Quando foi do noivado de ANTINEA, na ATLÂNTIDA, um velho Titã, prevendo
a catástrofe do desaparecimento daquele sonho de gigantes, atirou nove
pedras, como se fossem pétalas com o poder milagroso de, quando o grande
continente fosse coberto pelas águas salgadas do mar, poderem flutuar
como contas de um rosário, acima do abismo e juntarem, à sua volta,
verdes e azuis donde nasceria gente para cultivar as terras, pescar nas
águas e olhar, em carícia, as cores da terra ao mesmo tempo que as
misturava com as do céu e as das estrelas.
Foi numa dessas contas, bem
pequenina, por sinal, que se passou a "estória" que vou contar e consta de uma página das que, aos milhões, a
ilha foi escrevendo e recordando sem nunca mais parar de o fazer.
A "estória", esta, é dos nossos dias, destes dias em que há Juízes,
Advogados, Notários, Conservadores, Escrivães e Oficiais de Diligências
e gente, muita gente, capaz de ter interesses para defender, ambições
para conquistar para si o que é dos outros, e até Médicos de curar
maleitas e Padres de prometer ilhas grandes a pairar nos céus ou ameaçar
com infernos nas profundezas do vasto abismo.
E era vulgar, nessa tal ilha pequenina do rosário das nove, aparecer
gente de fora, do lado mais distante do mar, para dar ali os primeiros
passos na carreira que houvessem sonhado como aspiração de fé ou como
comodidade de subsistência.
Traziam todos, ao chegar, a ideia de partir, em regresso, que
chegava a ser obsessão.
E, sem atropelos nem esmagamentos, quase faziam mundo à
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parte, só aberto quando os julgamentos, no Tribunal; as escrituras, no
Cartório; os registos, nas Conservatórias; as injecções ou os
gargarejos, no hospital; mesmo, mais raramente, a confissão de pecados,
na igreja; ou, na época própria, o boda do "Divino Espírito Santo",
junto ao "Império", os faziam juntar à boa gente da terra que,
sem se sentir subalternizada, não deixava de os olhar como" senhores".
Havia um recanto, no Jardim da Vila, mais resguardado que os canteiros
onde vicejavam flores, que, por mercê de bancos mais confortáveis e do
abrigo de arbustos cuidadosamente aparados pelo jardineiro, era
considerado a Sala Verde e onde, nos minutos e horas disponíveis, que
eram muitos, os "senhores" se reuniam para contar os dias que os
separavam do de S. Vapor, que lhes trazia o correio e a esperança, sempre
em ebulição, de ser nesse ou no próximo, duas semanas depois, que fariam
o regresso à faixa continental onde tinham a família e, em muitos casos,
a noiva, como amarra para permanências mais duradouras.
E falavam de tudo, até que um dia, em maior abertura, o Juiz, que tinha
feito o Serviço Militar em Angola, contou" estórias", trágicas umas,
picantes, outras, como esta que dizia assim:
Estavam vários Cadetes de sangue na guelra, na Esplanada de uma
Pastelaria, tida por chique e bebendo, para além das anedotas, cervejas
e mais cervejas e até, aqueles que não estavam de serviço, "Wiskeys" e
"brandys" tudo para esquecer Nambuangongos e picadas na sua vida-morte.
Eis senão quando apareceu, a passar bem junto do buliçoso grupo, um bem
conhecido rapaz, homem, talvez, de nome Alex que se dava ao luxo de
trajar roupas esquisitas, bamboleando-se em trejeitos de "mulher perdida". Chegava a pintar de loiro o cabelo, envernizar
as unhas longas e, quando falava, usar o falsete como tom
de voz.
Nesse dia até vestia calças cor de rosa, bem ajustadas às pernas,
/ 95 / e, sobretudo às nádegas e rotundidades da zona onde as costas mudam
de nome.
E tentou meter conversa, com os trejeitos habituais.
Pouco dado àquelas práticas, logo o Luís que era o mais atrevido do grupo, se levantou e assentou uma valente nalgada no traseiro do
"maricas" que nem se perturbou para afivelar o seu melhor sorriso e
responder ao galanteio viril da manápula, com esta frase de antologia:
− Se não gostas... não estragues...
o que desconcertou, por completo, os garanhões que todos eles se
orgulhavam de ser...
Contada a "estória" logo o Juiz pediu aos companheiros que a guardassem
para si, pois num dos próximos dias iria julgar um pobre magala que
fizera a vida militar na ilha dos "rabos tortos", Terceira de seu nome
ilustre, bem marcado na História da Liberdade em Portugal; e era
acusado, o pobre, de ceder a rogos de camaradas de quartel, despidos de
fundos para frequentar a Rua Velha, ao tempo alfobre de delícias para
tão frenéticos apetites.
Assim fizeram os amigos, em respeito ao pedido do Meritíssimo, mas não
deixaram de, em peso, ir ao julgamento, para, com a sua presença,
influenciarem o Juiz no sentido de olhar com olhos absolutórios, o pobre
rapaz.
E assim foi.
Transplantado do alfobre viciado do quartel, pouco faltou para
o Juiz lhe passar passaporte com que pudesse ultrapassar as raias da Rua
Velha, ou mesmo e só as de qualquer cachopa das muitas e bonitas que por
ali havia à espera de um qualquer toque de alvorada.
Fizera justiça o Juiz e, nesse dia, o facto foi festejado com pompa,
circunstância e o maior recato, na Sala Verde do Jardim da Vila. |