O "Rolls-Royce" branco,
pergaminhado de suavidades mate, estacionado à entrada do grande e
imponente portão de ferro, pintado de fresco no verde escuro que
casava bem com todas aquelas paredes brancas marchetadas pelos
traços negros, rectos ou circulares das molduras das portas,
janelas, óculos e cimalhas dava àquela mole imensa do palácio, sem
lhe tirar austeridade, uma imponente harmonia bem de acordo com a
grandeza e as tradições daquela ilha, com inicio em duvidosas
purezas mas que, com o tempo e à custa de verdes e azuis, espumas e
negros caldeados com suores e devoções, conseguira atingir valores
que começaram a ser respeitados não só pelas restantes oito ilhas do
rosário, mas até para lá do mar que em amor as cercando, assinalava
as diferenças.
Aquela grandeza do
palácio só não destoava, na sobriedade ambiente, porque a parte viva
de tudo aquilo se movimentava, em suavidade, sem que se notassem
degraus mais acentuados que os do natural respeito dos que serviam
para os que eram servidos.
A ligeira curvatura, nas
vénias do cumprimento, já vinham do peso de gerações inteiras, agora
menos acentuadas desde que àquela fortuna imensa dos Marqueses da
Baia, se foi juntando o efeito das largas permanências em Paris e
Lisboa, em estudos e práticas que tendiam mais a igualar que a
depreciar, através de diferenças.
/ 120 /
O Pedro era um dos de
cima mas que cedo se habituou a olhar os de "baixo como irmãos do
mesmo berço, embora sem nunca se perder nas vaidades ocas de se
igualar por baixo para que os outros o pudessem melhor ver de cima.
Mas todos gostavam dele desde que, garoto ainda, quis ir para a
Escola de todos, em vez de aceitar as lições particulares a que o
queriam sujeitar, num qualquer recanto almofadado do Palácio.
O Frederico era
diferente, oposto mesmo, embora desde pequeno se desse bem com o
irmão, nas brincadeiras que decorriam nos relvados floridos dos
jardins envolventes do Palácio, cercados de muros altos que de todo
os afastavam de contactos indesejados com garotada ranhosa e
maltrapilha das cercanias humildes.
Fora a Tia, a velha
senhora educada entre sedas, pergaminhos e folhos, que ocasionara a
diferença, em tudo favorecendo o Frederico que lhe respeitava os
caprichos senhoriais, ao passo que tratava rispidamente o Pedro,
sempre que ele pretendia saber como era a vida para lá dos muros e
convidava, sem nunca ser autorizado a trazer com ele, a princípio os
filhos dos "ganhões" e depois a outra "maralha" dos companheiros da
Escola que conseguira ir frequentar por para tanto ter Imposto a sua
infantil mas férrea vontade.
A diferença foi-se
acentuando e, feito por ambos o Liceu, quase em simultâneo, o Pedro
em Ciências e o Frederico em Letras, aquele como interno e este como
externo, houve reunião de família para escolha dos destinos, já que,
apesar de ricos, opulentos, mesmo, por mercê da Tia, fora entendido
que ambos deveriam trabalhar ou, pelo menos, estar preparados para o
fazerem.
E o destino bifurcou-se
atirando o Frederico para os Direitos, mais propícios a lugares de
vénias, mesuras, casacas e condecorações, no cenário das Embaixadas
e o Pedro, por seu desejo expresso, para Agronomia e um qualquer
curso acessório de ciências sociais e
/ 121 /
económicas, com os quais poderia regressar à ilha dos seus amores e
berço, podendo mesmo consagrar-se aos trabalhos relacionados com um
moderno e mais perfeito aproveitamento das extensas pastagens da
família, herdadas da avoenga, e até das estufas que, nos arredores
da cidade, eram de qualidade e em número suficiente para satisfazer
o apetite de ananases, dos conceituados mercados de Lisboa, Porto e
mesmo de mais longes terras como Paris e Londres.
A Tia ainda tentou
convencer o Pedro de que aqueles seus sonhos "rurais" eram menos
dignos do sangue, mais ou menos azul, que lhes corria nas veias, mas
nada conseguiu tal a determinação dele em não perder de vista a
sensibilidade amiga dos seus companheiros da Escola Primária e até -
tentar um qualquer sistema de aproveitamento das terras e das
estufas por forma a permitir uma vida melhor a todos aqueles que,
até ali, mais não puderam ser que forma actualizada da escravatura
dos "servos da gleba" ainda que vestida de hipocrisia diferente da
dos chicotes de antanho.
Em ambos, inteligentes
que eram, os cursos correram de forma agradável e, passados cinco
anos, o regresso aos Açores já trazia as diferenças em tudo iguais
àquelas que haviam levado.
O Frederico, olhando
sempre para cima em busca do brilho de lantejoulas ou, se possível,
de diamantes, safiras, opalas e oiros, não dispensava o laçarote
distinto, o casaco de trespasse, as calças riscadas, os sapatos de
verniz negro e, às vezes, nas unhas com que terminavam as suas mãos
esguias, o brilho discreto de um verniz claro mas suficientemente
capaz de mostrar que o seu mundo era aquele, mas só como patamar de
saltos maiores para o outro, aquele com que sempre sonhou.
O Pedro reforçava com as
teorias aprendidas na encosta da Ajuda, em Lisboa e num estágio
prático, curto mas proveitoso, na
/ 122 /
Suíça, tudo aquilo que como semente já para lá levara no mais íntimo
da sua determinação em aproveitar o que tinha para, sem prejuízo
próprio, o tornar mais produtivo de forma a poder partilhar as mais
valias com quantos o ajudassem a conquistá-las, sem contudo esquecer
que o pão de cada trabalhador não pode estar dependente,
exclusivamente, das manobras de altas e baixas de bolsas ou
deficiências no desenvolvimento das actividades de produção,
repartição e consumo.
Ele entendia que a valia
dos bens imensos que herdara da Tia, entretanto falecida e enterrada
segundo o mais rigoroso respeito às tradições locais e aos ritos da
Santa Madre Igreja, que era a sua, seriam suficientes para garantir
aos que trabalhassem na organização agrícola em vista e de que
seriam associados de pleno direito e não de esmola, pelo menos o pão
de cada dia, quaisquer que fossem os lucros ou os prejuízos. Era um
louco e lunático, diziam alguns outros "senhores da Ilha" ao tomarem
conhecimento do projecto, em pleno esquecimento de avoengas
criminosas que fizeram mandar para ali, como refugo, muitos daqueles
que procuravam esquecer e fazer esquecer, não hesitando na ocultação
de documentos probatórios de tais vergonhas.
Alguns, mais ousados,
chegaram mesmo a considerar o sonho associativo do Pedro como acto
indigno de falta de solidariedade e que, mais tarde ou mais cedo,
iria ocasionar reivindicações, quem sabe se causadoras da diminuição
do número de viagens a Lisboa, à
Suíça, a Londres, mesmo e até à cidade dos arranha-céus ou às
tentações de Miami, de Las Vegas ou à Havana do ditador Fulgência
Baptista.
A tudo isso o Pedro
sorria e quase fazia luxo em se sentar com "servidores" seus, à mesa
do "Cristal", um café do Largo da Alfândega,
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para uma bica, um "Wiskey" ou só uma água das Lombadas com casca de
limão a dar o tom.
A princípio, mesmo,
aqueles trabalhadores a quem o Pedro chamou para com ele se
associarem e a quem foram explicadas lealmente as bases da
colaboração, chegaram a desconfiar, tão de trás vinha a servidão aos
"senhores".
Mas, face à clareza e
franqueza da exposição do Pedro, sentiam nele o mesmo que no Café
com eles se sentava, para a bica ou não importa para o que, na
altura, lhes apetecesse.
E ainda mais
impressionados ficaram quando foram avisados de que tudo seria
reduzido a instrumento notarial de fé pública, no qual sobressaiam,
sobretudo, os direitos que passavam a ter e que em muito
ultrapassavam as obrigações que assumiam.
Todos eles já conheciam
de cor as extensas pastagens, o número e o nome das vacas que, em
cada dia, se desfaziam em leite que era fornecido a uma Cooperativa
Leiteira merecedora de total confiança àquele sócio especial que o
Pedro era, e em tudo contrariava as usanças dos outros "senhores"
mais parecidos com descendentes dos corsários que por ali passaram
em tempos de outrora.
Quanto às estufas, por
ser trabalho mais especializado, o Pedro tomou outros cuidados, mas
sem nunca subalternizar, em demasia, os das vacas, dos queijos, dos
leites e das carnes.
Logo no primeiro ano os
trabalhadores compararam o que tinha sido e passara a ser a sua vida
e havia já quem dissesse que tudo aquilo iria "dar um estoiro" um
desses estoiros em que são pródigas as mutações no ramerrão da vida,
aparentemente comum, dos senhores da terra e dos seus servos.
Mas, nos mais atentos,
ainda que inicialmente desconfiados, começava a notar-se uma
diminuição na curvatura da espinha e um olhar mais frontal entre
todos, com o fluir das palavras necessárias à
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colaboração, no mesmo tom de voz e atenção ao que cada um sugeria
com intenção de tornar melhor o comum para a todos e por igual,
beneficiar.
O Pedro, a partir da
altura em que começou a ver nascer, nos seu colaboradores, a
convicção a que chegaram de que todo aquele trabalho era de mãos
dadas e calos comuns, sentiu, ainda mais forte, a determinação de
levar até um fim de interesse de todos, a sua acção pioneira,
sobretudo naquela Ilha grande de tantos e a tão poucos pertencente.
É que nunca deixou de sentir como agradável peso, na sacola dos
conhecimentos adquiridos, aquelas noções cooperativistas que começou
por ver como tampão para mais largas e até violentas reivindicações
daqueles que viviam a terra, a adubavam com o seu suor e dela pouco
mais retiravam, quando retiravam, que os sobejos e, mesmo esses,
regateados em máscara de esmola. Nas não tardou que ele, o Pedro,
começasse a sentir que essa ideia era demasiado egoísta para
constituir alicerce ou pedra de amarração a um qualquer futuro
colectivo.
Começou a ver que a sua
acção e as potencialidades de que dispunha poderiam contribuir para
a constituição de uma sociedade nova em que o homem fosse mais que
um algarismo com braços, divorciado de qualquer espécie de alma ou
ambição para lá do pão do estômago e dos trapos para defesa do frio
e da chuva.
Notava-se mesmo nele, no
Pedro, que em muito pouco era o irmão do Frederico, um aumentar
constante na determinação de, desde baixo, elevar ao mais alto o
nível de vida e os conhecimentos daquela gente a que se sentia
visceralmente ligado pelos liames nascidos na "Primária" e agora
facilitados pela posse de terras e outros bens de que era mas não se
sentia dono em exclusão dos outros que
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com ele trabalhavam para os tornar mais rentáveis em proveito de
todos.
Às vezes dava consigo a
magicar, após leituras ou observações práticas nas flutuações do
mercado, pequeno, na Ilha, e grande, no continente e no mundo, no
problema, que antevia grave, de chegar ao ponto em que os seus
colaboradores, humildes de ontem mas remediados de hoje, quem sabe
se ricos, amanhã, começassem a olhar os outros como inferiores,
mesmo "exploráveis" como eles e os seus avós haviam sido.
E preocupava-o
sobretudo, ao Pedro, o sabê-los quase desconhecedores daquelas
teorias que ensinavam ser a Igualdade um direito natural do homem e
a Fraternidade um dever moral que lhe anda associado.
Isso preocupava-o e
tanto que não hesitou em abordar o problema com a sua sinceridade
habitual, numa daquelas reuniões de todos em que se discutia a
oportunidade para as sementeiras, as colheitas, as recolhas, as
adubações, enfim o conjunto das tarefas que faziam parte da vida
agrícola.
E ficou surpreendido,
ainda que não alarmado, quando o Jerónimo, companheiro de carteira
da Escola, então pouco menos que pedinte nas ruas da cidade e agora
consciente e atento colaborador nas fainas administrativas, disse,
como se a todos representasse:
− Mas, Senhor
Engenheiro, tudo isso é muito bonito mas as terras continuam a não
ser nossas, apesar de sermos nós a trabalhá-las!
A explicação surgiu, com
naturalidade, da boca do Pedro que chamou sobretudo a atenção para o
facto do poderem ter a certeza
/ 126 /
de que o produto do seu esforço era distribuído com equidade e,
tanto quanto possível, em correspondência às necessidades de cada um
ou do seu agregado familiar.
Essa igualdade na
diferença, chocava o Jerónimo, já que entendia deverem todos os
"cooperantes" receber por igual − ele até era... solteiro!
− por
maiores que fossem os seus encargos e necessidades.
E foi então que o Pedro
se atreveu a ir mais longe, na sua acção pedagógica de formação, ao
afirmar, sempre em palavras simples:
− Numa sociedade sã e
solidária, o trabalho deve ser de todos e exigir-se, de cada um,
tudo quanto ele pode produzir, mas dando a todos quanto eles
carecem.
E quando um outro, o
Manuel do Moinho, em sua ignorância de boa fé, pôs o problema do
coxo ou do maneta, do alto e do baixo, do fraco e do forte
"renderem" menos ou mais, chegando a comparar o que dá 100 cavadelas
ao que só consegue dar 70 ou 80, o Pedro só os conseguiu convencer
da justeza da sua ideia através de um provérbio ou sentença popular,
de todos conhecido e que ensinava que "quem dá o que tem a mais não
é obrigado".
Embora não de todo
satisfeitos com a comparação, ainda puseram a dúvida de, sendo
assim, correrem o perigo dos fortes, por malandros, não darem o
justo rendimento das suas possibilidades.
E foi então que o Pedro,
fazendo alarde do que o próprio sonho lhe ditava, fez considerações
acerca da honestidade de cada um, chegando mesmo a afirmar que na
colectividade de todos não poderiam ter lugar os de tal laia, até
porque não se sentiriam bem os "malandros" no seio dos
trabalhadores.
/ 126 /
E deu-se o que o Pedro esperava, pois todos sentiram em si não eram
muitos... − que produzindo o que podiam produzir, embora pouco;
produziam tanto quanto os outros que, por mais poderem, produziam
mais.
A reunião acabou em
fraternidade e tanta que, passados dias, na distribuição dos lucros
do período anterior, ninguém se sentiu "roubado" ao ver o Ezequiel,
casado e pai de cinco filhos pequenos, receber mais que o Joaquim,
solteiro, embora a produção deste fosse nitidamente superior à
daquele.
E não tardou que, na
pequena comunidade, começasse a sentir-se um clima de organização
activa e compreensiva que dava a cada um dos dez trabalhadores e,
por reflexo, um como que estatuto de evidência que ia do Café, onde
se juntavam ao domingo, até aos lugares destinados na longa mesa do
bodo, na altura das festas do "Senhor Espírito Santo" onde nunca
faltavam montões de boa massa sovada e os panelões da característica
sopa em que o inteiro de uma vaca ou vitelo era cozinhado com
temperos esquisitos e saborosos a que se juntavam nacos de bom pão
de trigo da terra.
Dizia-se, até, que era
tanto o sabor e a gordura que nem havia necessidade de guardanapo
para evitar as nódoas no "terno", filhas da voracidade com que se
secavam os pratos sopeiros. que a sopa ou o que dela escorria para
fora da boca, solidificava antes de chegar ao queixo.
E o caso começou a ser
notado pelas gentes da Ilha com a inveja a crescer, face aos
resultados, sobretudo entre os restantes trabalhadores das pastagens
e vacarias e ainda entre os restantes senhores delas que viam, como
atentado ao seu poderio, toda aquela fraternidade produtiva entre o
"senhor" e o "servo" esse poder que durante tantos e tantos anos
reinou na Ilha, na santa paz do "Senhor Santo Cristo".
/ 128 /
Chegaram, os senhores, a
combinar acções paralelas para fazer desaparecer o foco das
comparações que em tudo se assemelhavam às do Bem e do Mal, às de
Deus e do Diabo, às do fausto e às da miséria.
Houve, mesmo, uma
tentativa, por parte de alguns "senhores" para convencer o
Engenheiro Pedro de que a sua iniciativa estava a causar a ruína da
Ilha e começava a despertar, nos restantes "servos", ideias de
melhoria salarial e de tratamento, incompatíveis com as "sagradas"
tradições da terra.
Mas logo que o Pedro
impôs como condição, para o encontro, fazer-se acompanhar pelo
Silveira e pelo Felismino, antigos e rudes homens de enxada e foice,
hoje colaboradores estreitos no manejamento económico das pastagens
e das estufas, logo o Barão da Cabeça e o Visconde da Ribeira Seca
viram nisso um perigo e, mais que isso, uma ofensa a avoengas e
pergaminhos.
Mas lá acabaram por
concordar e um dia, no solar de um deles - transigência a que o
Pedro anuiu pois, inicialmente, queria que a reunião tivesse lugar
num dos alpendres adjacentes às estufas e que servia de local de
embalagem dos ananases destinados à exportação, e bem ao lado do
escritório onde teriam, à mão, os dados económico-estatísticos para
eventuais demonstrações de eficácia e falhanços dos modos de
actuação... − ela se realizou.
Mas a reunião não durou
muito.
O Pedro, senhor de
linhagem tanto ou mais azul que a dos outros "senhores" logo os
calou ao mostrar-lhes que a produção e os lucros aumentaram por
forma a permitir, aos trabalhadores, uma melhor retribuição dos seus
esforços e até lançar as bases de uma cantina onde eles e os seus
iriam abastecer-se, pelo preço do custo, dos artigos e géneros para
consumo do seu agregado familiar.
Postos perante a
realidade, reforçada pelas confirmações do
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Silveira e do Felismino, os "senhores" sentiram o terreno a
fugir-lhes debaixo dos pés pois não ignoravam que, no dia seguinte
ou num dos próximos, todos os trabalhadores da zona saberiam do
sucesso e, naturalmente, sentiriam a verdade de que a sua situação
moral e económica de miséria poderia ser alterada para melhor, se
soubessem impor o valor da força do seu suor aos tradicionais donos
da sua condição de servidores. E isto porque, por demasiado sabiam,
que quer o Barão, quer o Visconde, quer outros da mesma laia e
poderio, mesmo alguns "calafonas" de torna viagem a quem os úberes
ricos do Vale de S. Joaquim ou do Texas tivessem engordado, em
repentes de sorte, as contas bancárias, veriam em qualquer melhoria
a conceder aos deserdados, uma diminuição das suas possibilidades de
ostentação e luxos que nem sempre se ficavam pela Lisboa, do
Continente, como diziam, pois se exibiam por Franças e Araganças e
até nos panos verdes e roletas de Monte Cado.
E foi num desses a quem a sorte desmedida, ligada a explorações
petrolíferas surgidas debaixo das bosteiras de vacas da exploração
leiteira, dera fortuna e ambições, cada vez maiores, que começou a
germinar a ideia de, sem tardança, esconjurar o perigo nascente que
o surpreendeu ao chegar, fabulosamente rico, à Ilha donde saíra
pobre e a que de novo se acolhia porque nela, por mais fácil
comparação com outros mais modestos, mais sobressaia o que a sorte
lhe despejara na arca da sua surpreendida inicial modéstia.
Fora Guilherme para as
Américas, na mesma onda de muitos outros, e de lá voltara "William"
já que lhe haviam dito alguns especialistas consultados, que a
metamorfose do nome lhe daria categoria de "senhor de fora" mais e
melhor o diferençava dos Guilhermes que se ficaram pelas canadas e
becos do seu destino ilhéu.
/ 130 /
Trouxera consigo os
hábitos de violência dos pistoleiros do Oeste americano e aquelas
regras morais que, para além do manejo, rápido e eficaz dos meios,
por inteiro justificavam as tropelias, quaisquer que elas fossem,
para atingir os fins. Ao tomar conhecimento do que se estava
passando com os latifúndios da Velha Senhora de que o Pedro fora
herdeiro activo e o Frederico se limitava a receber certos
"confortos" que o irmão escrupulosamente lhe mandava para Lisboa ou
para não importa que Embaixada, Missão ou Conferência, logo o recém-chegado
"calafona" pretendeu constituir com o Barão, o Visconde e outros
pequenos satélites, uma força com o único objectivo de restaurar
velhos privilégios, mesmo que, para isso, fosse necessário
atropelar, destruir, até, as ideias novas e cooperantes que o Jorge
tinha sabido fazer despertar à sua volta com a total e consciente
entrega dos seus colaboradores.
Quer o Barão, quer o
Visconde não aceitaram, à primeira, a ideia do ataque e possível
esmagamento, lembrados da Velha Senhora, tanto ou mais que eles
símbolo de uma linhagem de origens obscuras e perdidas nas páginas
de sentenças de antanho mas que em grande parte se soubera
reabilitar na obra, interesseira mas útil, do desbravar das terras e
aproveitamento das suas riquezas.
Mas quando o "William"
lhes fez ver o poderio económico de que dispunha e pôs à disposição
para uso e compensação da "reconquista", começaram por pôr degraus
entre o patamar alto do seu sangue e o baixo daquele labroste que
não conseguia dizer sim, sem o vestir de "Yes" e, mesmo assim, com
um arrastado pretensioso, a que sempre misturava o açorianizado de "dollas"
a marcar poderios.
Mas... com todas as
cautelas, sobretudo por parte do Barão e do Visconde, lá foram
congeminando as maneiras de melhor e mais rapidamente esmagar o
"novo", pela força do "velho".
Desde a manobra, velha e
relha, da baixa artificial dos preços
/ 131 /
da venda, até às ameaças mandadas fazer por alguns servos mais
acomodados às tradicionais maneiras dos "senhores da terra", tudo
servia para a tentativa que chegou ao ponto de provocar a
intervenção de autoridades afeitas à vénia perante o poderio
económico.
Chegou mesmo a entrar em
cena a Igreja, ao pretender convencer que no mundo sempre haveria
ricos e pobres e estes, embora iguais àqueles no sonho da vida
eterna, tinham de contentar-se, até lá, a saberem que mais
facilmente que os ricos, entravam pela porta grande, apesar dos
calos que em proveito daqueles, foram ganhando nas fainas da terra.
Um rapaz novo e bem
intencionado, desembarcado na Ilha para ocupar funções de Delegado
do Instituto Nacional do Trabalho, então a máscara doce ou adoçante
da organização corporativa do tempo, chegou a manifestar-se, pública
e oficialmente, como apreciador das validades da iniciativa
cooperativa do Pedro e seus companheiros.
Mas não tardou que, por
ordens de Lisboa, fosse transferido para uma das chamadas "Ilhas de
Baixo" onde, pelas características da pequena propriedade vigente e
quase comum sistema de cultivo e exploração do que a cada um
pertencia, se não levantavam problemas semelhantes.
E ficaram mais afoitos
os que viam no Pedro a encarnação do Anjo Mau e, nos companheiros,
toda uma Corte infernal.
Tardava o esmagamento
desejado mas não diminuía a vontade de o obter, ainda reforçada
quando um qualquer válido pretexto levava uma grande parte dos
trabalhadores das pastagens e das estufas da
/ 132 /
Ilha a reclamar contra a sua situação de miséria e as condições de
prestação de trabalho e sua injusta retribuição.
A maneira como foram
escutados e que fazia prever uma qualquer melhoria dos
trabalhadores, exasperou o Barão, o Visconde e o William que já nem
sequer tentaram recorrer ao Bispo para ordenar aos Padres da Diocese
que, nas homilias ou pela acção pastoral de rua e de casa ensinassem
ser o respeito um caminho para a salvação económica da Ilha, de nada
servindo o apelo constante de certas autoridades que não esqueciam
estar o Engenheiro integrado na "ordem social estabelecida... com
activo repudio do comunismo e outras ideias subversivas" mas
sentindo, na própria sensibilidade que os trabalhadores deviam ser
os principais beneficiários da sua actividade, merecendo ser
tratados como iguais na tarefa comum de viver, produzindo conforme
as suas forças e recebendo a compensação correspondente às suas
necessidades.
Mas não deixavam, os
tais "senhores", de defender a ideia de que "quem não é por nós é
contra nós" e quebrar as tradições de servidão seria, exactamente,
ser contra os que dela beneficiavam.
Embora com o ânimo um
pouco quebrado, quer o Visconde, quer o Barão começaram a discordar
do radicalismo do "calafona" de torna viagem e a pôr certas reservas
ao plano de acção directa por ele idealizado como forma de bem e
depressa eliminar o perigo na pessoa do Pedro, dos seus pastos e
estufas e no espírito de luta pela igualdade e dignidade que tão bem
soube despertar nos seus colaboradores que começavam a senti-Ias
como clima necessário à própria sobrevivência.
Mas nem o Barão nem o
Visconde se sentiam dispostos a descer do patamar alto onde se
sentiam, para dar aos "servos" de sempre,
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a mão de uma cooperação que os fizesse sentir iguais àqueles a quem
o Pedro a tinha dado.
Ainda por sugestão do
tal William, manhoso como era e conhecedor profundo da fé do povo
que se rojava perante os milagres do "Senhor Santo Cristo dos
Milagres", o Barão e o Visconde foram de longada até à Ilha sede do
Bispado de então, na tentativa de obter do Antiste a promessa, já
antes tentada de, aos pastores do rebanho que chefiava, fazer ver o
perigo que aquela igualdade de mãos dadas constituía para as
tradições da Igreja e da sociedade tradicional.
Mas apesar dos
pergaminhos e azuis desmaiados do sangue levado em compota de
ananases e queijos, o Bispo não se deixou convencer e despediu-os
com um delicado mas inconclusivo:
"Faça-se a Vontade do
Senhor..."
que os fez voltar à sua
Ilha, tão ricos como dela haviam partido.
Posto a par do sucedido,
o William não deixou de verberar com a sua macarrónica linguagem "micaelo-ianque"
aquelas episcopais palavras que, dizia, nem parecerem da Santa Madre
Igreja que tanto tinha obrigação de proteger os pobres pela
protecção dos ricos, aqueles que, pelas obras de caridade, melhor
preço pagavam pela entrada no céu.
E o vulcão não entrou em
erupção visível!
Quase habituados à ideia
nova que o Pedro plantara por todos aqueles verdes e começava com a
ajuda de estufas de convencimento, a triunfar, o Barão, o Visconde e
o William viam-se obrigados ao golpe de leme que não desejavam mas a
que não podiam fugir dada a força das circunstâncias.
Embora contrariados, lá
começaram a pagar, um pouco melhor, aos servidores e estes, por sua
vez a sentir-se agradecidos, juntando aos do "Senhor Santo Cristo",
o milagre de que pouco a pouco iam
/ 134 /
sendo beneficiados por mercê do Pedro, santo da mesma capela, embora
de outro nicho.
E o que mais preocupava
o Barão, o Visconde e o William era sentirem que os benefícios
obtidos não eram dádivas de senhores apiedados das misérias dos
outros, mas o fruto da conquista consciente de direitos naturais e,
até ali, pouco menos que ignorados.
Quando numa das férias
habituais o Frederico, já "Senhor Embaixador" em capital
sul-americana, veio até à Ilha, ocupando, como era de seu direito,
uma das alas do palácio da família, não deixou de felicitar o irmão
sem que se sentisse diminuído por abraçar com o toque distinto do
seu jaquetão de boa fazenda de Santa Clara, o blusão, um tanto
puído, do irmão Pedro.
Mais que isso, fez
questão em mostrar-se, no Café do Largo da Alfândega, ao lado do
Pedro, sentando-se à mesma mesa onde o Ezequiel, o Joaquim e o
Silveira discutiam a última remessa de ananases para Londres e a
baixa suspeita do preço do leite que a Cooperativa leiteira
preparava com o pretexto da aquisição de novas máquinas.
O caso não deixou de ser
notado e tanto o Barão como o Visconde, e o próprio William em
ânsias de promoção social para lá da conta bancária, esperançados
que estavam na eventual e desejada influência do "Senhor
Embaixador", sentiram aquela familiaridade nivelada, como golpe
mortal nas suas expectativas.
Mas sobretudo o "Calafona"
não era dos de perder cartada naquela bisca de pano verde que a Ilha
era, e logo começou a congeminar maneira eficaz de rapidamente
abater aquela paliçada
/ 135 /
de fé que o Pedro conseguira erguer e consolidar, em defesa de si e
dos companheiros de trabalho comum.
Não via o William quem,
na Ilha, fosse capaz de, por meios que não importava quais fossem,
eliminar o castelo de fé e exemplo que a obra do Pedro começava a
ser.
E, sem esperar
concordância do Barão e do Visconde, mesmo dos seus pequenos e pouco
poderosos satélites, comunicou-lhes que ia à América, por alguns
dias, buscar operacional capaz de, sem sentimentalismos
tradicionais, pôr fim a toda aquela "fantochada" de ver progredir os
antes humildes servos das pastagens e estufas à custa, dizia, dos
"senhores da terra".
Nem se lembrava, o
louco, dos passos que dera e da sorte que o bafejara lá pelas
frescuras férteis do Vale de São Joaquim californiano.
Ainda que atemorizados e
não querendo solidarizar-se, não deixaram de sorrir ante a
perspectiva de, sem perigo próprio, conseguirem o aniquilamento,
pelo menos económico, do Pedro e da sua "quadrilha" como
depreciativamente passaram a apodar os colaboradores daquela obra de
libertação.
O William, por isso, não
teve nenhum dos "senhores" no cais a desejar-lhe "Boa-Viagem" já que
estes se refugiaram em especial mutismo ansioso mas, lá bem no
fundo, esperançado.
Quando passados poucos meses o William voltou, não vinha sozinho.
De braço dado com a
arrogância habitual, trazia um daqueles sujeitos, com todo o ar de
"bulldozer" ou "bulldog" que o não largava um momento que fosse e
lhe falava e ouvia por monossílabos plenos de determinação e
conhecimento do ofício.
O facto não passou ao
lado da observação de quantos sabiam do que era capaz aquele
insaciável "senhor de torna viagem", no não
/ 136 /
recuar perante regras que não fossem as que conduzissem ao aumento
do seu poderio.
O Pedro também não ficou
alheio ao quase pânico que tal presença ocasionava, mas, dotado que
era de bondade e paciência, procurava convencer os que dele se
abeiravam para tocar no assunto, de que, por certo, não haveria
qualquer espécie de perigo ou ameaça para eles ou para os seus
directos e amigos colaboradores.
Mas, à cautela, sempre
foi organizando um serviço de vigilância às estufas e vacarias a que
prontamente se prestaram os sonhadores do mesmo sonho.
Mas um dia, quem sabe se
levado pelas asas do verdelho, vindo do Pico, um trabalhador do
William descaiu-se e deixou sair da boca palavras que para quem não
fosse de todo surdo mostravam que estava próxima uma acção
organizada que passava pelo incêndio das instalações e destruição
das estufas e, se tanto fosse necessário, pelo aniquilamento físico
de quem se opusesse.
Apesar de preocupado,
conhecedor do acontecido, o Pedro limitou-se a reforçar as
precauções, nunca deixando de acalmar os mais timoratos que, apesar
de o serem ou como tal se confessarem, não deixavam de se mostrar
dispostos a lutar em defesa do pão e liberdade que o Pedro tinha,
decisivamente, ajudado a conquistar.
Mas veio o dia em que as
suspeitas se tornaram certezas próximas e a amizade de um dos
"servos" do William em relação a um dos "servos" do Barão, muito
ligado por laços de velha amizade ao Ezequiel, todos
inconscientemente comandados por um qualquer objectivo de
auto-defesa, deu a conhecer que no sábado que antecedia o domingo do
Espírito Santo, dia sagrado para o povo das ilhas daquele rosário de
nove, o grupo comandado pelo tal "buldozer" de importação americana,
lançaria fogo à vacaria, ao mesmo tempo
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que outro iria despedaçar as estufas e, se possível, também pelo
fogo, o armazém e os escritórios localizados não longe do Palácio
dos Marqueses, na periferia da cidade do "Senhor Santo Cristo dos
Milagres" mas suficientemente longe para que os Bombeiros não
tivessem tempo de evitar as consequências do braseiro.
O Barão e o Visconde,
embora sem dar o seu acordo directo, estavam a par do projectado
pelo William, tendo mesmo dado ordens a alguns dos seus
trabalhadores de mais confiança, para que, nesse dia, no anterior e
nos seguintes, obedecessem a tudo quanto lhes fosse ordenado ou
sugerido pelo "calafona".
E tudo ou quase tudo se
tentou realizar com a rapidez e a simultaneidade necessárias à
consumação do crime, só que, alertado a tempo suficiente pela
inconfidência feita ao Ezequiel, o Pedro organizou a defesa e
comunicou as suspeitas ao comandante local da G.N.R., seu íntimo
amigo desde os tempos em que, em Lisboa, frequentavam Agronomia e a
Escola do Exército. Não falharam as perspectivas e logo após as
primeiras labaredas surgidas na vacaria e a aproximação de grupos
suspeitos ao armazém e aos escritórios, os sinos tocaram a rebate e
acorreram aos locais, para além dos Bombeiros e muitos populares, os
soldados da G.N.R. e, em quase multidão, os cooperadores do Pedro a
defenderem o que sentiam seu e mesmo outros que, "servos" de
senhores rivais, começavam a ver como futuro próprio o já presente
daqueles irmãos.
Passou-se o
indescritível com toda aquela força que as mãos têm ao defender para
a boca, o pão que lhe é destinado.
E não tardou que alguns,
menos resistentes às pressões malignas dos senhores, começassem a
levantar o véu de fumo que esperavam ver reforçado com o surgido das
labaredas que pouco mais destruíram que uns fardos de palha e
embalagens de cartão para
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conforto dos ananases das estufas, já com guia de marcha para os
mercados de Lisboa, Paris e Londres.
− Foi o William que com
o seu "buldozer" organizou isto tudo, de acordo com o Barão e o
Visconde!
começou a ouvir-se, a
princípio por entre os dentes medrosos e depois em vozearia
revoltada.
E já não eram só os do
grupo do Engenheiro, pois à vozearia interessada deles, se juntava a
dos do Barão e do Visconde, que até davam pormenores, nem sempre
verdadeiros mas credíveis, quanto à organização e sequência das
acções.
Deixado aos Bombeiros o
aliás fácil trabalho de rescaldo e aos soldados da G.N.R. a
observação e recolha de elementos de prova, a multidão, cada vez
maior e já integrada por muitos que, directamente, nada tinham com o
assunto, instintivamente se dividiu em três grupos, dirigindo-se
dois deles aos palácios do Visconde, na Canada dos Fetos, e do
Barão, no Largo do Cruzeiro, gritando por explicações, conhecidos
que eram os laços da sua fidalguia com a indignidade do "calafona".
O terceiro grupo, esse,
mais numeroso e, de certo modo, liberto das ancestrais
subserviências devidas à "nobreza", dirigiu-se, em magote, até à
Cruz das Acácias onde o William vivia e onde instalara, quase de
"casa e pucarinho", o "buldozer" que tinha ido buscar à América para
cevar os seus ódios e destruir tudo quanto se atravessasse na frente
do seu caminho lamacento.
A G.N.R. seguia a
distância conveniente a multidão em fúria, para evitar males maiores
e recolher, mesmo prender, elementos ou pessoas implicadas no caso
que, por raro naquelas paragens pacatas e pacificas redondezas,
causou revolta ao Tenente que não se dispensou de seguir de perto as
operações com disposição de não deixar passar
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a oportunidade para pôr cobro a actos de violência como o projectado
e já em curso.
As portas do casarão
foram arrombadas com certa complacência dos guardas, e exigida a
presença não só do William mas do outro "calafona", de serviço na
matilha.
Ao verem a situação logo
alguns dos aliciados para obedecer às ordens do "Buldozer"
começaram, a princípio a medo e logo de seguida em voz bem alta,
para que fosse ouvida, a dizer:
− Foram eles, os
malditos, que nos obrigaram a ir deitar fogo à vacaria e ao armazém!
− O americano até de
pistola puxou para fazer ir para a frente os que atrás ficavam com
medo ou com respeito!
− Eles não queriam que o
Senhor Engenheiro mostrasse o caminho certo para o nosso pão!
− Queremo-los cá fora
para lhes dizermos na cara e fazermos sentir no corpo!
Foi então que, em
aparente protecção do William e do guarda-costas, os da G.N.R.
apareceram e, forçando os portões do casarão, os intimaram a sair
"para os proteger" com a prisão que disseram fazer, mas a que o
William pretendeu resistir invocando a solidariedade do Barão e do
Visconde e dando sinal ao guarda costas que chegou a puxar da
pistola, logo regressada ao bolso por ver que outro tanto haviam
feito os soldados, quase em obediência aos ulos da multidão
revoltada que não se cansava de gritar:
− É matá-los, esses
filhos da puta, que nos queriam roubar a paz e o pão!
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Quando saíram,
enquadrados pelos soldados, a caminho do Quartel da Guarda, não
foram poupados aos mais hediondos insultos e graves ameaças, tendo
mesmo sofrido, durante o percurso, aliás curto, os enxovalhos de
quem com eles cruzava e sabia das intenções que tiveram.
Do outro lado da cidade
as coisas passavam-se de maneira diferente, já que, descendo das
suas tamanquinhas em forma de trono, quer o Visconde, quer o Barão
não tardaram em confessar, terem tido conhecimento das intenções e
da acção projectada pelo William, mas sempre convencidos, diziam, de
que se tratava de amedrontamento com o qual pretendiam fazer com que
o Engenheiro voltasse atrás e tudo regressasse às tradições
senhoriais da Ilha.
− Vocês são tão bons
como eles, embora menos descarados!
Era o que muitos mais
atrevidos diziam, enquanto outros, mais respeitadores e obedientes à
lei dos avós, se contentavam com:
− Queremos o nosso pão
tal como o Engenheiro dá aos seus trabalhadores. Basta! Basta! Basta
de servidão!
Quando o Pedro tomou
conhecimento do que se passava e, de certo modo, já era esperado,
logo correu à Canada dos Fetos e ao Largo do Cruzeiro em tentativa
de acalmar os ânimos dos mais exaltados, já que nem por um momento
duvidava de que seria ou vido, tanta era a confiança que nele
depositavam e que tudo levava a
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crer sair reforçada com os acontecimentos. Mas, pediu ao Tenente que
o acompanhasse e o ajudasse com a sua presença.
Ao serem recebidos, quer
na Canada dos Fetos, onde era o palácio do Visconde, quer no Largo
do Cruzeiro onde o Barão residia em espavento remediado pelas crises
sucessivas, logo manifestaram a disposição de tentarem evitar
desacatos maiores, mas, porque desejavam saber toda a verdade, por
ela vinham para evitar que a inocentes fosse atribuída qualquer
responsabilidade.
E de um e de outro
recolheram os elementos bastantes para se chegar à conclusão de que
a ideia e o planeamento da acção eram do William, embora fosse do
seu particular conhecimento.
E de tudo se mostravam
profundamente arrependi dos, embora à pergunta formulada pelo Pedro
sobre se desejavam ou não que tivesse sucesso a operação criminosa
do "calafona", só respondessem com um silêncio mais que
comprometedor.
A saída do Engenheiro e
do Tenente correspondeu, num e noutro dos lugares onde tinham ido, a
acalmia esperada, não sem que, já em plena debandada, se ouvissem
alguns impropérios de natural revolta e repúdio que, pelo menos,
mostravam passarem a ir nus no respectivo cortejo, aqueles senhores
de sangue azulado a quem acabavam de arrancar os trapos dos
respectivos mantos.
No Quartel da G.N.R. em
frente ao qual a multidão, reforçada, agora, pelos vindos da Canada
dos Fetos e do Largo do Cruzeiro, continuava a vociferar contra o
William e seu guarda-costas e, de tal forma, que foi julgado
oportuno não os deixar sair e conservá-los até que o Tenente
chegasse e os interrogasse antes de serem enviados ao Juiz da
Comarca.
E o interrogatório
decorreu por forma a não justificar qualquer
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espécie de benevolência ou compreensão, por parte do Tenente, já que
para lá da amaciada confissão dos actos de preparação, organização e
acção, os inquiridos, ou, melhor o William, pretendeu justificar
como legítima a violência planeada e em parte realizada, já que
dizia ele...
− Foi só para defender
os nossos interesses e afastar concorrências...
O Tenente nem sequer
teve a coragem de uma palavra de repulsa perante todo aquele ignóbil
comportamento, limitando-se a dizer que, para sua própria protecção,
ficariam detidos até que o Magistrado competente tomasse a decisão
que houvesse por adequada.
Quando, no dia seguinte,
o Tenente, em confidência, disse ao Engenheiro o que se havia
passado no Quartel, este nem se mostrou surpreendido tão certo
estava das intenções dos "senhores da terra" reforçadas pelas ideias
de maior esmagamento, trazidas pelo labroste do Vale de S. Joaquim,
por mercê do petróleo em milagre nascido debaixo das bosteiras de
vaca do seu domínio.
Mas havia trabalhos a
continuar e, logo no dia imediato, o Jorge, o Silveira, o Ezequiel,
o Joaquim e outros do seu enxame, não ficaram surpreendidos com o
aparecimento do Aniceto, do Manuel Joaquim, do José Brum,
trabalhadores do Barão; do José Medeiros, do Xico do Engenho e do
Serafim Mulato, servidores há muitos anos do Visconde, e ainda do
António da Roda, do Aniceto da Graciosa e do Francisco da Calheta,
estes do serviço do próprio "Calafona" desde que ele voltara à sua
ilha e comprara as extensas pastagens do
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Morgado das Caldeirinhas que quase cercavam uma das lagoas dos altos
da terra quente; e que todos vinham oferecer-se para ajudar e mesmo
pedir que os deixassem ficar como irmãos daquela confraria que
passaram a ver como de libertação.
E foi bonito de ver o
abraço que todos entre si deram sem que o azul do sangue do Pedro
deixasse de ter reflexos de vermelho na fraternidade de todos!
O caso, por raro, causou
um verdadeiro abalo sísmico naquela terra tão atreita a eles, e não
tardou que as forças "tradicionais", mesmo as pouco dotadas de
pergaminhos e poderios, se sentissem em perigo ou, pelo menos,
temessem perda de privilégios com o apuramento das responsabilidades
de certos senhores, até então intocáveis.
Uns foram de súbito até
Lisboa mover influências do Terreiro do Paço do tempo; outros, a
Angra, para mais uma vez tentarem levar o Bispo ao manejo das suas
próprias; outros, ainda, por ali ao pé da porta, limitavam-se a
criar ambientes, retirando gravidade onde ela por demais se
instalara, tudo numa tentativa de tentar obter que o banco dos réus
fosse montra para os implicados, tantos eram, até porque, de certo,
não seria possível obter cadeirões suficientemente almofadados para
tão importantes réus como seriam o Senhor Barão e o não menor Senhor
Visconde.
O amornar dos tempos
amaciou arestas e o "Amigo" Tenente recebeu o galardão de uma
promoção antecipada e... transferência para mais categorizado
lugar...
E a paciência, a
persistência, a acção milagrenta do "Senhor Santo Cristo dos
Milagres" conseguiu mais um, a juntar aos do seu alforge.
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Tanto quanto possível
secretamente, foi obtida − por quem, nunca se soube,
concretamente... − autorização para a saída da Ilha, no primeiro
barco a escalar o porto da cidade-capital, do William e do seu cafre
de serviço, após venda que aquele fez dos bens que na ilha comprara,
tudo acompanhado da solene promessa de não regresso, porque a
dar-se, este, a roldana voltaria ao sarilho e os alcatruzes da
responsabilidade voltariam a mover-se com o peso da verdade mais ou
menos sabida, mas por todos ou quase todos provisoriamente
esquecida, na esperança da paz que desejavam.
E assim foi, uma noite
alta em que um barco da "Fabre-Line" vindo de Cherburgo ou do Havre
encostou e largou do molhe, levando, no seu bojo envergonhado, duas
almas que por ali estavam a mais.
Quando, no dia seguinte,
a notícia se espalhou, houve mais velas a arder no altar do "Senhor
Santo Cristo dos Milagres", as vacas deram leite mais branco e gordo
nos pastos verdes e os ananases ficaram mais doces, em melhor
aproveitamento das leivas novas.
O Jorge, esse não deixou
de ser aquilo que já era: irmão do Ezequiel, do Silveira, do Joaquim
e dos que foram vindo, atraídos pelo verde do sonho comum, já isento
do fel que durante uns tempos o emporcalhara.
28/02/1998 |