Este, o Andrade Borges, seria pau para duas colheres uma vez que, sendo
homem de beca com umas pregas de sotaina ganhas na Gregoriana, de Roma,
também foi da aula do Campo de Santana, de 1930 a 1935 e, depois disso,
sabendo manter laços de amizade e camaradagem nas sucessivas reuniões de
curso, enquanto a vida deixou, e sempre com um certo bom humor e
complacência para as partidas que lhe fazíamos e tantas foram.
Contrastava com o que se passava, aquilo que trouxera de Roma e
certamente se destinava a fazê-lo Arcebispo ou coisa semelhante, mas
via-se que era fora de tal invólucro que ele se sentia bem, embora
sempre teimasse em aparentar coisa diferente do que, na realidade, era
de seu natural.
Naquela enxurrada de latins que o Pinto Coelho nos mostrava nas paginas
densas do Guilherme Moreira, o Borges era um barra, mas, lá bem à
socapa, não deixava de se divertir com os hímenes complacentes e
quejandas fraquezas ou fortalezas que o calhamaço do Asdrúbal de Aguiar
nos descrevia, ao milímetro, na sua "Sexologia Forense" livro base da
Medicina Legal do nosso tempo.
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Era vê-lo a tentar corar quando o Mestre, do outro lado do Campo de
Santana, mesmo por detrás do venerado Sousa Martins, se referia a
comprimentos e calibres de suspeita contabilidade.
Enfim, o Borges era o Borges e foi por aí acima até aos altos da
Magistratura e nas comarcas por onde passou, algumas das quais de fazer
tremer um D' Artagnan, como Arouca, Anadia e Santo Tirso, ganhou famas e
proveitos de ferrabrás temido de todos já que a mão era dura e a pancada
quase sempre certeira.
Nunca falhava às reuniões do Curso Jurídico de 1930-1935, que era o
nosso, e que com pompa e circunstância se iam realizando de cinco em
cinco anos, ou às restritas dos poucos condiscípulo do Norte, que sempre
aproveitaram para elas o então ainda feriado do 31 de Janeiro, época
propícia às lampreiadas em Entre-os-Rios e jesuítas de Santo Tirso ou
verdes de Amarante.
E foi aí que, por duas vezes, o grupo formado pelo
Júlio Vilela, que
vinha da Régua; pelo
Raul Ávila, que vinha de Viana; pelo
Abreu
Monteiro, o
Firmino e o
Lopes Dias, vindos do Porto; pelo
Henrique Souto, de Estarreja e por mim, vindo da terra dos ovos moles e das enguias,
resolveu julgar o Juiz que o Borges era, em dois julgamentos vingativos,
abanando a sua autoridade só pretensamente salomónica, nem sempre com o
recato que seria de desejar para defesa ou pelo menos salvaguarda do
prestígio do becado.
Mas olho, agora, com pasmo e pena, para todos os nomes apontados e tremo
ao ver que a vez espera por mim como último marujo desta nau de vida!
Mas.. contemos:
O Borges tinha condenado, em Arouca, com requintes de crueldade económica e quase sadismo prisional, um pobre azeiteiro a quem
nem a Santa Mafalda, nem os pães de ló, castanhas, melindres e outros
requintes da sua esplendorosa doçaria conventual valera, apesar de os
ter servido "in magna quantitate", em oração e mesa de apetites, de que
o Borges era devotado crente.
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A própria Senhora da Mó e a Serra da Freita, com todo o seu esplendor e
poder, tinham ameaçado com raios e coriscos em protesto centra a decisão
que correspondia à aplicação de leis de dupla face, que tanto condenavam
os mixordeiros por juntar óleo de amendoim ao azeite, como, logo a
seguir, os condenavam se o não fizessem, para que fosse maior a
quantidade posta à venda para as frituras e outras comezainas da
tradição.
Soubéramos da crueldade do Borges, já nem sei como, e, após a costumada
lampreiada em Entre-os-Rios, numa bela tasca à vista do Douro e Tâmega,
a lembrar Torga e Pascoaes, pedimos ao amigo e companheiro nos fosse
apontar, na ponte que unia, por cima do rio, os distritos do Porto e de
Aveiro a que Arouca pertencia e onde, por isso mesmo, começava a
jurisdição do Borges.
Imponente, como sempre, apesar da baixa estatura e da barriguinha que
começava a arredondar, agora reforçada pela arrozada, o Borges avançou,
a passos cadenciados, senhor de si e da sua vara e exactamente a meio da
ponte, medindo bem as distâncias, disse, solene:
− É aqui! É aqui que começa a Comarca de que sou Juiz, por graça de Deus
e do Ministro da Justiça.
Olhámos a ponte, da margem esquerda, que era a da jurisdição do Borges,
até à margem direita onde oficiáramos à lampreia, e, porque não vimos
ninguém, abrimos as respectivas braguilhas, retirámos os "Instrumentos
mictantes" e com solenidade e perfeita
liquidez, marcámos a nossa solidariedade com o azeiteiro de Arouca.
O Borges olhava ansioso, para um e outro lado, e quase gritava clamando
mais com os olhos do medo que com a voz, já um tanto colorida pelo
verde:
− Isto é uma vergonha se nos virem, pois todos conhecem o
Juiz.
Cuidado! Cuidado! Cuidado!
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Não me f... como eu fiz ao azeiteiro!
Cumpridas as tarefas de documentação fotográfica, com destino ao Tombo da saudade, "ad perpetuam rei memoriam", lá nos retirámos
para Norte, gargalhando a bom gargalhar com a vingança do azeiteiro e
agora já com a descontracção do Colega, abandonada que foi a área da
respectiva jurisdição.
Uns anos depois, não sei mesmo se no seguinte e durante a nova
lampreiada duriense, salvo erro no Torrão, o Borges, então Juiz em Santo
Tirso, ali ao pé, consciente de que não tinha lá cometido "crime"
idêntico ao do azeiteiro de Arouca, convenceu-nos a ir comer uns
jesuítas (salvo seja...) e a visitar o seu Tribunal, na altura muito
badalado por causa de uma escandaleira qualquer que se prendia com gente
grada da poderosa indústria de fiação da zona.
E fomos saborear a guloseima estaladiça, uma das muitas provas dos milagres, directa ou indirectamente presos a realidades gostosas
como barrigas de freira, pingos de tocha, papos de anjo e toucinhos do
céu, para, de seguida, subirmos à sala de audiências onde, após nos
certificarmos de que não havia "infiéis" no edifício, que é como quem
diz, moiros na costa, resolvemos julgar o Juiz da Comarca, obrigando o
pobre do antigo discípulo da Gregoriana de Roma, a sentar-se no banco
dos réus.
O Tribunal constitui-se a rigor com o
Júlio Vitela a presidir, o
Abreu
Monteiro e o
Raul Ávila a adjuntos, o
Lopes Dias a escrivão, e
Henrique
Souto a acusador público acumulando com as funções
de Oficial de Diligências (!!!) e, por muito favor e condescendência,
fui eu encarregado da defesa do réu com a estrita obrigação de a fazer
em verso, já que a sentença também o seria nessa especialidade
literária.
O nosso Borges estava pálido, uma verdadeira máscara de cera, e os olhos
piscos não se cansavam de sondar horizontes com receio
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de que aparecesse algum meirinho de ofício perante o qual tivesse de dar
uma explicação à farsada.
Tudo correu de harmonia com a nossa lei de boa e sã camaradagem e depois
do Vilela ter lido, em verso, como prometera e era do regulamento, os
termos da acusação, foi-me dada a palavra para a defesa que fiz, como
pude, em rimas de pé quebrado e obedecendo ao despacho preliminar que
não permitia que a defesa fosse outra coisa que não a acusação com
realce para todos os pecados e defeitos do pobre réu e, tanto quanto
possível, ilustrada com referências à sua vida perversa e não pregressa.
Não sei se a acta se encontra arquivada na Torre dos Tombos da
Boa-Disposição e da Boa-Memória, mas quase sei de cor alguns dos versos
dos dois poetas de água chilra que, na altura e de improviso, os produziram, ante a impaciência e temor do ex-gregoriano e
mais recente diácono de Santana.
Mal o pobre do Borges, enfiado como menino a roubar biscoitos da lata da
mamã, se sentou no banco dos réus, logo o Vil ela, em voz cava e sorriso
ausente, como convinha, lhe dá conhecimento da acusação e todos nós
sentimos que o réu por crime de Arouca, a ser julgado em Santo Tirso,
quase tomou a coisa a sério, quem sabe se sentindo, lá bem no fundo, umas pitadas de remorso pelo que fez ao
azeiteiro e a outros que tiveram a desdita de lhe passar pela beca
impiedosa.
Este Borges, que é Juiz,
Vai mesmo aqui ser julgado.
O azeiteiro assim
quis,
Pr' a que fosse condenado.
A inspecção que fizemos
Pela Comarca de
Arouca,
Deu a certeza que temos,
De que a Justiça foi pouca.
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Sente-se ali, reverente,
Com respeito e contenção,
Não ouse ser insolente,
Se não quer ir pr'a prisão.
Ao ouvir estes preliminares ameaçadores, logo o bom do
Gregoriano, com vénia e demais ademanes medrosos, colocou no lugar
próprio o símbolo do seu medo.
Ao ver toda aquela quase penosa postura do Colega caído em desgraça, o becado do Vilela deu-me a palavra como patrono de defesa em reforço da
acusação, para o que só dispunha de quatro simples quadras, a quem
seriam forneci das próteses adequadas ao quebrado dos pés.
E foi, impante do sagrado da missão, que comecei:
Senhor Juiz, este réu
Procedeu com malvadez,
Pois nunca disse ser seu
O mal que em Arouca fez.
O pobre do justiçado
Era um santo cidadão,
Agiu por bem, sem pecado,
Às ordens do sacristão.
Quem foi réu, foi o Juiz
Que sem dó nem piedade,
Fez todo o mal, de raiz,
Privando-o de liberdade.
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Por isso, em sua defesa,
Peço a Vossa Excelência,
Que o condene com crueza,
Sem pitada de clemência.
E foi então que o Júlio Vilela com o assentimento discreto dos
adjuntos e sem ter necessidade de reunir formalmente o colectivo, logo
declarou, em sentença inapelável:
Oficial, leve e Réu,
Entregue-o a Belzebú,
Aqui quem manda, sou eu,
Da cabeça até ao cu.
Se ele não tiver lugar,
Na barca de Mestre Gil,
Não volte atrás fabricar,
Mais justiças de funil.
Esta sentença assim fica,
Não tem recurso, é final,
Um Juiz que prevarica,
Faz um pecado mortal!
Os atropelos que fez,
Ao pobre de azeiteiro,
Mostram bem o seu jaez
E as falhas do seu" pandeiro" .
A coisa correu de tal forma e com tão elevado grau de
contundência anti-jurisdicional que não era difícil adivinhar, na
palidez do amigo, laivos de receio quando fosse prestar contas, após
obtenção de passagem na tal barca de Mestre Gil, para a qual de nada
serviria o eventual "nihil obstat" colhido na Gregoriana. |