Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 84 a 90.

Francisco Andrade Borges

Este, o Andrade Borges, seria pau para duas colheres uma vez que, sendo homem de beca com umas pregas de sotaina ganhas na Gregoriana, de Roma, também foi da aula do Campo de Santana, de 1930 a 1935 e, depois disso, sabendo manter laços de amizade e camaradagem nas sucessivas reuniões de curso, enquanto a vida deixou, e sempre com um certo bom humor e complacência para as partidas que lhe fazíamos e tantas foram.

Contrastava com o que se passava, aquilo que trouxera de Roma e certamente se destinava a fazê-lo Arcebispo ou coisa semelhante, mas via-se que era fora de tal invólucro que ele se sentia bem, embora sempre teimasse em aparentar coisa diferente do que, na realidade, era de seu natural.

Naquela enxurrada de latins que o Pinto Coelho nos mostrava nas paginas densas do Guilherme Moreira, o Borges era um barra, mas, lá bem à socapa, não deixava de se divertir com os hímenes complacentes e quejandas fraquezas ou fortalezas que o calhamaço do Asdrúbal de Aguiar nos descrevia, ao milímetro, na sua "Sexologia Forense" livro base da Medicina Legal do nosso tempo. / 85 /

Era vê-lo a tentar corar quando o Mestre, do outro lado do Campo de Santana, mesmo por detrás do venerado Sousa Martins, se referia a comprimentos e calibres de suspeita contabilidade.

Enfim, o Borges era o Borges e foi por aí acima até aos altos da Magistratura e nas comarcas por onde passou, algumas das quais de fazer tremer um D' Artagnan, como Arouca, Anadia e Santo Tirso, ganhou famas e proveitos de ferrabrás temido de todos já que a mão era dura e a pancada quase sempre certeira.

Nunca falhava às reuniões do Curso Jurídico de 1930-1935, que era o nosso, e que com pompa e circunstância se iam realizando de cinco em cinco anos, ou às restritas dos poucos condiscípulo do Norte, que sempre aproveitaram para elas o então ainda feriado do 31 de Janeiro, época propícia às lampreiadas em Entre-os-Rios e jesuítas de Santo Tirso ou verdes de Amarante.

E foi aí que, por duas vezes, o grupo formado pelo Júlio Vilela, que vinha da Régua; pelo Raul Ávila, que vinha de Viana; pelo Abreu Monteiro, o Firmino e o Lopes Dias, vindos do Porto; pelo Henrique Souto, de Estarreja e por mim, vindo da terra dos ovos moles e das enguias, resolveu julgar o Juiz que o Borges era, em dois julgamentos vingativos, abanando a sua autoridade só pretensamente salomónica, nem sempre com o recato que seria de desejar para defesa ou pelo menos salvaguarda do prestígio do becado.

Mas olho, agora, com pasmo e pena, para todos os nomes apontados e tremo ao ver que a vez espera por mim como último marujo desta nau de vida!

Mas.. contemos:

O Borges tinha condenado, em Arouca, com requintes de crueldade económica e quase sadismo prisional, um pobre azeiteiro a quem nem a Santa Mafalda, nem os pães de ló, castanhas, melindres e outros requintes da sua esplendorosa doçaria conventual valera, apesar de os ter servido "in magna quantitate", em oração e mesa de apetites, de que o Borges era devotado crente. / 86 /

A própria Senhora da Mó e a Serra da Freita, com todo o seu esplendor e poder, tinham ameaçado com raios e coriscos em protesto centra a decisão que correspondia à aplicação de leis de dupla face, que tanto condenavam os mixordeiros por juntar óleo de amendoim ao azeite, como, logo a seguir, os condenavam se o não fizessem, para que fosse maior a quantidade posta à venda para as frituras e outras comezainas da tradição.

Soubéramos da crueldade do Borges, já nem sei como, e, após a costumada lampreiada em Entre-os-Rios, numa bela tasca à vista do Douro e Tâmega, a lembrar Torga e Pascoaes, pedimos ao amigo e companheiro nos fosse apontar, na ponte que unia, por cima do rio, os distritos do Porto e de Aveiro a que Arouca pertencia e onde, por isso mesmo, começava a jurisdição do Borges.

Imponente, como sempre, apesar da baixa estatura e da barriguinha que começava a arredondar, agora reforçada pela arrozada, o Borges avançou, a passos cadenciados, senhor de si e da sua vara e exactamente a meio da ponte, medindo bem as distâncias, disse, solene:

− É aqui! É aqui que começa a Comarca de que sou Juiz, por graça de Deus e do Ministro da Justiça.

Olhámos a ponte, da margem esquerda, que era a da jurisdição do Borges, até à margem direita onde oficiáramos à lampreia, e, porque não vimos ninguém, abrimos as respectivas braguilhas, retirámos os "Instrumentos mictantes" e com solenidade e perfeita liquidez, marcámos a nossa solidariedade com o azeiteiro de Arouca.

O Borges olhava ansioso, para um e outro lado, e quase gritava clamando mais com os olhos do medo que com a voz, já um tanto colorida pelo verde:

− Isto é uma vergonha se nos virem, pois todos conhecem o Juiz.

Cuidado! Cuidado! Cuidado! / 87 /

Não me f... como eu fiz ao azeiteiro!

Cumpridas as tarefas de documentação fotográfica, com destino ao Tombo da saudade, "ad perpetuam rei memoriam", lá nos retirámos para Norte, gargalhando a bom gargalhar com a vingança do azeiteiro e agora já com a descontracção do Colega, abandonada que foi a área da respectiva jurisdição.

Uns anos depois, não sei mesmo se no seguinte e durante a nova lampreiada duriense, salvo erro no Torrão, o Borges, então Juiz em Santo Tirso, ali ao pé, consciente de que não tinha lá cometido "crime" idêntico ao do azeiteiro de Arouca, convenceu-nos a ir comer uns jesuítas (salvo seja...) e a visitar o seu Tribunal, na altura muito badalado por causa de uma escandaleira qualquer que se prendia com gente grada da poderosa indústria de fiação da zona.

E fomos saborear a guloseima estaladiça, uma das muitas provas dos milagres, directa ou indirectamente presos a realidades gostosas como barrigas de freira, pingos de tocha, papos de anjo e toucinhos do céu, para, de seguida, subirmos à sala de audiências onde, após nos certificarmos de que não havia "infiéis" no edifício, que é como quem diz, moiros na costa, resolvemos julgar o Juiz da Comarca, obrigando o pobre do antigo discípulo da Gregoriana de Roma, a sentar-se no banco dos réus.

O Tribunal constitui-se a rigor com o Júlio Vitela a presidir, o Abreu Monteiro e o Raul Ávila a adjuntos, o Lopes Dias a escrivão, e Henrique Souto a acusador público acumulando com as funções de Oficial de Diligências (!!!) e, por muito favor e condescendência, fui eu encarregado da defesa do réu com a estrita obrigação de a fazer em verso, já que a sentença também o seria nessa especialidade literária.

O nosso Borges estava pálido, uma verdadeira máscara de cera, e os olhos piscos não se cansavam de sondar horizontes com receio / 88 / de que aparecesse algum meirinho de ofício perante o qual tivesse de dar uma explicação à farsada.

Tudo correu de harmonia com a nossa lei de boa e sã camaradagem e depois do Vilela ter lido, em verso, como prometera e era do regulamento, os termos da acusação, foi-me dada a palavra para a defesa que fiz, como pude, em rimas de pé quebrado e obedecendo ao despacho preliminar que não permitia que a defesa fosse outra coisa que não a acusação com realce para todos os pecados e defeitos do pobre réu e, tanto quanto possível, ilustrada com referências à sua vida perversa e não pregressa.

Não sei se a acta se encontra arquivada na Torre dos Tombos da Boa-Disposição e da Boa-Memória, mas quase sei de cor alguns dos versos dos dois poetas de água chilra que, na altura e de improviso, os produziram, ante a impaciência e temor do ex-gregoriano e mais recente diácono de Santana.

Mal o pobre do Borges, enfiado como menino a roubar biscoitos da lata da mamã, se sentou no banco dos réus, logo o Vil ela, em voz cava e sorriso ausente, como convinha, lhe dá conhecimento da acusação e todos nós sentimos que o réu por crime de Arouca, a ser julgado em Santo Tirso, quase tomou a coisa a sério, quem sabe se sentindo, lá bem no fundo, umas pitadas de remorso pelo que fez ao azeiteiro e a outros que tiveram a desdita de lhe passar pela beca impiedosa.

 

Este Borges, que é Juiz,

Vai mesmo aqui ser julgado.

O azeiteiro assim quis,

Pr' a que fosse condenado.

A inspecção que fizemos

Pela Comarca de Arouca,

Deu a certeza que temos,

De que a Justiça foi pouca.

/ 89 /

Sente-se ali, reverente,

Com respeito e contenção,

Não ouse ser insolente,

Se não quer ir pr'a prisão.


Ao ouvir estes preliminares ameaçadores, logo o bom do Gregoriano, com vénia e demais ademanes medrosos, colocou no lugar próprio o símbolo do seu medo.

Ao ver toda aquela quase penosa postura do Colega caído em desgraça, o becado do Vilela deu-me a palavra como patrono de defesa em reforço da acusação, para o que só dispunha de quatro simples quadras, a quem seriam forneci das próteses adequadas ao quebrado dos pés.

E foi, impante do sagrado da missão, que comecei:

Senhor Juiz, este réu
Procedeu com malvadez,
Pois nunca disse ser seu
O mal que em Arouca fez.

O pobre do justiçado
Era um santo cidadão,
Agiu por bem, sem pecado,
Às ordens do sacristão.

Quem foi réu, foi o Juiz
Que sem dó nem piedade,
Fez todo o mal, de raiz,
Privando-o de liberdade.

/ 90 /

Por isso, em sua defesa,
Peço a Vossa Excelência,
Que o condene com crueza,
Sem pitada de clemência.


E foi então que o Júlio Vilela com o assentimento discreto dos adjuntos e sem ter necessidade de reunir formalmente o colectivo, logo declarou, em sentença inapelável:

Oficial, leve e Réu,
Entregue-o a Belzebú,
Aqui quem manda, sou eu,
Da cabeça até ao cu.

Se ele não tiver lugar,
Na barca de Mestre Gil,
Não volte atrás fabricar,
Mais justiças de funil.

Esta sentença assim fica,
Não tem recurso, é final,
Um Juiz que prevarica,
Faz um pecado mortal!

Os atropelos que fez,
Ao pobre de azeiteiro,
Mostram bem o seu jaez
E as falhas do seu" pandeiro" .


A coisa correu de tal forma e com tão elevado grau de contundência anti-jurisdicional que não era difícil adivinhar, na palidez do amigo, laivos de receio quando fosse prestar contas, após obtenção de passagem na tal barca de Mestre Gil, para a qual de nada serviria o eventual "nihil obstat" colhido na Gregoriana.

 

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