Costa e Melo, Ilhas do Mundo Vário. I - Ilhas do Mar, Horta, CMH, 1999, págs. 9 a 20.

Maria Bonita

Ao DIAS DE MELO

Este pedaço de mim que são saudades das suas ilhas.

 

O azul dos olhos viera numa gabela de espigas d'oiro da Flandres, trazida pela avó, entontada pelo trigueiro da pele e pelo negrume fundo dos olhos de um moço para lá atirado e que soubera não esquecer o sonho de voltar à sua ilha e ao mar do seu cercar. Ele não queria deixar por lá o corpo jovem, demasiado jovem para ser possuído entre brumas diferentes das suas e lamas que o não eram, também.

Com o tempo a gabela d'oiro foi-se tornando queimada de outros sóis a que não estava afeita. O azul dos olhos, esse foi-se mantendo, geração após geração, em desafio a pergaminhos velhos e adaptando-se, sem se desmentir, a novas estações.

Por isso, todos lhe chamavam Maria Bonita.

E era bonita, a Maria, e tanto que ao sair à rua, fosse de albarcas, descalça ou de sapatos, o seu andar desafiava o ondular meigo, adoçado pela Espalamaca e o seu olhar, esse, perdia-se lá em cima, sem se dar por ele, tão misturado parecia estar com o outro azul, o que cobria o Pico e ia perder-se nos longes duma linha enfeitiçada, tanto mais afastada quanto mais a ela nos chegássemos em ânsia de tocá-la.

Era a Maria Bonita dos olhos de todos quantos a viam, sabedores da origem daquele enfeitiçado azul e daquele oiro leve, trazido de longe, há muitos anos e por cá mantido no "cada ano um" dos do seu sangue. O salgado rijo dos nordestes não conseguia desfazer, em todos os da ninhada, o feitiço e a leveza de asa vindos dos nortes nevoentos, de lama e sonhos diferentes.

Havia sempre uma, na canastra dos filhos que cada casal punha no regaço do mundo, a marcar uma origem de beleza e distância como se saída da paleta rica de um qualquer pintor flamengo, da Primavera rápida de uma seara ou até das alquimias dum mercador de sonhos.
Por isso a Maria era bonita e para todos, tão só, a Maria Bonita. Ficava sempre bem na moldura verde e azul das hortênsias das grotas e canadas de toda a sua Ilha.

Até se dizia terem elas vindo misturadas no sangue de gerações em degrau, a lembrar que aquela Ilha Verde a que chamavam Flamengos, encastoada no coração da Ilha Azul, precisava de marca nova a reafirmar origens vindas dos nortes do mundo.

E eram elas, as Marias Bonitas, essa marca viva e sempre em renovo, a quem o azul das hortênsias aumentava, em revérberos de magia, os do seu próprio olhar.

E não tinham idade, as Marias Bonitas!

Os mais velhos sempre as viram assim em confusão de miragens com o que fora a avó, portadora primeira do azul dos olhos e do oiro dos cabelos, estes cada dia mais de cobre sem nunca desmentirem a origem e, sobretudo, a harmonia com o olhar, próximo ou distante, em permanente busca do que soubera ter sido, sem perda do desejo fundo de o voltar a ser.

Nem o contraste com os irmãos da fornada do mesmo forno, era capaz de negar o tronco comum, tantas eram as identidades para além do azul de alguns olhos e do oiro dos cabelos, naquela que marcava a Origem.

É que havia sempre uma Maria Bonita, mesmo que não fosse ela a parideira das demais, a vir depois.

Toda a gente olhava, como Maria Bonita, a que estava para vir. E era certo e sabido: se uma estava para chegar ou chegara, outra estaria para partir, ou partira, na viagem sem regresso possível.

Dizia-se, até, uma só Maria Bonita chegar para encher o redondo da Ilha e duas serem de mais para tão minguado escrínio.

Mas o que espantava e até assustava muita gente, passados os primeiros tempos a despontar, a levedar e a ser preparada para dar sementes em grão de eternidade, era a persistência, a quase imutabilidade dos olhos e dos cabelos da que fosse, então, a Maria Bonita.

Mas aquela gente habituara-se e, três gerações passadas, já ninguém ousava matutar, em dúvida, no milagre da permanência do azul daqueles olhos e do acobreado, a lembrar oiro, daqueles cabelos.

Por vezes as nortadas do maldizer açoitavam a seara e a Maria, a Maria Bonita, já pronta a dar sementes, sentia como que força daninha a desmenti-la. E dava por si debruçada sobre o mar tranquilo do Porto Pim ou raivoso do Canal, a perguntar se um dia poderia escolher uns olhos diferentes, mais a seu gosto, que combinados com os seus fizessem acabar aquela cadeia de azuis, iguais ao céu, e as linhas d'oiro dos cabelos a destoar dos irmãos da ninhada.

Mas era sempre bonita, a Maria, a Maria Bonita, aquela que começava a duvidar e já perdera a alegria calma e doce, prenhe da confiança de quantos a ela dirigiam chamamento.
- Maria Bonita! Onde vais tu com este vento que te açoita e despenteia e tapa os olhos azuis do teu nascer?

A principio sorria, a Maria Bonita. Sorria e tinha sempre, a envolver o sorriso fresco, uma palavra doce que começou a ser, quase sem se dar por isso, um...

− Sei lá! Sei lá! Sei lá!

E não sabia, a Maria Bonita.

Fosse para cima das pedras negras do Monte da Guia ou para junto de algumas faias do Pasteleiro, ela não sabia. As vezes era o vento que a levava sem rumo, em seu bailar.

− Sei lá! Sei lá. Sei lá!

Um dia os apitos do vapor, quase em jeito de angústia, anunciaram a descarga, lá em baixo, no Cais da Doca, de fardas, muitas fardas, camiões, matas e carne, muita carne que sabia cantar as notas ensinadas dum qualquer hino diferente, em "Requiem" de Pátria perdida.

E a Ilha começou a ver, na calma do seu azul, um ondular de vida postiça, sem Espalamaca que detivesse os sargaços vindos de longe a negar as cores e os sons do seu natural.

Vieram olhos, muitos olhos, quase todos castanhos, alinhados aos pares sem molduras de cobres, oiros ou piches de quaisquer gabelas, ceifadas que tinham sido para evitar maleitas ou contágios malsins.

Com os olhos vieram lendas, lendas de encantar. Palavras, palavras novas, também. Mais doces, umas; outras mais azedas mas que ouvidas em música de sons vivos, doces pareciam ser, também. E com as palavras o ovo dos sonhos, chocado dia a dia, hora a hora, no embalar do mar do Monte da Guia, da Feteira ou dos verdes tenros e convidativos da Caldeira sob o olhar ingénuo, a desfazer-se em espumas brancas, das vacas gordas duma riqueza que só de manhã cedo e à tardinha, alguém iria buscar.

A sinfonia ia tomando forma e os compassos em crescendo, tanto davam abrigo ao gotejar límpido de sinceridades transferidas, como aos atropelos sem ritmo de verdade, qual cachoeira animal em ânsia de macho sem ideia de continuidade na tarefa da vida Tudo parecia o referver dum caldo.

Se para matar a fome, esta o ignorava; era mesmo estranha à sucessão dos amanhãs por vir.

Apesar disso o sonho alagava tudo e mascarava de real próximo as vergônteas elaboradas, tantas e tantas vezes, nos invernos e primaveras anteriores à enxurrada, nas tarefas calmas do fiar e do desnatar, de fios e de brancos em metamorfoses de exportação.

As palavras começaram a mudar e as mãos a moldar barros novos, acomodados ao sonho. Estes, para não enrijecerem, eram orvalhados por olhos das cores mais diversas sem que o sal prejudicasse o amoldar do desejado às realidades cegas do fogo que começava a arder e era mantido, em seu calor, pelos gravetos de faia e incenso, sempre ao alcance da mão.

Por vezes era o negro das areias de basalto a dar tom às águas da baía ou das conchas que aqui e ali alimentavam de quimera o redondo das enseadas por onde as moreias e os polvos se passeavam em turnos de bem esperar para mal fazer.

Havia mesmo um manto de condescendência com o Pico fronteiro a emprestar a cobertura diáfana de um luar retardado ou até escondido, propiciador de romance sem negação de volumes apetecidos.

E a Maria Bonita começou a encher os olhos de quantos a viam passar, a ela que os tinha bonitos.

− Onde vais, Maria Bonita?

− Onde vais e para onde levas o oiro dos teus cabelos?

Agora começava a ser diferente o entoar da pergunta, tão de sal parecia a intenção do rogo.

A princípio nem o notou, a Maria Bonita, tão longe punha os olhos azuis, os tais trazidos da Flandres pela avó embrulhados no oiro de fomes diferentes despertadas pelo moço trigueiro que a endoidara e com ela viera para a sua Ilha, por ele também pintada de azul.

A força dos ecos repetidos começou a travar-lhe os passos e a entrar-lhe melhor pelo búzio dos ouvidos, quase só afeitos ao marulhar das ondas em noites de oração pagã junto das rochas do Monte da Guia a que os caniços da vizinhança davam o encanto de cabelos à espera de dedos em carícia.

− Onde vais, Maria Bonita?

− Quem és tu, agora, tanto te perdes de nós e te afastas sem sabermos se para o Pasteleiro se para o Porto Pim?

Ela já nem ouvia. E começou a tentar ver, pelos olhos trazidos pela avó e por ela herdados, com que se pareciam aquelas palavras, agora a soar em música diferente.

Mas os olhos não ouvem e nem sempre conseguem, sobretudo quando do céu são, na cor, perceber o doce amargo das palavras em mentira de tentação.

− Tenho lá uma casa. Umas terras com água a merujar todo o ano. Uma junta de bois, fortes como guindastes e o poço, quase tão grande como a Caldeira e onde cabem luares de meia dúzia de luas.

A minha Mãe é uma santa, vai à missa todos os domingos e fez uma promessa à Senhora da Alpendurada para eu voltar cedo, com vida e não sozinho. Pediu-me, até, que lhe levasse um neto com a mulher por cá arranjada e que quisesse ir para lá com dedos leves que a não
magoassem, um dia, ao fechar-lhe os olhos, finda a tarefa e a caminhada da vida. E se quiseres ir para terras maiores, tenho um tio no Porto e já tem para mim um lugar. Lá, mais levemente poderemos resistir ao frio. Se a sorte quiser, até posso vir a fazer sociedade com ele, desiludido do filho que a mulher lhe deu e se perdeu, por esse mundo de Cristo, a querer ensinar aos outros o que ele próprio não soubera aprender. Escuta, Maria Bonita, tu queres? Tu queres, Maria Bonita?

Ela a Maria Bonita ficou para ali a cismar, nessa e em muitas outras das tardes que se seguiram, com a branda carícia dos dedos dos incensos misturados com os da melopeia pouco calosa dos do rapaz que não cansava de repetir, repetir, repetir o convite:

− Se tu quiseres, Maria Bonita! Se tu quiseres! E porque não hás-de querer, Maria Bonita?

Tão embalada se sentia, já, a Maria Bonita, que começava a ver como moldura dos olhos azuis e das estrigas d'oiro, outras coisas diferentes das espumas brancas e das pedras negras da sua Ilha em redondo!

E cada dia que passava, menor era a preocupação. Nem olhava, com os seus olhos azuis, se os dele, castanhos, quase negros, casavam com aqueles que a avó trouxera um dia da Flandres e lhe couberam a ela, na partilha pela ninhada.

Dava a impressão, disse-o ela um dia ao cantar a um filho pequenino uma história para adormecer, que só os ouvidos viam aquele gotejar suave de pérolas no seco areal do seu desejo de mulher a sonhar mudança.

E ela, a Maria Bonita, sabia que o filhito, tenro ainda e sem olhos azuis, não podia perceber o rosário começado a rezar, ouvido que foi o apitar do navio, em regresso sem retorno, e com ele, afastando-se, o eco daquelas terras, daquela mãe quase santa e daquelas águas frescas a merujar todo o ano e que tanto souberam endoidar a Maria, a Maria Bonita, num cair de noite coberto de baço luar e cheio de volumes em alegria festiva no ressuscitar do vulcão fronteiro.

O filhito ouviria, muitas vezes mais, a história incompreendida e já se habituara a dormir ao som dela e do tom envolvente que a Maria Bonita fazia escorrer, em mel, por vezes temperado pelo sal de alguma lágrima furtiva, saudosa, mal caída dos olhos azuis donde viera.

Todos olhavam a vergôntea com a simpatia que a Maria Bonita sempre merecera ao fazer ondular com o seu próprio os azuis daquele céu e os oiros acobreados daquela seara de sonho que, às vezes, envolvia o monte.

Eram luzes que foram perdendo brilho e bem cedo deixaram de despertar, conhecido o deslize de que o filhito era o eco fiel, o pequeno respeito e compreensão por uma fraqueza de carnes em ritmo de sonho distante.

E a Maria Bonita cedo começou a sentir, para além do filho a que se dava, inteira, não tardar a dar-se, em pasto, às cobiças dos olhos e das mãos de quantos, sabendo aberto o caminho, começariam a esquecer a pureza daquele azul e a doçura daquele oiro, há muitos anos trazido pela avó, das terras nevoentas do Norte!

Ouve, Maria Bonita, onde foste naquela noite, á luz da lua, no compasso daquela melopeia serrana com lameiros, mãe e água fresca?

Que passos foram os teus, Maria Bonita, que te deixaste endoidar, com os olhos azuis fechados, sem querer ver, e as estrigas d'oiro a entrançar as cadeias da fugaz união que as luas contaram nove vezes até que o teu filho, sem olhos azuis e sem cabelos d'oiro, os veio lembrar?

Por acaso esqueceste, Maria Bonita, na grota em que o sonhaste, ter sido a tua avó a trazer o oiro e o azul na companhia dum outro sonhador que queria, para a sua Ilha, a bênção de em cada geração os ver repetidos, em eco de encher o anel do mar, à sombra do gigante?

Maria Bonita!

Maria Bonita, onde estás tu, agora que te não vejo?

 

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