenientes em esmagamento de uma tentativa por demais aleatória em seus resultados de contradições em fogo.

Chegaram ao ponto de considerar como ilegítimo qualquer resultado de uma conjunção carnal em que a comunhão só estaria presente pelos efeitos.

Nem chegaram a casar, convencidos como estavam de que, mais tarde ou mais cedo, aqui ou ali, a separação era mais simples, embora da parte do Alfredo houvesse sincera pena pela perda de um altar de adoração e, da parte da Leonor, pelo acabar de um campo propício ao manejar dos "nãos" e dos "sins" do recheio da sua arca de vida.

Um estúpido acidente com armas de fogo no paiol do Quartel, atirou o Alfredo com todas as honras, toques de sentido e continências para um qualquer campo de verdade e a Leonor, ao ver-se forçada pelas circunstâncias, apesar do "irregular" da sua situação, a acompanhá-lo, não deixou de confessar a uma das poucas amigas íntimas que criara, que o Alfredo lhe fazia muita falta porque a sua não presença era uma afirmação de concordância a que dificilmente iria habituar-se.

Não houve ultrapassagem das barreiras sociais que eles próprios desejaram assumir em manifestação de força. Mas a realidade tornou-se outra e, apesar de todas as manifestações de compreensão, mesmo e até de amizade e carinho por parte de camaradas do Alfredo, o certo é que a Leonor se viu, de um momento para o outro, atirada para o lodaçal de uma situação de míngua que a levaria a um não desejado regresso à sua ilha.

Mas, porque era atraente e conservava todo aquele ondular solene que fizera o Alfredo naufragar, em esperança, junto ao renque de hortenses do Largo do Infante, em perda total de si para a ela não perder, não tardaram propostas para que não fosse e por ali se ficasse em tentativa de dádiva a outros, do que ao Alfredo nunca soubera ou quisera dar.

Mas a Leonor era por demais de si para dar-se a outros, e a resposta surgiu em explosão calma de sinceridade humana, desta vez não ditada pela coerência que sempre julgou existir entre o seu "sim" e o seu "não", mesmo em reflexo do "não" e do "sim" daqueles com quem falava.

− Não!

Volto à minha ilha, mais pobre do que vim mas com a riqueza de ter encontrado lá quem para aqui me trouxe e soube ser a terra que sulquei com o arado cruel do meu destino de contradições.

E foi!

09.09.1997

 

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