Por não a julgar deslocada nesta segunda série de fogachos da lareira
forense, deixo aqui reproduzida, na íntegra, a charla que tive o prazer
de proferir, em 4 de Janeiro de 1995, a convite do Conselho Distrital do
Porto, da Ordem dos Advogados, na Sessão de Abertura do Curso de
Estágio, no Auditório do Hotel Sheraton, com a presença do respectivo
Bastonário e do Representante do Ministro da Justiça.
E se deixo é porque sinto que essa comunhão com os futuros homens de
toga, foi um momento de mostra de casos vividos que se outro valor não
tiverem têm o de serem reais e poderem constituir exemplos a seguir ou a
evitar, na sempre difícil e traiçoeira tarefa de pedidor de justiça:
"Para além do mimo que traduzia e que, por demais me envaideceu e tanto que anulou um prévio exame do que eu valeria e que
−
quem sabe? − levaria à assisada resolução de recusar o convite, importa
colocar, no seu devido pé, a ousadia de ter aceitado.
E é com ousadia, quem sabe, mesmo, se com descaramento, que se apresenta
este Colega mais velho que, se não é do tempo das Ordenações e da Lei
das Sesmarias, folheou, em pleno vigor delas, as
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páginas do Código bairradino do Visconde de Seabra e assistiu, de toga
vestida e já um pouco esburacada pelo uso, ao de Varela e, depois,
dobrado Abril, às transformações que, sem lhe tirarem o valor, quase
revolucionário em 1966 (!!!), o adaptaram aos novos tempos com frinchas
por onde entraram brisas frescas, sobretudo aquelas que deram à
"família" e às "sucessões" um pouco daquilo que entendo ser de Justiça.
Eu, pelo menos − e sou visceral pluralista!
− entendo assim.
Mas disseram-me, ao mimarem-me com o convite para vir aqui,
que esta ORDEM tripeira dos Advogados Portugueses entendia, como útil
para o efeito desta nossa "távola redonda", a presença de uma toga de
outra geração.
Favores que se ficam devendo, estes de misturar ficheiros da alcunhada
"massa cinzenta" com os da outra memória de neurónios computadorizados
em "software" por mercê de inventos a que nem
as latitudes e as longitudes do mundo são inteiramente estranhas.
Seja, porém, como for, aqui me tendes de baraço ao pescoço
como o Dom Egas da História, a arrostar as dificuldades de poder
corresponder ao convite e não desmerecer da confiança em mim depositada
para que, pelo menos, com o conforto benévolo da vossa paciência, eu
possa dar razão àqueles que julgaram útil, já não digo o confronto de
pólos dum mesmo mundo mas, até e talvez, a amostragem, em paralelo, de
dois mundos diferentes.
E permitam-me que, em legítima defesa e procurando não ter de invocar a
desculpa do excesso dela, eu procure o sorriso em vez da carranca, quem
sabe se por o julgar mais propício ao reconhecimento das atenuantes.
Uma "charla" como me disseram pretenderem que fossem estas palavras-eco
de uma toga de geração diferente, não pode deixar de ter salpicos de
vida vivida, tal como os meus "fogachos da lareira forense" que
embrulhei, para os leitores que adregassem, em togas e becas do meu
caminho de pedidor de justiças.
/ 102 /
Pois são alguns desses salpicos que agora vos trago aqui. Mas faço-o sem
esquecer o tom didáctico, quanto baste, que
esta reunião tem e que, certamente, por outros mais capazes, lhe será
dado.
Toda a sementeira começa por se afundar ou enterrar, na água ou na
terra, antes de, pela força da semente, subir aos céus, embora sem nunca
perder os contactos com as profundas donde vem, pelas raízes que
crescendo, quase sempre para baixo, são, perdoem o aparente paradoxo, a
razão primeira de quanto para cima se desenvolve.
Aos que vão iniciar-se numa tarefa
− e refiro-me a vós, jovens Colegas −
não deixa, sempre, de ajudar, o conhecimento do que tenha sido a
vivência anterior dos seus pares.
E, coisa curiosa, em meu entender, nem sempre ou quase nunca essa
vivência se veste de encadernações teóricas formuladas em páginas e
volumes, poços de saber, alguns tão fundos que não há escafandro conhecido capaz de aguentar a pressão.
Todos tivemos desses poços no agro do nosso cultivo.
Eu não gostaria de citar nomes pela negativa mas não ouso
fazê-lo, apenas, pela positiva louvaminheira mesmo que seja só temperada
pela eventual saudade.
É que a par de um
Carneiro Pacheco, mesmo de um
Abel de Andrade, eu não
posso deixar de alumiar a um
Rocha Saraiva ou a um
José Gabriel Pinto
Coelho.
Não se estranhe serem só de Lisboa os apontados Mestres de Direito.
Da velha Coimbra dos Doutores, por onde passei sem ter passado, eu
guardo da "lentaça" e como símbolo de clareza, todo aquele metro e meio
de estante que foi a obra de
José Alberto dos Reis, grande senhor das
Leis e das Doutrinas, em cuja floresta é nosso destino viver.
/ 103 /
Mas estou a afastar-me, e não quero sair da linha de rumo que tracei.
Vamos aos salpicos.
*
Eu tenho no meu bornal um episódio curioso que não resisto à tentação de
vos contar, até porque, integrado no instituto, chamemos-lhe assim, da
"pena suspensa" se prende pela rama, com esse outro, o da "pena
indeterminada" que sempre suscitou a minha atenção de escolar de leis e
até um certo grau de paixão que me levou a abordá-lo como trabalho final de Licenciatura em Ciências Jurídicas, no
Curso Complementar de Direito, na Universidade de Lisboa.
Era um rapaz novo, cheio de vida, dado ao desporto em que
muito brilhava, mas pouco resistente as tentações que o cercavam.
Foi acusado por prática de actos sucessivos de furto, ainda que de
pequenos valores (selos do correio) e que implicavam abuso de confiança
e quejandos tumores do tecido social envolvente.
Era muito novo e estava, quase, no patamar primeiro da possível incriminação.
Amigos sugeriram-me que o fosse defender.
E fui, depois de com ele ter trocado umas impressões e ganhar
o convencimento de que, apesar das aparências, estava longe de ser um
caso "perdido".
Confessava os factos, embora, segundo a "moral vigente", as suas
justificações fossem mais agravantes que atenuantes e o seu feitio,
quase "libertário", fosse gerador de clima nada favorável.
O julgamento decorreu como era de esperar e, pela cara do Juiz
− os Juízes, por vezes, mostram-na... − tudo levava a crer uma sanção
relativamente pesada que, naquela idade e pelos contactos que
originaria, nada teria de regeneração e reintegração pessoal.
Recordando-me de velhos ensinamentos, tudo me levava a crer
/ 104 /
que o Juiz o condenaria "quia pecatum est" quando o que interessava
era que o fizesse "ut ne peccetur".
Era a velha questão da pena como castigo e da pena como redenção
provocada.
E em plenas alegações de defesa, absolutamente desligadas de quaisquer
interesses materiais, vejo-me a pedir a condenação do réu e a fazê-lo
não porque ele tivesse pecado mas para que não voltasse a pecar. E, para
isso, eu defendia a ideia da suspensão da pena por período que até
ultrapassava, um pouco, os quase tradicionais e cómodos dois anos.
O factor da idade do réu e o muito carinho e esperança que saltavam da
toga, não deixaram de chamuscar a beca do Meritíssimo e de o levar, em
dado momento de desvio da sua linha habitual, a dizer:
− E quem se responsabiliza por essa suspensão e pela sua utilidade
social?
O que me levou, por mercê de todo o sangue que me pulava nas guelras, a
assumir o papel de Quixote e deixar o sensato Sancho Pança a cuidar do
Rocinante.
E, porque ao tempo, precisava de um rapaz, mesmo inexperiente das
andanças forenses, para o meu escritório, completei as alegações de
defesa dizendo, ao da Beca, da minha esperança na recuperação do réu e,
como adjuvante, que ele iria ser, a partir do dia seguinte, meu
empregado.
A sentença veio e com ela, de braço dado com a liberdade do réu, a
responsabilidade do advogado que nela confiava.
E agora, Colegas de outro tempo, de igual tempo ou de tempo por vir,
quero dizer-vos, feliz, que o Carlos − assim se chamava ele foi um belo
colaborador que tive, tornou-se um Amigo, um querido Amigo, sem ter
deixado nunca de ser e como tal se nos mostrar nas muitas e variadas
andanças que teve pelo mundo.
E apesar de tudo se ter passado há muitos anos, sempre se mostrou digno
da confiança que eu e o Juiz nele depositámos.
/ 105 /
É que a pena soube ser "ut ne peccetur" e não "quia pecatum est".
*
Eu tenho um muito querido Amigo a quem o Destino dotou de alguns bens de
fortuna mas que nem de longe se podem comparar, em quantidade e
qualidade, àqueles que tem na alma bondosa e no aprumo de uma conduta
cívica de primeira apanha.
Entre esses bens, os materiais, tem umas casitas modestas com
inquilinos ainda mais modestos mas que, como quase sempre sucede, não
são da mesma valia e não raro se mostram com exigências descabidas e,
pior ainda, tentando abusar do espírito bondoso daquele meu Amigo.
Muitas vezes ele se abria comigo, referindo que as rendas, quase todas
baixas, dificilmente davam para as despesas de conservação, chegando,
num dos casos, a contar-me que para uma porta nova que um inquilino
exigia, para a sua casa, seriam precisos dois anos e meio de rendas,
aliás nem sempre pontualmente pagas.
Mas o que mais punha o meu Amigo fora de si
− e isso muito raramente
sucedia... − era o não pagamento pontual das rendas e as simultâneas e
atrevidas exigências dos caloteiros.
Um dia apareceu-me, no escritório, muito sério e de cenho carregado, a
dizer-me que desta vez tinha que ser. Ia pôr acção de despejo contra o
seu inquilino F... que, além de ter rendas atrasadas de mais de ano,
ainda se atrevia a dizer, na "tasca" que frequentava, ser o meu Amigo um
mau senhorio que nem mandava pôr uma porta nova no cabanal da casa.
Aceitei a incumbência profissional, foi passada procuração bastante, mas
logo preveni o Amigo de que, a partir daquele momento, só eu mandaria,
nos passos a dar.
Mandei chamar o relapso a quem expus as intenções do despejo.
/ 106 / Ouvi dele as descabidas e até atrevidas justificações mas
disse-lhe, em tom firme e decidido, que a acção seria proposta se não
pagasse as rendas em atraso, no prazo máximo de oito dias.
Lá saiu a "resmungar" e de tal maneira que comecei, desde
logo, a preparar a petição inicial, aliás sem dificuldades de maior.
Três ou quatro dias depois, apareceu-me o "homenzinho" com o mesmo ar
arrogante e atrevido, a dizer-me que vinha pagar as rendas.
Desconfiei mas ouvi com atenção o que ele tinha para dizer e, sobretudo,
fazer, colocando, em cima da secretária, as notas do Banco de Portugal
correspondentes ao débito.
Mas a minha curiosidade era maior que o recato e, sempre desconfiado,
comecei a desfiar o rosário das minhas dúvidas, tanto mais quanto ele me
havia dito das suas dificuldades em arranjar o dinheiro.
Consegui, finalmente, que ele deitasse, cá para fora, a chave do
enigma:
− Foi o senhor J. S. quem me deu o dinheiro para eu vir pagar as rendas
que eu lhe devia. Mas o senhor doutor não diga que eu lhe disse, senão,
para as próximas vezes, ele é capaz de não me
dar...
Era assim o meu Amigo e foi a esta nossa bela e ingrata profissão que eu
fui buscar a consolação de o conhecer, tão profundamente, no lado bom
que todos temos e nele quase que é o inteiro de si.
*
Eram três amigos inseparáveis.
Perdê-los e achá-los era pelas ruas de Aveiro que conduziam
aos espelhos maravilhosos dos canais da Ria e, um dia ou outro, no "Gato
Preto" ou no "Zé Biça" a confraternizar com outros em plena ebulição de
juventudes.
/ 107 /
Cada um era da sua terra e a de um deles era mesmo Aveiro, tendo este um
avô categorizado, se bem recordo médico, mas já praticamente afastado do
exercício da profissão.
Mas tinha um relógio de oiro, peça valiosíssima, que um dia ofereceu ao
afilhado-neto como prenda de anos, Natal ou Páscoa para que não
deixassem de perpetuar-se, na família, aqueles segundos, aqueles minutos
e aquelas horas que, de sessenta em sessenta iam contabilizando a vida.
O Tito era um dos três, furriel no Quartel de Infantaria, muito dado a
leituras e ligado a familiar, se não de brasão, pelo menos de altos
degraus na hierarquia social. Um tio era, mesmo, ministro duma das
pastas de guerra do governo de então.
O outro era mais humilde mas os três formavam um trio afinado a que nem
sequer faltava, dada pelo todo da cidade, a divisa de "bons rapazes" tão
juntos andavam, sempre, em seu colectivo de amizade que nada nem ninguém
parecia capaz de destruir.
Mas o oiro do relógio que o avô dera ao neto foi essa coisa impossível e
um dia, lá adiante, bem perto das pedreiras do grês vermelho de Eirol,
junto, mesmo, ao Vouga, ali já reforçado pelas águas do Águeda, os três
amigos ficaram reduzidos a dois para que o relógio e seu oiro fosse
menos dividido.
Tudo fora meticulosamente combinado e preparado por dois dos três, um
deles o Tito, e o próprio punhal assassino fora comprado, confessadamente para o efeito, na loja do Manuel Velho, na Rua
Direita na cidade.
Era difícil explicar aquela tragédia humana com um quase suicídio, ou
melhor, amputação, de um terço de uma trindade amiga de gente de quem
nada havia a apontar como rasto em caminhos do
mal.
O julgamento foi de uma simplicidade arrepiante.
O Tito, com quase ternura pelo amigo que matara, só pretendeu mostrar umas fímbrias de revolta ao voltar-se contra o oiro do
relógio e ao confessar não ter podido resistir à tentação.
/ 108 /
Mas teve coragem, digna, ainda que repelente, ao contar e ao reproduzir
as últimas palavras do amigo, misturadas com o sangue
das punhaladas:
− E foste tu, Tito!
Ainda hoje tremo, só em recordá-las!
Foram condenados e bem, na pena máxima, legalmente possível.
Eu e o
Júlio Calixto, saudoso colega, que me acompanhava na defesa
oficiosa dos dois réus assassinos, pouco tínhamos a dizer para além de
pedir a Justiça que foi feita, mas ainda conseguimos tecer algumas
considerações acerca da violência e do fascínio no oiro, capaz de
amputar do homem valores maiores como o da amizade.
Mas nunca esqueço que durante vários anos e quase sempre nela Páscoa,
recebia do Tito um cartão, escrito na sua bela letra de calígrafo, em
que, para além do "obrigado" pelo nada que eu fizera, me desejava,
sempre, uma Páscoa Feliz.
*
O facto que agora vos vou contar, prende-se com aquela velha ideia,
assente na realidade, de que os grandes criminosos são, na sua quase
totalidade, os mais bem comportados reclusos.
Daí o meu pensar de sempre, de não julgar socialmente correcta a medida
de encurtar as penas àqueles que, na cadeia, actuam como gente de bem.
É que, lá bem no fundo, não posso deixar de ver tal medida, mais como
prémio aos carcereiros que como reforma do lado mau dos condenados.
E se assim sempre pensei e penso, é tão só, pela convicção em que me
encontro de que o bom comportamento prisional de certos reclusos
corresponde, ainda que inconscientemente, à circunstância de ser lá, no
ambiente prisional, que eles sentem ser o seu correcto "habitat".
/ 109 /
Quando, no último ano da Licenciatura, visitei, diariamente, a
Penitenciária de Lisboa, para lá receber as lições de "dactiloscopia",
ministradas pelo Professor,
Doutor Rudolfo Xavier da Silva, da cadeira
de "Polícia Científica" integrada no conjunto da Medicina Legal, foi-me
dado conhecer, mesmo de perto, dois reclusos de estirpe e pergaminhos
criminais: Alves dos Reis, o célebre banqueiro do ANGOLA E METRÓPOLE,
cuja burla agitou o mundo económico português dos anos vinte e em que se
viram envolvidos grandes nomes da política e, como profissionais do
foro, gente de toga e beca como
Barbosa de Magalhães e
Cunha e Costa,
além de outros: e Augusto Gomes, empresário que se tornou célebre pelo
assassinato da actriz
Maria Alves, conhecido pelo caso da Rua 20 de
Abril, em Lisboa, data que a muitos pouco dirá mas que nada perdem em
saber ter sido a da célebre Lei da Separação da Igreja e do Estado, uma
das leis modelo da primeira fase da República, devida ao talento e saber
de Afonso Costa.
Pois esses dois muito ilustres e celebrados criminosos eram, ao tempo,
os mais bem comportados reclusos da Penitenciária de Lisboa: um,
encarregado de uma espécie de cooperativa que lá havia e funcionava em
termos modelares e o outro, da pequena Biblioteca. E gozavam do melhor
conceito entre os camaradas de infortúnio, o que era o menos, mas também
de especiais considerações dos carcereiros, guardas e dirigentes do
estabelecimento.
Quando um dia, dando largas ao meu feitio atrevidote de 20 anos, eu pus
o problema ao Professor de Polícia Científica e, já na
Faculdade, ao de Direito Penal, para quem, aliás, o célebre
Becaria,
autor do "Dei Deliti e delle Pene" era importante mais por ser marquês
que por ser o precursor de arejadas teorias da Penologia moderna, um
parceiro do nosso não menos ilustre mas por demais esquecido
Levy Maria
Jordão, logo me foi dito o que já acima refiro:
"É que lá, na prisão, é que eles sentem ser o seu ambiente. Por isso, há
que aproveitá-los."
/ 110 /
Apesar do primarismo da asserção e de uns certos salpicos de "egoísmo
social" não deixavam de ter razão aqueles dois Mestres; tão de
diferentes raízes.
Isso, porém, não pode conduzir à condenação de ser a sociedade a ré pelo
crime de ter de suportar, em liberdade, os grandes artífices de façanhas
semelhantes que, por muito terem, muito mandam e, quase sempre, tudo
conseguem.
Sinceramente, Amigos e Colegas do meu tempo, que possam, porventura
dar-me o prazer e a honra de me ouvirem neste ambiente de formação que talvez não tenhamos tido, não consigo esquecer, de
todo, o aproveitamento que muitos fomos levados a fazer em atitudes de
compensação para falhas da liberdade de que não dispúnhamos e de que
carecíamos para tentar viver, na profissão, a cidadania do Estado de
Direito que não tínhamos.
A nossa profissão, apesar da alguns eclipses indesejáveis mas felizmente
raros, ia-nos permitindo procurar e, às vezes mesmo, encontrar,
pretextos válidos para, a coberto de certa complacência de Magistrados
menos acomodatícios e invertebrados, abordar temas de justiça social, de
lutas contra favoritismos oficiais de compadrio e − e isso era mais
difícil − proclamar que a Liberdade não era só o direito de pensar
"integrados na ordem social estabelecida pela Constituição de 1933, com
activo repúdio do comunismo e outras ideias subversivas" mas a
possibilidade de pensar, pelo menos pensar, de maneira diferente, embora
sem nunca impedir os outros de, por igual, pensarem de maneira diferente
da nossa.
Essa busca de pretextos era pão de cada dia na nossa actividade de "pedidores de justiças".
Talvez, às vezes e a propósito disto ou daquilo, abusássemos. Não digo
que não.
Mas esse abuso, a sê-lo, tinha muito a ver com o "estado de
necessidade" e de carência, em que a maioria de nós vivia.
/ 111 /
Quando se fala de "pedidores
de justiças" fossem das altas, dos conselhos de administração, fossem
das de cá de baixo, as das bofetadas e arranhões para que chegava a cura
da água fria de qualquer fonte ou, quando muito, a de uma pincelada de
tintura de iodo, vem-me sempre ao adro da memória e da saudade, o
SALGADO ZENHA.
Isto, como é evidente, sem que a saudade esqueça um
ABRANCHES FERRÃO, um
JAIME AFREIXO, um
MAGALHÃES GODINHO, um
EDUARDO RALHA, um
LUÍS VEIGA e
outros, felizmente muitos outros que, respeitando as Leis da Toga e,
aproveitando o Épico, se foram da lei da morte libertando.
Mas o Zenha, duma geração posterior à minha
− conheci-o ainda de fitas,
integrado no M.U:D. e a pedir outras justiças... − está ligado à minha
vida forense, para além da sólida amizade que nos unia, por um facto
curioso que não resisto à tentação de contar, ainda que "sumaríssimamente", para nele colocar, em patamar cimeiro e bem visível,
um dos tais aproveitamentos de pretextos, filho do referido" estado de
necessidade" e carência.
Tinha-se verificado aquela
façanha "revolucionária" do
Palma Inácio,
no assalto ao Banco de Portugal, na Figueira da Foz.
Entre os incriminados havia três jovens da zona de Oliveira de Azeméis e
o ZENHA pediu-me tomasse a defesa deles já que, por serem de ao pé da
porta, mais fáceis seriam os contactos, pois o julgamento seria na
Figueira e ele, ZENHA, ficaria mais liberto para, por inteiro, se
consagrar à defesa do Palma Inácio.
Aceitei, agradecendo a honra e tive contactos esclarecedores com o
processo e, sobretudo, com os meus jovens e simpáticos clientes que me
surpreenderam com o claro discernimento das suas razões quanto à
intervenção no acto delituoso em que se viram envolvidos, grave, sem
dúvida, mas tornado mais grave pelos contornos de que se revestia dado o
seu "tonus" revolucionário e político, em tempo de ditadura.
/ 112 /
Deu-se a vergonha, filha legítima do "desaforo" para Coimbra
e desta para Lisboa, por razões ditas de segurança...
Por isso não cheguei a intervir directamente no julgamento.
MINERVA e
SÃO IVO sabem com que pena!
Mas fiz a contestação dos jovens patrocinados, desde logo tornados amigos pela transfusão das afinidades.
E o curioso da vinda, aqui, desse salpico da minha vida profissional está, precisamente, nessa contestação.
Como, por certo, é do conhecimento dos mais velhos e do natural
desconhecimento dos jovens Colegas que aqui vieram para o primeiro passo
no agro do estágio formador, o BANCO DE PORTUGAL, com toda a sua legitimidade, constituíra-se assistente e acusava,
todos os réus de, ainda que em diferentes graus de responsabilidade,
terem colaborado num acta de "roubo" de muitos, mesmo muitos, milhares
de contos.
E porque não quero tirar-lhe qualquer tempero ou mesmo esturro desse
tempo de Junho de 1969, vou transcrever, tal como foram escritas,
algumas passagens mais saborosas:
Artigo 9º
A incriminação dos co-réus, autores materiais do facto considerado delituoso, peca por exagero na medida em que contraria, em vários
zeros de direita, as próprias declarações oficiais da super-entidade
lesada.
É que,
Artigo 10º
Constando da acusação que o "roubo" (?) fora de um montante de mais de duas dezenas de milhar de contos, o BANCO DE PORTUGAL
declarou em comunicação que fez publicar na Imprensa, ler na Rádio e na
Televisão e afixar em todos os estabelecimentos bancários e de outros
géneros, que as notas subtraídas em 17 de Maio de 1967 das Caixas da sua
Agência da Figueira da Foz,
− "Não possuem curso legal e poder liberatório"
/ 113 /
o que, como se sabe, quer dizer, como ainda se diz nessa nota oficial do
Banco emissor em que somos forçados a acreditar, que eram
− "notas sem estar em circulação."
Ora,
Artigo 11º
Notas sem estar em circulação não são dinheiro e o seu valor
não passa daquele que corresponde ao trabalho material da sua preparação
fabril.
Via-se, assim, que o BANCO DE PORTUGAL havia declarado, oficialmente,
que esses papéis, em forma de notas, não tinham curso legal, isto, por
certo, para tranquilizar as gentes!
Mas, pelo sim e pelo não, importava alegar atenuantes, já que a
derimente verdadeira não era possível para basear condecoração por "serviços distintos".
E porque essas atenuantes tinham um certo sabor de irreverência, aqui me
têm a mostrá-las, já que a confidencialidade do arquivo estaria morta
mesmo que os ventos de Abril a não tivessem afastado "Juris et de Jure"
dos leixões da costa.
Assim:
Artigo 15º
São jovens estudantes ou recém-formados, amantes da sua Pátria, com receptividade para tudo quanto julguem contribuir para a sua
libertação e progresso.
Artigo 21º
O grande desejo de ver o fim da ditadura salazarista, ao tempo vigente, contribuiu de maneira decisiva para que os réus
contestantes, dada a sua inexperiência e natural generosidade, não
pesassem as responsabilidades do seu acto de tolerância, que não
passava, em seu entender, de modesta contribuição para um fim julgado
superior e patriótico.
/ 114 /
*
Foram saborosos episódios duma vida de "pedidor de justiças" e se não
fora o carácter desta nossa despretensiosa" charla" quase era de desejar
o consolo de ver esta velha toga, já esburacada pelos 81 buracos da
idade, honrada pela vossa curiosidade através de perguntas que houvessem
por bem fazer-lhe.
A elas seriam dadas as respostas possíveis e nelas, por certo,
assentaria a vossa convicção de que, apesar do vário do Homem e da
Doutrina, para já não falar no dos Acórdãos, existe sempre uma palavra
que fica a marcar a Verdade duma posição que vale a pena tomar para
criação do Estado de Direito com que sonhamos e que, nem por ser
diferente do dos outros, deixa de ser o da porta aberta para a Liberdade
de todos. |