Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 117 a 120.

As Musas por vezes fazem mal aos doutores

Este meu feitio brincalhão com os seus laivos de satírico e atrevido, sem nunca deixar de ser respeitador de patamares ganhos com mérito, acasos ou menos claras circunstâncias, não raro me levou, através da vida profissional por repartições, tribunais, escritórios e outros covis de interesses, a aproveitar como faíscas de inspiração jocosa, as faúlhas que iam saltando da lareira forense por mercê de resinas, pinhas ou achas que, dando calor e conforto, não deixavam de, com eles, fornecer pretextos para o sorriso.

Nem sei porque esqueci alguns!

Mas sei, lá isso eu sei, que outros fizeram dos arcanos da memória ou das notas então tomadas não só para desabafo próprio mas também para consumo do visado, um arquivo sem fichas, nem sempre defendido dos carunchos e traças, como convinha ao complacente papel que por igual aceita o mau e o bom − passe a vaidade do réu... − que dia a dia, semana a semana, ano a ano ia saltando da lareira e, por vezes, chamuscava as nem sempre respeitáveis mas sempre respeitadas togas e becas do seu destino de "escárneo e mal dizer" jamais cantado com outro pecado que não fosse o de sorrir.

Assim foram surgindo, em geração quase espontânea, dezenas de rimas de pé. quebrado, que eu ia remetendo aos visados sem jamais ter provocado reacções injustas traduzidas por qualquer mau / 118 / julgamento, com ou sem pena maior ou menor, mesmo suspensão de amizades "ut ne peccetur" como se dizia nos tempos a seguir ao "quia pecatum est" dos criminalistas nossos avós.

E sabe bem, hoje, recordar alguns desses fogachos, pretensamente poéticos, por mais que isso pareça violação do respeito devido ao negro das togas e becas, mesmo ao azul do papel armoreado de então.

E é por saber bem a quem os escreveu, em sorriso, que se ousa partilhá-lo, agora e aqui, com outros a quem, possivelmente, o destino não deu a felicidade de se aquecerem nessa lareira, franca e aberta, que foi a do meu tempo de pedir justiças para quem delas carecesse ou se julgasse portador de direitos que via como ofendidos.

Irão sem fronteiras de tempo ou espartilhos de temas ou de pessoas.

É que, na vida de convívio profissional que levei, só havia, como guardas fronteiriços, os Decretos do Terreiro do Paço depois de enfarpelados no "Diário do Governo" que então não era da República, e, mesmo assim, passada que fosse a "vacatio" e, quanto a temas, era um só, o da camaradagem e convívio amigo entre os oficiais do mesmo e tal ofício de dadores e pedidores de justiça.

Mas, é tempo de começar o atrevimento.

Quando em 1946, após uns anos de Açores e uma passagem que varou de dois anos por terras da Beira Alta, eu vim, como então se dizia, "montar banca" em Aveiro, já a comarca contava como causídicos residentes ou que a ela vinham com regularidade, com ou / 119 / sem escritório próprio: o Manuel das Neves, o Alberto Souto, o Arménio Martins, o Luís Regala, o José Carinha, o Vítor Gomes, o Júlio Calixto, o António, o José e o David Cristo e, ainda, acumulando a profissão forense com o exercício de outros cargos da função pública: o António Pinho, Conservador do Registo Civil, em Ílhavo o Fernando Moreira, exercendo idênticas funções em Aveiro; o Inocêncio Rangel, que era um dos notários da Secretaria Notarial.

Também vinham com certa regularidade a Aveiro, alguns nomes sonantes da região e proximidades como: o César Abranches, que trazia de Coimbra toda a sua enorme bagagem jurídica; o Adolfo de Almeida Ribeiro, que de Águeda vinha com a sua panóplia de argumentação preciosa em vários sectores, sobretudo no dos Direitos Reais em que era "especialista"; e, daqui mais de perto, o Alfredo de Sousa e Melo, sediado em Albergaria-a- Velha, afamado profissional, sobretudo de gabinete, já que, na Barra, não tinha o mesmo fulgor, faltando-lhe, até a paciência e um certo "poder de encaixe" que tão preciso é quando as injúrias da sorte nos tocam pela porta.

O Álvaro Neves, esse veio logo a seguir para ajudar e ser ajudado pelo Patriarca, seu Pai.

Pois foi com aquele" senhor" de Albergaria, a velha Osseloa que o Vasco Mourisca tentou reanimar na sua bela mas pouco duradoira revista "Arauto de Osseloa" com um suplemento efémero a que deu o nome de "Toga", que se deu a "estória" que, por saborosa, vou contar e servirá de explicação para a versalhada de pé quebrado que ao diante se verá e acabou por dar lugar a sorrisos que em nada fizeram arrefecer o calor da amizade que começava a brotar entre os dois Melos da advocacia de Aveiro, embora no duplo L que o Sousa ostentava e na singeleza do que era usado pelo Costa, se pudesse ver, sem esforço, qualquer adorno especial de brasão heráldico. / 120 /

A sorte de uns "sucessozitos" fez com que, em breve, eu me sentisse fixado em Aveiro e dispensasse o "apoio logístico" da casa de meus Pais, na Mourisca.

E, em consequência, fundada ou não em suposições reais, alguém me disse que o saudoso Amigo e Colega, da vizinha comarca e, em Aveiro, de certo modo concorrente, teria dito aproveitar-me eu da identidade do Melo ou Mello dos nossos nomes, para juntando-os ao Sousa e ao Costa, gerar confusões que se iam traduzindo em qualquer sistema de vasos comunicantes, entre" dossiers".

Sorri e logo tentei usar a veia jocosa para oferecer ao Amigo o "puxão de orelhas" de que seria merecedor o seu dito, se fosse sua intenção qualquer atribuição de apropriação do alheio pelo meu Melo em prejuízo de seu Mello.

E assim foi.

O resultado da inspiração foi-lhe enviado com um abraço em prosa e outro, em pessoa, na primeira vez, após ele, em que nos encontrámos.

E para que a coisa tivesse ecos sorridentes, também distribui a versalhada por Colegas e Magistrados amigos.

Ela aí vai, ressuscitada ao fim de mais de meio século de catacumba:

MELO e MELLO...

Há grande satisfação
Nos meios judiciais,
Terminou a confusão
E agora há separação
Entre os dois Melo iguais!

/ 121 /

Iguais é bom de dizer,
Com muito boa vaidade,
Pois o Sousa, no saber,
Na fama e no receber,
Engole o Costa à vontade.

O Costa é um pardalito
Das eiras, que esvoaçou,
Na intenção e no fito,
De aproveitar o conflito
E a confusão que pairou.

Com efeito, sorrateiro,
Viu bem o furo, espreitou,
E com manhas de matreiro,
Veio instalar-se em Aveiro,
Deu-se bem e cá ficou.

Não foi para Albergaria,
Onde esteve a estagiar,
Veio para o pé da Ria,
Onde já fama se ouvia
Do Sousa e MeIo, ecoar!

Sousa e Mello e Costa e Melo,
Sem Alfredo e sem Manel,
Pareciam mesmo um novelo,
Pois ambos pareciam sê-lo,
No azulado do papel.

/ 122 /

E na confusão pensando,
Pr' a dela tirar proveito,
O Costa foi apanhando,
Qual pardalito voando,
Tudo o que lhe vinha a jeito.

Mandou erguer um altar
A Santo Banaboião,
Passou noites a rezar
E dias a jejuar,
Em graças à confusão.

Houve, mesmo, quem pensasse
Que se não fosse os enganos,
Talvez o Costa estourasse,
De fome e um dia acabasse,
Como "alimpador" de canos.

Mas tal não aconteceu,
Graças à Deusa X-LUM,
E por isso se escreveu
Nos jornais e o mundo leu,
Que eram dois e não um.

Todo o mundo acreditou
Naquilo que era verdade,
E se alguém se enganou
E o Costa procurou,
Só se enganou em metade.

/ 123 /

Era o Sousa, o sol nascente,
A luz, a chama, o calor,
O Costa era o sol poente,
Um lusco-fusco indecente,
Um pirilampo, um... estupor!

 

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