Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 91 a 92.

O Chalado e o Juiz

Não sou testemunha presencial e tenho pena porque, à fé de quem sou e com o aval de juramento por Deus ou por minha honra e consciência, tanto me faz, a "estória" é verdadeira e desenrolou-se, não longe daqui e em comarca perdida nos confins da Gralheira ou da Freita.

Era um Juiz austero o que presidia àquele julgamento motivado por palavras, palavrinhas ou palavrões bolsados por um homem tido e havido por apoucado em certos momentos da sua vida social, mas por afinado, em outros, sobretudo aqueles que se prendiam com arrendamento das suas terras, venda de gados do seu curral ou mesmo e até as idas à missa nos domingos e dias santificados e ao cumprimento rigoroso das regras da confissão, ao menos uma vez cada ano, sempre que possível pela Quaresma.

Tinha um dia perdido a cabeça que quase não tinha e chamara nomes, alguns bem feios embora com tintas de verdade, ao Presidente da Junta de Freguesia, eleito em oposição àquele que gozava dos favores do Benvindo, assim se chamava o apoucado.

Ferido em sua alta honra e consideração, o autarca pôs em movimento as engrenagens da Justiça e ele viu-se sentado no mocho dos réus e com longo séquito de testemunhas presenciais do delito.

Mas não ligou grande importância aos preliminares e nem advogado arranjou e teria se um velho amigo de infância não tivesse ido falar ao conhecido causídico, Dr. Fagundes, da comarca vizinha, a quem contou ser pouco menos que mentecapto o pobre réu que, apesar do seu normal ar de campónio são, tinha menos momentos lúcidos que tolos.

E isso foi alegado, em defesa, na contestação apresentada, na altura ainda com a garantia azul do papel selado com seu selo em relevo, e na qual o douto causídico defendia o ponto de vista do réu / 92 / ter procedido sem intenção criminosa e sem culpa, por não ter consciência dos actos que praticava e, mais ainda, do significado das palavras julgadas ofensivas da honra e consideração do autarca e até, dada a sua gravidade, da própria moral pública.

O Juiz tentou esclarecer, após ouvir as testemunhas presenciais, o grau de intenção do agente que se lhe apresentava correctamente de corpo e palavras, dizendo não se lembrar de nada, nem sequer de se ter dirigido ao queixoso, isto apesar de em tudo ser contrariado pela unanimidade das testemunhas.

E, para isso, como que em descargo de consciência levando o réu à confissão, muleta sempre desejada pelos juízes, embora nem sempre procurada pelos Juízes, elevou a voz e em tom com laivos e volume de ameaça, perguntou:

− Se toda a gente viu, porque será que o réu se não lembra?

Foi talo tom de voz que o réu, tímido de seu natural ausente, quase pulou do mocho e disse, em idêntico tom e jeito:

− Olha! Olha este gajo está a mandar vir comigo!

Vá marrar com o comboio!

seguidamente, virando costas à beca, à toga e à capinha, preparou-se para sair da sala ante o espanto de todos, siderados como ficaram com o desplante.

E não tardou muito até que o Meritíssimo, voltando à sala, leu a sentença absolutória do réu, acrescentando por forma a só ser ouvido pelo da toga:

− Ele conseguiu, melhor que o douto advogado, provar que era tolinho!

 

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