Filho de Juiz, "Ministério Público" até à medula, amigo desde o Pai, com
passagem pelos 17 anos quando com o
Manuel Joaquim Pires dos Santos e o
Manuel José Archer Homem de Mello, ligados por uma camaradagem de terra
natal e ténues afinidades ideológicas, em moda ao tempo, me iam procurar
ao escritório do Largo da Apresentação, em Aveiro, com o intuito, quase
exclusivo, de encontrar pretextos para atrapalhar o Professor de Moral,
um pobre Padre respeitável mas pouco dotado de asas para altos ou mesmo
médios voos e, por isso, em desproporção com o descaramento e
irreverência de tais alunos.
Hesitei em o trazer para aqui, dada a sua beca, agora aureolada por
alamares europeus, mas, confiante na velha amizade, ouso fazê-lo, certo
de que o Zé, o Zé Vidal, não tomará por nódoas os episódios que dele vou
contar e me chegaram aos ouvidos da memória por mercê de relatos fiéis
de testemunhas sem perigo de impugnação ou contradita.
Mas a dúvida permanecia quanto ao patamar ou degrau onde
colocá-los, já que metem beca, toga e paixões com recantos comuns.
Misturado com o Zé surgia neles o
Jaime Gralheiro, a caça e o Teatro,
ligados pelos liames do Direito, no fórum dum tribunal e nas dúvidas
duma vistoria serrana.
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Mas é tempo de contar as "estórias" antes que de vez arrefeçam:
No deambular habitual dos Magistrados, o Zé Vidal fora parar a Terras de
Lafões, não demasiado afastadas do Pedaçães natal, e nelas S. Pedro do
Sul foi a comarca onde a vara tradicional da Justiça lhe foi entregue a
par de um desconfortável tribunal onde, nas épocas próprias, o frio
polar não era compensado pelos calores subterrâneos daquelas águas que,
um pouco mais abaixo e segundo a lenda, aliviaram o primeiro dos muitos
afonsos da nossa História.
O Zé sabia disso e levou o cão, seu confidente e companheiro
das andanças venatórias de que era apaixonado. E treinou-o para que,
durante os julgamentos, lhe servisse de "couvre-pieds" como dantes se
dizia, e assegurasse o cumprimento da tradição proverbial e conselho de,
para bem decidir, ser preciso ter "os pés quentes e a cabeça fria".
E assim fazia o bom do Zé, só o esquecendo quando a "redondinha" lhe
trazia a nostalgia dos tempos de júnior do Beira-Mar, onde brilhou ao
lado do Peres, do Sarrazola, do Massadas e tantos outros que marcaram
uma das três gerações de ouro do futebol aveirense. Então, ia até lá
acima e esquecendo a beca do ofício − o que, nele, não era habitual... −
não desdenhava dar uns conselhos, sempre que possível exemplificados,
acerca da melhor maneira de marcar cantos, livres, adversários e golos.
Mas é para um episódio, em plena sala do Tribunal, que vou buscar o
Ilustre Homem de Toga e de Teatro que o
Jaime Gralheiro era e é, e cujo
talento, embora não tenha sido malbaratado pelo seu I apego à terra do
seu viver, não teve a repercussão que merecia, sobretudo no campo do
Teatro, para o qual tudo leva a crer, o Destino o fadara.
E era tão grande essa força que dificilmente lhe conseguia impor os tabus da conveniência ou do "parece mal".
Ele estava na bancada das togas e o Zé Vidal na das becas.
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Era um caso de acidente de viação, creio que de moto e, para bem
exemplificar o trajecto seguido pelo patrocinado, o Jaime
Gralheiro levanta-se da bancada e aproveitando todo o exíguo espaço da
teia, acompanha com os sons adequados o ziguezaguear do veículo causador
do acidente, ali simbolizado pela figura esguia, semicurvada do
Gralheiro, de braços abertos a segurar o guiador, sem aparente domínio
sobre os travões.
As curvas e acelerações foram várias e tantas que o Zé Vidal, lá do alto
do seu estrado, ainda que bem seguro de não ser atropelado, chamou o da
capinha e ordenou terminante, sem recurso possível:
− Oficial. Senhor Oficial, abra já a porta senão o Doutor Gralheiro
estampa-se!
Ainda em outra ocasião e com os mesmos intérpretes mas com a ajuda do
cão, se passou outra "estória", esta com o palco dilatado por horizontes
que iam do S. Macário à Gralheira, com sombras de Talhadas e Caramulo.
Era uma questão de estremas, das tais que não raro trazem consigo
acórdãos de cabeças partidas ou outro tipo de arestas menos
contundentes.
O problema estava na existência ou não existência de um marco e na sua
localização com a fé de duas pedritas laterais a que o povo chama
testemunhas.
Levara-se enxada e alvião para ajudar na busca, mas não havia maneira de
encontrar o tal marco no local apontado pelo cliente do Jaime Gralheiro.
O Zé Vidal, o Juiz, embora sentindo-se bem naquele ambiente lavado de
ares serranos e perfumado pelas maias e urzes da vizinhança, estava em
vias de desistir da diligência de busca do marco e testemunhas, quando o
Gralheiro, olho atento na encosta, grita eufórico e apontando para o Cão
que, indiferente a Códigos, doutrinas e jurisprudências, alçara a perna
e despejava os sobejos líquidos em determinado lugar.
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− É ali! É ali, Senhor Juiz. O Cão descobriu o marco!
E era. Com a descoberta, a colaboração do canídeo e a verdade da pedra e suas companheiras de fé, o Gralheiro ganhara a acção para
o seu cliente serrano.
Agora estou a ver o que todo este desfilar de memória sorridente pode
causar ao sisudo Magistrado europeu mas, para mim, tão só o rapazelho
dos Arcos, a caminho do Liceu de Aveiro, ou o filho mais novo do "Juiz
da Índia", de Pedaçães. |