A sua Ilha era longa de
muitas léguas. E estreita, também, e tão estreita que do Caralhete,
encostado à Ponta de Rosais, até lá longe, ao Ilhéu do Farol, separado
da Ponta do Topo por um salto de cabrito montês, não havia largura que
fosse o bastante para impedir que os olhos vissem, do mesmo lugar e só
com virar-se, a Graciosa e a Terceira, a Norte, e o Faial e o Pico, a
Sul.
Chamavam-lhe de S. Jorge e, para quem a soubesse olhar, era uma beleza
que por estranho capricho do destino vendilhão de certas gentes, nunca
mereceu o bálsamo dum interesse que a fizesse prosperar em braços de
acolhimento.
Quem a olhasse de cima, lá do alto das pastagens dos Toledos, do Pico da
Esperança ou do ondulado ciclópico da serra do Topo, poderia até julgar
que fora posta ali por qualquer poderosa rainha da Atlântida como muro a
separar o Norte e o Sul das quintas de água, tão de Leste para Oeste era
o seu estático rumo de pedra.
Com os tempos o verde foi-se colando ao negro e aqui e ali, aproveitando
o fresco das grotas e canadas, surgiram manchas de azul e de rosa que do
fim da Primavera até quase ao Outono, eram trono das hortênsias.
Junto ao mar, lá bem em baixo, ancoradas a medo na base de precipícios
de vertigem, havia conchas pouco maiores que búzios e nelas umas pedras
alinhadas, cobertas de colmo, onde se abrigavam gentes quando o bom
tempo se mudava em mau. E por lá foram ficando, essas gentes, pouca
gente, às vezes em ousio, quase heróico, às chicotadas do inverno. Eram
as fajãs. Mais a Norte que a Sul iam sendo aldeias temporárias a
princípio, definitivas, depois, de meia dúzia em busca de inhames e
peixe com que alimentar o corpo já que as almas, quando o número delas o
justificasse, cedo teriam as paredes caiadas duma capela-curral onde, de
vez em quando, o Padre de freguesia próxima ia despejar, com seu latim,
uns nacos de fé a servir de conduto na espera do caminho ou do cais por
onde bois ou burros pudessem descer e subir ou a chata encostar, depois
de aproveitada a jazida se a correnteza da carneirada o permitisse.
O Pai veio da Madeira há muitos anos. Não se sabe se por fugido a
quaisquer justiças de ao pé da porta se empurrado pela fome em busca de
pão que lhe disseram mais fácil nas ilhas irmãs de lá para o meio do
grande lago atlântico. Viera a troco de um qualquer serviço a bordo,
condoído que ficara o Comandante ao saber-lhe a vida triste levada entre
"canudinhos" de aguardente de cana e um ou outro serviço em ajuda a isto
ou àquilo.
E era novo, ainda.
Desembarcado no Cais de Santa Cruz, sem esquecer a sua, logo se enamorou
daquela pequena Ilha onde os montes da borda do mar se desfaziam em
abraços de bem acolher quantos se sentissem perseguidos.
E não tardou a conseguir simpatias, pois até o seu "vinho" era de
mansidão e, passados os limites, se mudava em torpor ensonado, às vezes
acompanhado de ressonar aflautado, junto a qualquer portal vazio ou, se
Verão, à sombra de bote ou chata nas areias de Porto Pim.
Estava sempre pronto, no intervalo, para a ajuda a alguém que dela
carecesse e lha pedisse, fosse para o varar dum bote ou para o arrear de
canoa em busca de cachalote, logo que o foguete do vigia fizesse o
apelo.
E nem todos serviam para isso, tão sensíveis eram as tábuas e as
cavernas, fora do encrespado do mar, onde eram valentes como se de aço
se tornassem cheirado o cetáceo que buscavam. Mas em terra, dir-se-ia de
seda ou de papel aquela lâmina que do oficial ao trancador cortava com o
gume da sua quilha elegante os lombos de cada vaga que impedisse o
aproximar das dezenas de barris, às vezes a bufar para os ares a força
do gigante, e que eram pão de quantos lá iam e dos outros a acenar no
cais ou a subir à vigia em busca de saber se o nordeste ou a nortada
estavam a impedir a caçada.
Ele não ia nessas andanças.
Nem o mar, apesar da Ilha onde nascera e daquela onde arribara, era o
seu poiso natural, muito embora lá para o Caniçal, a caminho da Ponta de
S. Lourenço, tivesse ido algumas vezes em busca de espada ou atum.
Mas não se ajeitara.
Apesar de ilhéu, era homem de terra firme.
Para baloiço lhe bastou, sempre, o da cabeça a flutuar nas nuvens dos "canudinhos"
da sua terra e, agora, nas do verdelho do Pico, mais maneirinhas mas nem
por isso menos propiciadoras do esquecimento calmo no seu culto a Bacos
e Dionísios, já herdado do pai e da mãe.
Era um pobre a que logo puseram o nome de "Semilhas" tão pouco ele se
ajeitava a chamar por seu nome as batatas, já que lá na sua terra, assim
eram chamadas embora com o "i" transformado em "a" quase fechado.
E nem a alcunha lhe desagradava, tão marca de origem lhe parecia ser.
Quando o "S. Miguel", que o trouxe, picou a amarra que o ligava ao
fundo pedregoso, mesmo em frente da Pontinha, nem uma lágrima ficou no
cais a chamar por ele. Não deixara ninguém atrás de si, e, mesmo que
deixasse, nem se importaria muito tal a insensibilidade que dele se
apoderara por mercê do álcool, vinda já de trás, da mãe e do pai, talvez
dos avós, na cadeia ininterrupta de enganos em tarefa de reais
necessidades, como era da condição de tantos dos seus irmãos da Ilha.
Integrado no nada fazer habitual daqueles cais, quase sem navios, por
ali vivia.
Nem tinha casa, o Semilhas; nem com que a pagar apesar da barateza
delas, se a encontrasse.
O Inverno ainda estava a
luas de distância e das chuvas do Outono ia conseguindo furtar-se, neste
ou naquele portal aquecido de dentro para fora por quantos − e alguns eram
− gostavam de o ouvir contar façanhas
da Ilha de lá longe, onde nem a proximidade da costa areenta dos
berberes impedia o falar-se, como ali, ainda que com entonar diferente,
a marcar origens.
Era o Semilhas, em breve, tornado figura daquela freguesia que "do Largo
do Infante, até ao fim do Pasteleiro", limitava, a Sul, a cidade.
Mas como as desgraças nunca vêm sós e a uma que está, outra se juntará,
a Amélia, pobre como ele e por igual dada à bebida, mais notada por ser
mulher, apareceu-lhe no caminho do Cais e porque tinha uma barraquita,
coberta de folhas de zinco, refugo das obras do porto, já para lá não
foi sozinha.
Sem mesmo saberem bem porquê, para além de sentirem ser maior o calor
para o Inverno, se juntos, passaram a partilhar a cama que era larga e o
púcaro onde a água raras vezes ia, mesmo para o lavar.
E na esteira da filosofia dos pobres procuravam juntos quanto bastasse
para, a dormir ou a aquecer-se, os levar a sentir serem, como os outros,
criaturas de Deus e irmãos do próximo, sempre a afastar-se.
E nasceram os filhos.
O mais velho, o "Manel", de seu nome, era, como o Pai, um desgraçado só
contente com o imitá-lo como palhaço de tascas e botequins, desde muito
novito. Mas do Pai não herdara a mansidão das ressacas, nem mesmo o
respeitador dos jeitos no ajudar de quem a ele recorresse. Cedo se
transformou, com a força da idade pujante, num quase arruaceiro,
malcriado, atrevido e indesejado. Só no futebol, para que tinha jeitos
de grande e calmo senhor, era impecável o seu comportamento. Desarmava
com limpeza o avançado mais pintado; ajudava, como poucos, a defesa da
sua área e, lá à frente, não raro aproveitava o tiro de longe a colher
de surpresa o guarda-redes em momento de desatenção por ele pressentida
com mestria.
Até no respeito que os adversos lhe mereciam, sempre estendido aos
homens do apito, era um Senhor, o Manel Semilhas!
A prova estava nas canelas cuja pele, já gasta de tanta canelada levar,
era como mortalha de cigarro apesar de nunca a biqueira das próprias "chuteiras"
ter roçado, sequer, as dos outros. Despida a camisola do seu Sporting e
passado para fora das linhas do rectângulo, era outro, o "Manel", e tão
outro que poderia dizer-se não haver pior.
O outro filho, a Júlia Semilhas, foi destinada a mostruário de quantos
defeitos e mazelas a hereditariedade quisesse fazer notar.
Ar de apoucada, fala tartamudeada, olhos em permanente ausência e, a
reforçar a tragédia do seu destino, uma absoluta insensibilidade face às
regras de todo o meio ambiente, mesmo as mais erradas. Qualquer
malandrim a aproveitava, desde pouco mais de criança, chegando os
rapazotes a procurar, para iniciação e em bicha, nem sempre em lugar
escuso, a complacência da Júlia. Dizia-se, até, ter sido o pai com a
ajuda da mãe e na loucura alcoólica em que frequentemente refugiavam a
própria miséria, a colher-lhe as pobres primícias do corpo.
Uma desgraça, tudo aquilo!
O terceiro era o Joaquim, espaçado uns anos, não muitos, do Manuel e da
Júlia.
Fosse pelo tardio da geração, fosse por qualquer desígnio milagrento da
Senhora das Angústias, o Joaquim cedo se tornou notado pelos valores
altos e baixos que levava no armazém do corpo meão e quase desengonçado
a que uma cabeça ameloada coroava em dúvida de alguma coisa conter.
Andava por ali, numa roda viva, sempre com passos em direcção oposta à
da Escola, a fazer recados ou a dar com os pés albarcados com um pedaço
de pneu velho, nas pedritas do caminho, nas latas de conserva vazias,
ou, em dias de sorte, no fofo duma qualquer meia com casca de arroz ou
farelo de trigo.
E era vê-lo a zig-zaguear como enguia, atirando o corpo para um lado e
as pernas, ligeiramente entortadas, para outro. A própria cabeça pouco
se erguia para olhar o alto do Pico ou das palmeiras do Largo do
Infante, tão preocupado sempre estava a olhar os pés de quantos garotos
como ele, lhe quisessem furtar a trapeira, o calhau ou a lata.
Mas a Escola...
Dir-se-ia que o recreio era pequeno demais para o "tamanhor" daquela
traquinice e nem o Professor Faria com seus dons de pedagogo e artista
sem preço, conseguiria prendê-lo pelo menos, no abecedário ou na
singeleza das contas de somar dois algarismos.
O Largo da Doca; o pequeno
adro da Igreja de N. S. das Angústias; o terreiro junto do portão do
Castelo onde apodreciam, entre pulgas e piolhos, as palhas da enxerga
dos poucos presos à ordem do Juiz, e até os passeios largos da pequena
ladeira da Alfândega, tudo servia ao "Jaquim"
para circo das suas malabarices com a primeira bola ou coisa que se
parecesse a surgir-lhe no seu caminho ou no dos outros.
Era um vivo demónio!
E tão vivo e tão demónio que cedo se tornou figura da rua longa que do
Pasteleiro ia até à Ribeira da Conceição, quase aos pés da Espalamaca.
Apareceu na Ilha um funcionário, ainda novo, que, por mero acaso, foi
viver para as Angústias, a freguesia onde os Semilhas: pai, "Manel",
Júlia e "Jaquim" subiam o seu calvário de miséria e fome, só com o
patamar, raro, de uma qualquer descarga de carvão no porto ou de serviço
eventual ligeiro, propiciador, quando muito do engano do que comer. Só o
beber não parecia faltar tantos eram os que, desapiedadamente,
pretendiam, em gozo hílare, aproveitar-se da falta de "juízo" de
qualquer deles.
O Pai morrera, entretanto, roído pela cirrose e suas fibras malignas,
outro tanto sucedendo à Mãe que em pouco lhe sobreviveu.
A Júlia por lá foi ficando, uns tempos mais, agora quase sem pecar, tão
ruína se tornara. Mas acabou ceifada, ela também, pela foice trazida
pelo pai da sua Ilha distante.
O "Manel", com o futebol e o conselho de quantos lá o admiravam, foi
mudando de vida e comportamento, procurando trabalho e prometendo a cada
empregador regenerar-se e ser, cá fora das quatro linhas do campo, o
mesmo cidadão exemplar que lá era em permanente respeito por quantos com
ele partilhavam o jogo da vida.
Nem sempre o conseguiu mas conseguiu-o bastantes vezes, chegando a ser
dado como exemplo de regeneração possível.
O "Jaquim" dava cada vez mais nas vistas de quem o olhava.
Ao tal funcionário, vindo do Continente, também o "Jaquim" não passou
despercebido. E não passou até porque, um dia, numa daquelas malabarices
traquinas com uma lata vazia que voava, desgarrada, em direcção à cara
do tal funcionário, que até gostava de futebol, foi o "Jaquim" a
atravessar-se e, com um toque de jeito, a evitar o desagradável duma
agressão da lata ao senhor O "Jaquim" que já não era um garoto embora
pelo desengonçado e meia marreca do corpo, mais o parecesse que quase
adulto, correu em fuga. E foi preciso o chamamento do continente para
que ele se quedasse e, face ao sorriso aberto do apelo, voltasse atrás.
− Ouve lá, rapaz, como aprendeste tu a tocar uma lata como se bola
fosse e tu, jogador de futebol?
Olhos no chão, como de seu natural, o "Jaquim" sorriu a medo, em mostra
de dentes podres e, aparvalhado, foi dizendo:
− Sei lá! Sei lá! Dá-me jeito e gozo brincar assim, seja com o que for.
Quer ver?
E logo ali, na frente do Senhor do Continente e perante o ar divertido
de quantos o conheciam e se aproximaram, pegou na alborca que tirou do
pé direito e, com o pé esquerdo, dela fez quanto quis, acabando mesmo
por fazê-la entrar no postigo redondo do muro que ladeava o relvão do
Gregório.
− Viu? É fácil. Basta dar-lhe o jeito. Se fosse uma bola e com "gajos"
na frente ainda era mais bonito!
O do continente sorriu com gosto e ficaram amigos apesar da diferença
das suas condições.
Perdê-lo e achá-lo era em busca de sítios por onde o "Jaquim" passeasse
a sua traquinice e fizesse valer, em relação aos outros, da sua igualha,
o seu poder de finta e o sempre imprevisto das direcções que imprimia às
bolas do seu destino, nem sempre redondas e nunca ou quase nunca capazes
de rumo certo.
Era sempre um espectáculo, o "Jaquim"!
Não se sabe bem porquê mas o tal, do continente, pressentiu fome, no "Jaquim".
E levou-o a casa, ali perto, quase na curva para o varadouro e não longe
da sede do Atlético, uma modesta agremiação tendo o desporto como
objectivo e um pequeno grupo teatral, criado para, nas verbenas do
Verão, angariar fundos bastantes para a compra de camisolas, calções,
meias, chuteiras e bolas com que os rapazes da freguesia, mais calhados,
jogassem o futebol em despiques cerrados com o Sporting ou com o Faial
Sport.
E pediu à mulher arranjasse qualquer coisa para o "Jaquim".
− Mas só se for sopa, um resto que ficou de ontem.
E mal teve tempo de ver os olhos em festa do "Jaquim" tão depressa ele
respondeu:
− Eu até gosto mais, se for quentinha. Tenho comido tão pouca!
Mas, a sério, gosto inda mais se requentada.
E passou a ser freguês, o "Jaquim". Fazia-se até encontrado tão bem lhe
soubera a quentura daquele caldo.
E quem o visse a farejar a porta e o relógio da torre, não adivinhava,
tão humilde se tornara, o valdevinos das tropelias da rua e, muito
menos, o irmão do "Manel" e da Júlia, filhos do Semilhas e da Amélia.
Dava uns recados. Ia à padaria, ao talho e até ao João da Cruz, buscar
linhas. Se a sopa era do dia, se gasta toda, na véspera, o "Jaquim",
cosido com o muro do pequeno quintal ou sentado nos degraus que davam
para a cozinha, suspirava:
− Não tem de ontem, minha Senhora?
E ficava desconsolado, se não havia, embora sempre receoso, não fosse a
impertinência desagradar à Senhora.
E começou a aparecer nos treinos do campo da Doca, o "Jaquim".
O do continente fora convidado pelo Professor Faria para uns contactos
com os rapazes das Angústias na intenção de lhes dar uns aprontos
visando o aproveitamento das qualidades que tivessem.
Era um quase artesanato, aquilo!
Umas voltas ao campo. Uns movimentos de ginástica empiricamente
aprendidos. Umas subidas ao monte vizinho e, sobretudo era o que mais
agradava à rapaziada − a utilização das poucas bolas existentes, em
remates à baliza, marcação de cantos e livres e manobras programadas de
desmarcação e passes, curtos ou longos, a habituar os avançados às
corridas para trás dos defesas e jeito de pronto e forte remate.
E havia naquela gente humilde da freguesia, uma quase assiduidade aos
treinos, a empurrar com o seu entusiasmo o dos rapazes ansiosos por
começar a vencer os "senhores" lá de baixo, do Faial Sport e do
Sporting, que tinham campo seu e bolas bastantes para o treino. E até,
dizia-se, quase não tinham de remendar as camisolas, pôr fundilhos nos
calções ou pontear as meias!
A freguesia humilde vivia o seu Atlético e dos pais em relação aos
filhos que jogavam, tirava o do continente precioso acrescento para a
disciplina que desejava impor, com braço por cima do ombro.
Duma vez − e o caso foi bem falado
− em pleno Cais de Santa Cruz em
ablativos de partida para S. Miguel, onde o Atlético ia disputar o
campeonato dos Açores, apareceu o José Dias, fogueiro da E.E.H. e pai do
guarda-redes com o mesmo nome, que tinha fama de medroso.
E muitos dos que por ali estavam ouviram do pai para o filho, em ar
solene de comando:
− Vê lá como te portas. Se me vierem dizer que tiveste medo e por isso
o Atlético perdeu, não me apareças mais em casa. Até já falei com a tua
mãe sobre isso.
Foi nesse areal de entusiasmo que o "Jaquim" medrou e quase dum momento
para o outro se tornou o ponta esquerda do Atlético, com aquele seu ar
quase simiesco, tronco entortado e marreca propícia a base de saltadores
do eixo.
O do continente, que passou a treinar os rapazes às terças e
quintas-feiras cedo desistiu de, por movimentos adequados, tentar
endireitar o torto do "Jaquim". É que ele era perfeitamente incapaz de
fazer uma extensão lateral de braços ou de sincronizar, como ao tempo
era de regra, os movimentos com a espiração.
O "Jaquim" era o "Jaquim", e nada mais havia a fazer!
Passaram a chamar-lhe "Semilhas" como ao pai, já falecido, e ao irmão, o
"Manel", envelhecido mas ainda capaz de jogadas de génio e exemplos de
correcção e, cada vez mais, exemplo a evitar em quanto, na conduta
social, fazia.
O "Jaquim" começou a ter, a partir de certa altura, um estatuto pessoal
como jogador de bola. O seu pé esquerdo, então, tocava as raias da
tirania tão absolutamente dispunha da bola e dos adversários que se lhe
opusessem.
Era, dizia o do continente, um mau exemplo do que ele pretendia fosse um
conjunto de onze a trocar entre si a bola do brinquedo e a, na altura
azada, a introduzir no espaço aberto do "galinheiro" onde os frangos nem
sempre correspondiam aos ovos do choco.
Mas todos gostavam de ganhar e, sem o "Semilhas"... Houve mesmo uma
reunião donde saiu a bizarria da deliberação de jogar só com dez, embora
aquele desengonçado rapazote vestisse a camisola, se encontrasse ao lado
esquerdo da linha da frente, e não se lhe pedisse outra coisa que não
fosse ser ele próprio, em suas improvisações de deixar sentados no chão,
sem lhes tocar, quantos se lhe opusessem.
Mas lá dentro, atraídos pelo fulgor do "Semilhas", todos os outros o
olhavam como rei e senhor, a ele, que quase era marreca, e tudo faziam
para lhe pôr na frente, afagadinha com jeito e gosto, a menina da sua
paixão.
E era vê-lo, por ali fora, às vezes com certo ar de desprezo por quantos
se lhe atravessavam, a levar com o Brás, o da direita ou mesmo sozinho,
e até à baliza, o balde de água fria com que enregelava o Morrison,
defensor da "capoeira" do Faial Sport e pouco, muito pouco mesmo, dado
aos frangos do choco geral.
Só o Zé Cabo-do-Mar, lá dentro, ousava chamá-lo à pedra em exercício das
suas funções de capitão.
Mas fugia de o fazer tantas e tão saborosas eram as vitórias que o "Semilhas"
servia, com tempero de alegria, àquela boa gente das Angústias.
E quando o fazia, lá vinha do "Semilhas", certeira e irreverente, a
resposta em jeito de atrevimento:
− Porque não fazer o mesmo?
Mas cá fora continuava o "Semilhas" o viver simples de Rei sem sala do
trono, a pedir à hora que a torre desse:
Requentada, minha Senhora. A de ontem era tão boa. Soube-me tão bem!
Com os vinte anos veio a tropa e o "Jaquim Semilhas" lá foi, com outros,
para a Terceira, ele que de primeira era.
E nem houve a coragem de o fazerem isentar do serviço militar, a ele que
tão entortado era, tal o brilho desportivo das suas actuações e a fama
que já ganhara na sua e nas outras ilhas do Arquipélago.
O Atlético começou a perder e o Lusitânia, de Angra, que o conseguiu
aliciar pela mão de um tenente do quartel, iniciou um rosário de
vitórias a que não estava habituado.
E foi lá, reforçado por informações saídas do Faial, que disseram ao
Benfica quem o "Semilhas" era e de quanto podia ser capaz, apesar de
toda aquela indisciplina natural de que era portador.
Ao tempo era director do Clube das águias, alguém que o vira jogar no
campo da Doca. E logo procurou tudo fazer para o levar. Mas a Escola...
Nem o nome sabia fazer, o "Semilhas"!
E logo disso se aproveitaram os do Lusitânia, receosos de o perder e com
ele o rosário, mal iniciado, das suas vitórias.
Que não. Não poderia ser "passado a pronto" sem no Quartel aprender,
pelo menos, a fazer o nome.
E assim foi.
Com a colaboração interessada do Professor, um Sargento que era da terra
e, para mais, "doente" do Lusitânia, lá conseguiram que o "Semilhas" não
aprendesse.
Até nem foi difícil, tão de revés ele via quanto não fosse a menina
saltadora da sua devoção e encantamento.
Foram uns meses!
Mais, pareceria mal e até desprestigiante para as faculdades pedagógicas
do interessado Sargento.
Libertado das correias, lá foi para Lisboa, onde causou, logo no cais de
Santos, a pior das impressões tão desajeitado se mostrou. E tanto que
logo seria recambiado, agora juntamente com os rapazes vindos no porão a
tratar das vacas da importação.
Mas o tal director que o vira várias vezes jogar e pôr a cabeça à roda a
quantos pela frente encontrava, limitou-se a dizer aos colegas da
direcção:
− Vejam-no primeiro, mesmo num treino, e depois e só depois, resolvam.
Nem o clube gastará um centavo, se o não quiser. Eu pagarei as despesas.
Tal era a confiança no "Semilhas"!
Apesar de já um pouco desemburrado pelo quartel, tiveram de o "amarrar
curto", instalando-o em casa de confiança, receosos de o perder nas
tentações que a cidade abriria à ingenuidade difícil de todo aquele
entortado presente tão tristemente empurrado por um passado mais que
propício às derrapagens dum pobre destino. A princípio foi resistindo, o
"Semilhas".
Logo no primeiro treino fez perder a cabeça ao treinador e a quantos, da
direcção, o foram ver.
Fez gato-sapato de alguns consagrados mas mostrou-se absolutamente
incapaz de integrar-se em qualquer esquema táctico ou manobra com vista
a um bom aproveitamento do conjunto.
Mas...
Aquela maneira sempre imprevisível de atirar as pernas para um lado e o
tronco, abaulado pela marreca incipiente, para outro, indo à frente −
às vezes com o desplante de olhar para trás, a ver onde tinham caído os
outros − apanhar a bola acariciando-a para lhe ensinar o cominho a
seguir, causou, pelo menos, espanto.
Ninguém − do treinador aos colegas, dos directores aos aficionados
presentes − o admirava. Mas todos viam nele uma força que, nem por descomandada, seria de desprezar. Era uma força nascida, sobretudo, das
manifestações de improviso e irreverência face a regras por todos
aceites.
E puseram-no na garlopa das "reservas" em tentativa de desbaste do que
ele tinha de indesejável para os conjuntos, mas sem perder de vista os
imprevistos da sua natural condição de "anarquista" da bola.
Cedo começou a ser conhecido pelo "gasogénio", então em moda nos
automóveis à falta de carburante apropriado. A sua marreca, ainda que
ligeira e o ar, só aparentemente pesadão, dos movimentos, justificavam a
alcunha que lhe fora posta mais em acto de carinho que em troça, face ao
seu desajeitado e sempre imprevisível corpo.
Havia gente, cada vez em maior número, que ia ver os jogos das
categorias secundárias, só para ver o "Semilhas" jogar, às vezes
sozinho, tão desinteressado se sentia e o sentiam do conjunto. Mas cedo
o espectáculo dos seus golos, sem pés nem cabeça, mas golos, começou a
impor-se quase como revolução, mas que, ao ser tentada por outros, não
passava de macaqueação estéril.
Um dia o treinador resolveu dar-lhe tratamento especial.
Conversou muito com ele. Exaltou as qualidades de improvisador, e,
talvez por milagre da distante Senhora das Angústias, conseguiu
mostrar-lhe que aquele jogo, jogado por onze, era como se todos fossem
um só, assim a modos do nosso próprio corpo em que a tripa por onde a
merda sai depois de recolhido o que interessa reter, é tão valiosa como
os olhos que vêem, os ouvidos que ouvem ou a boca que canta.
O "Semilhas" ficou a matutar naquilo. Pisou no almofariz da sua
personalidade primitiva as qualidades que julgava ter e de que por vezes
abusava, e, no treino seguinte, a sós com o treinador, deu-lhe contas do
que pensara, prometeu ser uma parte do todo e trabalhar para ele. Mas...
− De vez em quando, se houver ocasião, posso brincar um bocadinho e ir
por ali fora, sem pensar nos outros, até à outra baliza?
Apesar de não acreditar na promessa, o treinador acedeu à libertação do
"Semilhas", lá de vez em quando, quando jeito lhe desse.
E não se arrependeu!
Seduzido por aquela confiança e por forma a justificar o prémio da
libertação concedida ao que nem ele sabia o que fosse, passou a ser
diferente, o "Semilhas", sempre na esperança de voltar a ser igual
quando o vento estivesse com a maré.
Era um moiro de trabalho no vai-e-vem incansável de gasogénio a levar aos
outros a sua menina e a tirá-la, sempre que fosse caso disso.
A todos espantava aquela mudança que começava nos treinos e a todos
surpreendia na verdade nua e crua dos encontros.
E eram sobretudo causa de espanto, as reservas de energia com que o "Semilhas"
contagiava os companheiros, ele que não conseguia dar duas voltas ao
campo ou subir os degraus de madeira das bancadas, sem deitar "os bofes
pela boca".
Dava-se, inteiro, a dar aos companheiros uma humildade de pajem que nem
era a sua.
Mas...
Lá de vez em quando e quando menos se esperava, ia por ali fora, vira
para a direita, vira para a esquerda, levantando ou baixando os olhos,
por vezes sorrindo quando sentava no chão um adversário ou, se
guarda-redes, o fazia estender-se todo e, quase em puro cinismo, lhe
passava a bola pelo outro lado.
E ficava contente, como menino criado sem mimos a quem dessem um
rebuçado.
E pensava, sempre, nas malguinhas de caldo da véspera, requentado e por
isso mais saboroso ainda, que a "Senhora" − como sempre a tratou
− lhe
dava nas horas da fome, já distante, no Faial!
Toda essa entrega fez dele, em dado momento, um ídolo! Sem classe,
embora, simbolizava em todo aquele tosco, quase desengonçado, a mística
que emoldurava as suas actuações.
O que ganhava, mesmo ao tempo, era pouco.
Mas eram tantos os comerciantes da Rua dos Fanqueiros, da do Ouro, da
Augusta ou das Avenidas usando na lapela vaidosa a águia do seu mito,
que o "Jaquim" deixou de ter dificuldades e todos faziam questão em lhe
fornecer os sapatos, os casacos, as calças e o quanto ele necessitava
para se apresentar mascarando o tosco do seu nascer.
Só na gravata ele punha reservas, tão pouco a ela se ajeitava.
Apertava-o!
Nos restaurantes era a mesma coisa.
Do "João do Grão" ao "Bonjardim", do "Morgado dos Leitões" à "Tendinha",
no Rossio, o "Semilhas" era festejado.
E criou amigos, súbditos da sua realeza fugaz, e com eles tentações a
que nem o tal, do continente, conseguia opor qualquer dique de
convencimento.
Um "dinheirito" que começara a depositar num Banco em mira da compra, um
dia, de qualquer pequeno negócio, lá na sua Ilha, ou por aqui mais
perto, nos arredores, foi levantado em arremedo dos conselhos que o tal
lhe deu.
Chegou a ser internacional, o "Semilhas", em jogo na Suíça, onde vivia
exilado um candidato a Rei de Portugal. E até a ele o "Semilhas" foi
acrescentado!
Ao fim e ao cabo eram dois reis que se encontravam.
Um, sem trono porque nunca o teve.
Outro, quase sem ele por não o terem ensinado a mantê-lo, apesar da
genialidade de todos aqueles improvisos reais!
Com o tempo, dir-se-ia ter começado a vir ao de cima, quanto dos pais
herdara e até então o ajudaram a esconder.
O jogo da sua glória nunca lhe fez mal, tanto era de todos. Mas o outro,
o do tostão e copos, esse andava sempre no baralho do "sete e meio"
aconchegado no bolso das calças.
Sempre que o "Porto" vinha até Lisboa, lá estava o "Semilhas" na estação
do Rossio, à espera de outro monstro, ingénuo como ele, para uma seroada
de cartas!
Desceu os degraus quase todos e acabou por perder o muito que teve nos
dedos e lhe procuraram manter até ao momento em que, julgando-se
efectivamente Rei, deixou de o ser ou de contentar-se em parecê-lo.
Levaram-no, em piedade, para terras da "Outra Banda" dando-lhe uma
tarefa ligada ao futebol.
Nem ele poderia fazer, fosse o que fosse, longe da "menina" dos seus
desvarios e glórias.
Mas nem isso conseguiram que ele fizesse!
Afundara-se, o "Semilhas"!
Quando o levaram para o cemitério, apareceram a voar baixinho, muitas
das águias que ele ajudara, em sua ingénua traquinice, a voar no alto.
Houve pena em todo aquele fim!
O tal, do continente, estava lá também e tão perto que ainda conseguiu
ouvir, da voz impossível do "Semilhas", para lá da terra que o cobriu:
− Não tem de ontem, minha Senhora?
Requentada é melhor!
Sabe-me tão bem, quentinha! |