Costa e Melo, Ilhas do Mundo Vário. I - Ilhas do Mar, Horta, CMH, 1999, págs. 21 a 30.

O Pelincas

Ao raio verde que avistei do Morro Grande.

 

Foi nessa Ilha que o Pelincas nasceu. Não se sabe bem onde.

Nos Rosais? Na Urzelina? Na Queimada?

Mesmo nos Biscoitos, nas Manadas, na Ribeira Seca ou no Norte Pequeno havia quem reivindicasse, invocando avós, a naturalidade do Pelincas que nem sabia ler nem escrever, nem fazer outra coisa que não fosse andar de sítio em sítio, quase sempre sozinho, a assobiar baixinho e a cumprir tarefas simples de ocasião dadoras do pouco que precisava para comer.

Ninguém sabia ao certo porque ele, o Pelincas, por ser de todos e de todas as terras e pedras da Ilha, consoante as suas andanças, não era de ninguém e qualquer sítio ou pedra lhe calhava bem para berço. Como o vento, não tinha poiso certo, o Pelincas. Ora aqui, ora acolá, a salgar os pés no calhau da borda do mar ou a amaciá-los no fofo dos relvões, lá em cima, enquanto qualquer amigo de ocasião, fosse gueixa, coelho ou pastor tecia a teia da sua faina diária, crescendo, roendo ou vertendo na lata de mais de almude, a brancura do leite.

Acompanhava todos sem preferência mas gostava, sobretudo, de sentar-se sozinho a conversar, sem palavras, com o baile do vento, das nuvens e do mar, Faial ao fundo a ensaiar chamarritas e Pico ao lado a brincar aos gigantes ou em esconde-esconde com luas e sóis.

Uma vez, dizia-se, ele vira, ao pôr do sol, um raio verde de luz a fazer negaças, num instante, aos outros raios, de oiro, com que o céu se adornava antes de dar-se à noite. Foi ele, o Pelincas, que o contou, na loja do Marquês, numa noite de inverno em que só as cagarras do morro eram som, à espera da manhã.

Ninguém o acreditou.

Era o Pelincas!

Por isso não mais voltou às pedras negras do Morro donde vira − lá isso vira... − o milagre do raio verde de que nunca, até, tinha ouvido falar.

Agora, se lhe apetecia isolar-se na companhia de qualquer coisa para fazer, pedia ao Tibério do talho a chata avermelhada e com o enxalavar que no cais estivesse mais à mão, remava para a Queimada e, já para lá do meio da pequena baia, lançava o pedregulho arredondado da poita em fixação do barco ao fundo pedregoso. E começava, paciente, a assobiar baixinho enquanto os dedos iam enfiando pelos olhos, nos arames em cruz, as moiras com que atrairia, ao saco da pequena rede, o peixe-rei, as castanhetas, os lambazes, as torcidas e, às vezes, uma veja ou bodião descuidado que por ali passasse a caminho das pedras maiores por onde as moreias pintadas e os polvos faziam valer o seu império mas onde apetecia buscar os camarões miúdos e os fios doirados de alguns sargaços gostosos em fim de viagem.

E era certa a caldeirada.

Mais umas remadas, duas dúzias, se tanto, e de novo à beira do cais, mas mais dentro, junto à muralha, onde o calhau rolado permitia como se de esferas fosse, varar a chata do Tibério do talho, em segurança, aval de futuros empréstimos.

Depois, lá arranjava quem lhe frigisse a pescaria que quinhoava para ajudar ao azeite que era caro mas dava melhor saibo que o óleo da última baleia apanhada pela companha do Senhor Rui, a da Valquíria, a melhor de quantas lanchas sulcava o canal, em fogo de velocidade e se atrevia, arrogante, mesmo para lá de Rosais e até da Praia do Almoxarife ou dos Capelinhos.

Outras vezes, sempre ou quase sempre só, lá ia o Pelincas, pela encosta acima, amparado pelo seu assobiar baixinho a marcar o ritmo lento dos passos, em busca dos pastos verdes onde gostava de ver as vacas parir e os coelhos saltar das moiteiras, como praga, sentidos que fossem sinais de aproximação de alguém ou de qualquer coisa.

O olhar parado e fixo das gueixas, só ansioso no desejo do touro que tardasse, fez com que o Pelincas as tivesse baptizado de "pasmadas" , enquanto aos láparos com seu saltitar nervoso e vivo em busca de toca onde esconder o pêlo, dera, acertado, o nome de "espertalhotes".

Ficava às vezes horas a olhar aquele verde parado, só movimento e lento, no mudar das vacas em descoberta de novo comer, mas movimento e vivo na correria louca dos pequenos novelos de cinza roedora uma que outra vez sujeitos às garras dos açores, já raros mas nem por isso menos gulosos dos coelhitos que à falta de murganhos, mais maneirinhos eram para o seu apetite.

E gostava, o Pelincas, de às escondidas ou sob os olhos de pastor amigo, deitar-se debaixo das rezes em maré cheia de brancos, e delas mamar, directamente das tetas túrgidas e com um naco de queijo rijo a estabelecer equilíbrios, o que sem perigo de fome, sentia poder roubar às crias que, se machos, eram abatidas a maço, mal paridas, para que mais leite engordasse em queijo e manteiga, os depósitos da "Cooperativa" coisa bizarra de que só era senhor e cooperante único o latifundiário dos pastos da Beira e dos Toledos, em metamorfose permanente de verdes e de brancos.

Ninguém conhecera ou conhecia namorada ou mesmo conversada ao Pelincas.

Apoucado que parecia, nenhuma rapariga o desejava para dele fazer pai de filhos ou bengala de velhice.

Dizia-se, até, que nem ele as procurava em qualquer das aldeias onde passava a incerteza do seu nascer ou a sempre curta parada do seu viver. Por raro, o caso fez medrar a suspeita de que ele procurava, sozinho, à vista das comunhões animais que em cada ano tornavam mais pequena a extensão dos pastos, dominar o que nele parecia não caber.

No tempo e apesar da incerteza de qualquer registo, esteve em Angra onde fora despejado, com outros, para aprender a marcar passo, volver à direita e à esquerda, sobretudo à direita, engraxar as botas dos senhores oficiais e puxar a um pedacito de metal a que chamavam gatilho e estava instalado no coice de um tubo comprido por onde saiam, para matar, uns pedacitos de outro metal qualquer, capazes de abrir buracos onde acertassem. Falavam até ser sangue o que saia se o alvo fosse vida animal de Mãe, filho, Pai, irmão ou mesmo gato, cão ou até vaca parideira.

Mas mandaram-no embora.

Nem aprendera a escrever o nome.

A esquerda e a direita eram por ele trocadas conforme o lado para onde olhava e, às vezes, davam com ele a avançar, na parada do quartel, quando todos recuavam e outras, a assobiar baixinho quando o toque de continência, à bandeira ou ao Comandante, exigia a imobilidade silenciosa dum respeito vertical a que nunca se afez, o Pelincas.

É que nada havia a fazer tão incapaz ele se mostrava de aprender fosse o que fosse.

A princípio ainda tentaram moldar-lhe a rebeldia natural, mesmo até involuntária, pondo-o, a pão e água, para lá de grossas grades capazes, em seu poder, de resistir com êxito aos safanões sísmicos a que a Ilha era sujeita.

Mas nada.

O Pelincas era o Pelincas.

E ele sabia-o bem. Lá isso sabia. Mas os outros, do Capitão aos Sargentos e aos Cabos, nunca o viram mesmo quando, sentado numa qualquer ameia do castelo donde olhava a sua Ilha, estendida do Topo aos Rosais, assobiava baixinho em afinação perfeita e quase recolhimento contemplativo, em sonho de voltar.

E foi num iate de Santo Amaro do Pico que ele, o Pelincas, atravessou o canal até ao Topo com o Monte Brasil a esfumar-se cada vez mais e depois, bordejou a costa Sul da sua Ilha.

Era a altura em que traços brancos de borbulhantes águas a cortavam, de través, em fatias, vindas que eram da serra para tornar menor o salgado do mar e dar às grotas a frescura doce, propícia aos inhames e às hortênsias do comer e do olhar.

Ele, o Pelincas, nem olhava a beleza nova tão determinado estava em só abrir os olhos de dentro quando, ao pôr os pés no cais das Velas, se sentisse de novo senhor na sua liberdade de apoucado, agora comprovada por papel que o mandaram trazer para entrega ao Senhor Administrador.

Ele, o Pelincas, sabia dizer o papel que ele era "maluco" e para nada servia nas tarefas que se adivinhavam próximas, de salvar terras de outros que eram nossas, agora, e queríamos continuar a como tal considerar, indiferentes aos povos, costumes, religiões e interesses de quem, por lá nascer, as sentia suas, para além dos cais onde encostavam navios que em cada dia tornavam mais fofas as poltronas da Lisboa de alguns.

Porque ninguém tinha, na sua Ilha, ninguém o esperou no Cais das Velas onde o tinham ido buscar, tempos atrás e onde agora o despejavam por devolução ser o destino da mercadoria julgada avariada.

− Então, Pelincas, já voltaste?

Apesar de ouvir bem a pergunta repetida em cada esquina, não queria, para responder, interromper o assobiar baixinho da sua companhia predilecta. Até aprendera umas toadas novas para as bandas da Serreta e de S. Mateus, um dia que lá fora, arrastado por Colegas do Norte Grande e do Topo!

Só à noite, na loja do Marquês, rodeado de gente e interrompendo o assobiar baixinho que lhe servia de bordão, respondeu com aquele sorriso ausente que era bem o seu:

− Eu sou tolo. Bem sei. Mas cá o Pelincas não quer aprender mais do que já sabe. O que o Capitão e os Sargentos queriam era que eu fizesse, no sitio certo, os tais buracos donde saísse o sangue de outros Pelincas que houvesse por esse Mundo de Cristo!

E saiu, devagar, arrimado ao seu assobiar baixinho que quase ninguém ouvia.

Era o Pelincas!

 

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