O azul dos olhos viera numa
gabela de espigas d'oiro da Flandres, trazida pela avó, entontada pelo
trigueiro da pele e pelo negrume fundo dos olhos de um moço para lá
atirado e que soubera não esquecer o sonho de voltar à sua ilha e ao mar
do seu cercar. Ele não queria deixar por lá o corpo jovem, demasiado
jovem para ser possuído entre brumas diferentes das suas e lamas que o
não eram, também.
Com o tempo a gabela d'oiro
foi-se tornando queimada de outros sóis a que não estava afeita. O azul
dos olhos, esse foi-se mantendo, geração após geração, em desafio a
pergaminhos velhos e adaptando-se, sem se desmentir, a novas estações.
Por isso, todos lhe chamavam
Maria Bonita.
E era bonita, a Maria, e
tanto que ao sair à rua, fosse de albarcas, descalça ou de sapatos, o
seu andar desafiava o ondular meigo, adoçado pela Espalamaca e o seu
olhar, esse, perdia-se lá em cima, sem se dar por ele, tão misturado
parecia estar com o outro azul, o que cobria o Pico e ia perder-se nos
longes duma linha enfeitiçada, tanto mais afastada quanto mais a ela nos
chegássemos em ânsia de tocá-la.
Era a Maria Bonita dos olhos
de todos quantos a viam, sabedores da origem daquele enfeitiçado azul e
daquele oiro leve, trazido de longe, há muitos anos e por cá mantido no
"cada ano um" dos do seu sangue. O salgado rijo dos nordestes não
conseguia desfazer, em todos os da ninhada, o feitiço e a leveza de asa
vindos dos nortes nevoentos, de lama e sonhos diferentes.
Havia sempre uma, na
canastra dos filhos que cada casal punha no regaço do mundo, a marcar
uma origem de beleza e distância como se saída da paleta rica de um
qualquer pintor flamengo, da Primavera rápida de uma seara ou até das
alquimias dum mercador de sonhos.
Por isso a Maria era bonita e para todos, tão só, a Maria Bonita. Ficava
sempre bem na moldura verde e azul das hortênsias das grotas e canadas
de toda a sua Ilha.
Até se dizia terem elas
vindo misturadas no sangue de gerações em degrau, a lembrar que aquela
Ilha Verde a que chamavam Flamengos, encastoada no coração da Ilha Azul,
precisava de marca nova a reafirmar origens vindas dos nortes do mundo.
E eram elas, as Marias
Bonitas, essa marca viva e sempre em renovo, a quem o azul das
hortênsias aumentava, em revérberos de magia, os do seu próprio olhar.
E não tinham idade, as
Marias Bonitas!
Os mais velhos sempre as
viram assim em confusão de miragens com o que fora a avó, portadora
primeira do azul dos olhos e do oiro dos cabelos, estes cada dia mais de
cobre sem nunca desmentirem a origem e, sobretudo, a harmonia com o
olhar, próximo ou distante, em permanente busca do que soubera ter sido,
sem perda do desejo fundo de o voltar a ser.
Nem o contraste com os
irmãos da fornada do mesmo forno, era capaz de negar o tronco comum,
tantas eram as identidades para além do azul de alguns olhos e do oiro
dos cabelos, naquela que marcava a Origem.
É que havia sempre uma Maria
Bonita, mesmo que não fosse ela a parideira das demais, a vir depois.
Toda a gente olhava, como
Maria Bonita, a que estava para vir. E era certo e sabido: se uma estava
para chegar ou chegara, outra estaria para partir, ou partira, na viagem
sem regresso possível.
Dizia-se, até, uma só Maria
Bonita chegar para encher o redondo da Ilha e duas serem de mais para
tão minguado escrínio.
Mas o que espantava e até
assustava muita gente, passados os primeiros tempos a despontar, a
levedar e a ser preparada para dar sementes em grão de eternidade, era a
persistência, a quase imutabilidade dos olhos e dos cabelos da que
fosse, então, a Maria Bonita.
Mas aquela gente
habituara-se e, três gerações passadas, já ninguém ousava matutar, em
dúvida, no milagre da permanência do azul daqueles olhos e do acobreado,
a lembrar oiro, daqueles cabelos.
Por vezes as nortadas do
maldizer açoitavam a seara e a Maria, a Maria Bonita, já pronta a dar
sementes, sentia como que força daninha a desmenti-la. E dava por si
debruçada sobre o mar tranquilo do Porto Pim ou raivoso do Canal, a
perguntar se um dia poderia escolher uns olhos diferentes, mais a seu
gosto, que combinados com os seus fizessem acabar aquela cadeia de
azuis, iguais ao céu, e as linhas d'oiro dos cabelos a destoar dos
irmãos da ninhada.
Mas era sempre bonita, a
Maria, a Maria Bonita, aquela que começava a duvidar e já perdera a
alegria calma e doce, prenhe da confiança de quantos a ela dirigiam
chamamento.
- Maria Bonita! Onde vais tu com este vento que te açoita e despenteia e
tapa os olhos azuis do teu nascer?
A principio sorria, a Maria
Bonita. Sorria e tinha sempre, a envolver o sorriso fresco, uma palavra
doce que começou a ser, quase sem se dar por isso, um...
− Sei lá! Sei lá! Sei lá!
E não sabia, a Maria Bonita.
Fosse para cima das pedras
negras do Monte da Guia ou para junto de algumas faias do Pasteleiro,
ela não sabia. As vezes era o vento que a levava sem rumo, em seu
bailar.
− Sei lá! Sei lá. Sei lá!
Um dia os apitos do vapor,
quase em jeito de angústia, anunciaram a descarga, lá em baixo, no Cais
da Doca, de fardas, muitas fardas, camiões, matas e carne, muita carne
que sabia cantar as notas ensinadas dum qualquer hino diferente, em
"Requiem" de Pátria perdida.
E a Ilha começou a ver, na
calma do seu azul, um ondular de vida postiça, sem Espalamaca que
detivesse os sargaços vindos de longe a negar as cores e os sons do seu
natural.
Vieram olhos, muitos olhos,
quase todos castanhos, alinhados aos pares sem molduras de cobres, oiros
ou piches de quaisquer gabelas, ceifadas que tinham sido para evitar
maleitas ou contágios malsins.
Com os olhos vieram lendas,
lendas de encantar. Palavras, palavras novas, também. Mais doces, umas;
outras mais azedas mas que ouvidas em música de sons vivos, doces
pareciam ser, também. E com as palavras o ovo dos sonhos, chocado dia a
dia, hora a hora, no embalar do mar do Monte da Guia, da Feteira ou dos
verdes tenros e convidativos da Caldeira sob o olhar ingénuo, a
desfazer-se em espumas brancas, das vacas gordas duma riqueza que só de
manhã cedo e à tardinha, alguém iria buscar.
A sinfonia ia tomando forma
e os compassos em crescendo, tanto davam abrigo ao gotejar límpido de
sinceridades transferidas, como aos atropelos sem ritmo de verdade, qual
cachoeira animal em ânsia de macho sem ideia de continuidade na tarefa
da vida Tudo parecia o referver dum caldo.
Se para matar a fome, esta o
ignorava; era mesmo estranha à sucessão dos amanhãs por vir.
Apesar disso o sonho alagava
tudo e mascarava de real próximo as vergônteas elaboradas, tantas e
tantas vezes, nos invernos e primaveras anteriores à enxurrada, nas
tarefas calmas do fiar e do desnatar, de fios e de brancos em
metamorfoses de exportação.
As palavras começaram a
mudar e as mãos a moldar barros novos, acomodados ao sonho. Estes, para
não enrijecerem, eram orvalhados por olhos das cores mais diversas sem
que o sal prejudicasse o amoldar do desejado às realidades cegas do fogo
que começava a arder e era mantido, em seu calor, pelos gravetos de faia
e incenso, sempre ao alcance da mão.
Por vezes era o negro das
areias de basalto a dar tom às águas da baía ou das conchas que aqui e
ali alimentavam de quimera o redondo das enseadas por onde as moreias e
os polvos se passeavam em turnos de bem esperar para mal fazer.
Havia mesmo um manto de
condescendência com o Pico fronteiro a emprestar a cobertura diáfana de
um luar retardado ou até escondido, propiciador de romance sem negação
de volumes apetecidos.
E a Maria Bonita começou a
encher os olhos de quantos a viam passar, a ela que os tinha bonitos.
− Onde vais, Maria Bonita?
− Onde vais e para onde
levas o oiro dos teus cabelos?
Agora começava a ser
diferente o entoar da pergunta, tão de sal parecia a intenção do rogo.
A princípio nem o notou, a
Maria Bonita, tão longe punha os olhos azuis, os tais trazidos da
Flandres pela avó embrulhados no oiro de fomes diferentes despertadas
pelo moço trigueiro que a endoidara e com ela viera para a sua Ilha, por
ele também pintada de azul.
A força dos ecos repetidos
começou a travar-lhe os passos e a entrar-lhe melhor pelo búzio dos
ouvidos, quase só afeitos ao marulhar das ondas em noites de oração pagã
junto das rochas do Monte da Guia a que os caniços da vizinhança davam o
encanto de cabelos à espera de dedos em carícia.
− Onde vais, Maria Bonita?
− Quem és tu, agora, tanto
te perdes de nós e te afastas sem sabermos se para o Pasteleiro se para
o Porto Pim?
Ela já nem ouvia. E começou
a tentar ver, pelos olhos trazidos pela avó e por ela herdados, com que
se pareciam aquelas palavras, agora a soar em música diferente.
Mas os olhos não ouvem e nem
sempre conseguem, sobretudo quando do céu são, na cor, perceber o doce
amargo das palavras em mentira de tentação.
− Tenho lá uma casa. Umas
terras com água a merujar todo o ano. Uma junta de bois, fortes como
guindastes e o poço, quase tão grande como a Caldeira e onde cabem
luares de meia dúzia de luas.
A minha Mãe é uma santa, vai
à missa todos os domingos e fez uma promessa à Senhora da Alpendurada
para eu voltar cedo, com vida e não sozinho. Pediu-me, até, que lhe
levasse um neto com a mulher por cá arranjada e que quisesse ir para lá
com dedos leves que a não
magoassem, um dia, ao fechar-lhe os olhos, finda a tarefa e a caminhada
da vida. E se quiseres ir para terras maiores, tenho um tio no Porto e
já tem para mim um lugar. Lá, mais levemente poderemos resistir ao frio.
Se a sorte quiser, até posso vir a fazer sociedade com ele, desiludido
do filho que a mulher lhe deu e se perdeu, por esse mundo de Cristo, a
querer ensinar aos outros o que ele próprio não soubera aprender.
Escuta, Maria Bonita, tu queres? Tu queres, Maria Bonita?
Ela a Maria Bonita ficou
para ali a cismar, nessa e em muitas outras das tardes que se seguiram,
com a branda carícia dos dedos dos incensos misturados com os da
melopeia pouco calosa dos do rapaz que não cansava de repetir, repetir,
repetir o convite:
− Se tu quiseres, Maria
Bonita! Se tu quiseres! E porque não hás-de querer, Maria Bonita?
Tão embalada se sentia, já,
a Maria Bonita, que começava a ver como moldura dos olhos azuis e das
estrigas d'oiro, outras coisas diferentes das espumas brancas e das
pedras negras da sua Ilha em redondo!
E cada dia que passava,
menor era a preocupação. Nem olhava, com os seus olhos azuis, se os
dele, castanhos, quase negros, casavam com aqueles que a avó trouxera um
dia da Flandres e lhe couberam a ela, na partilha pela ninhada.
Dava a impressão, disse-o
ela um dia ao cantar a um filho pequenino uma história para adormecer,
que só os ouvidos viam aquele gotejar suave de pérolas no seco areal do
seu desejo de mulher a sonhar mudança.
E ela, a Maria Bonita, sabia
que o filhito, tenro ainda e sem olhos azuis, não podia perceber o
rosário começado a rezar, ouvido que foi o apitar do navio, em regresso
sem retorno, e com ele, afastando-se, o eco daquelas terras, daquela mãe
quase santa e daquelas águas frescas a merujar todo o ano e que tanto
souberam endoidar a Maria, a Maria Bonita, num cair de noite coberto de
baço luar e cheio de volumes em alegria festiva no ressuscitar do vulcão
fronteiro.
O filhito ouviria, muitas
vezes mais, a história incompreendida e já se habituara a dormir ao som
dela e do tom envolvente que a Maria Bonita fazia escorrer, em mel, por
vezes temperado pelo sal de alguma lágrima furtiva, saudosa, mal caída
dos olhos azuis donde viera.
Todos olhavam a vergôntea
com a simpatia que a Maria Bonita sempre merecera ao fazer ondular com o
seu próprio os azuis daquele céu e os oiros acobreados daquela seara de
sonho que, às vezes, envolvia o monte.
Eram luzes que foram
perdendo brilho e bem cedo deixaram de despertar, conhecido o deslize de
que o filhito era o eco fiel, o pequeno respeito e compreensão por uma
fraqueza de carnes em ritmo de sonho distante.
E a Maria Bonita cedo
começou a sentir, para além do filho a que se dava, inteira, não tardar
a dar-se, em pasto, às cobiças dos olhos e das mãos de quantos, sabendo
aberto o caminho, começariam a esquecer a pureza daquele azul e a doçura
daquele oiro, há muitos anos trazido pela avó, das terras nevoentas do
Norte!
Ouve, Maria Bonita, onde
foste naquela noite, á luz da lua, no compasso daquela melopeia serrana
com lameiros, mãe e água fresca?
Que passos foram os teus,
Maria Bonita, que te deixaste endoidar, com os olhos azuis fechados, sem
querer ver, e as estrigas d'oiro a entrançar as cadeias da fugaz união
que as luas contaram nove vezes até que o teu filho, sem olhos azuis e
sem cabelos d'oiro, os veio lembrar?
Por acaso esqueceste, Maria
Bonita, na grota em que o sonhaste, ter sido a tua avó a trazer o oiro e
o azul na companhia dum outro sonhador que queria, para a sua Ilha, a
bênção de em cada geração os ver repetidos, em eco de encher o anel do
mar, à sombra do gigante?
Maria Bonita!
Maria Bonita, onde estás tu,
agora que te não vejo? |