Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 81 a 84.

José de Almeida Marques Vidal

Filho de Juiz, "Ministério Público" até à medula, amigo desde o Pai, com passagem pelos 17 anos quando com o Manuel Joaquim Pires dos Santos e o Manuel José Archer Homem de Mello, ligados por uma camaradagem de terra natal e ténues afinidades ideológicas, em moda ao tempo, me iam procurar ao escritório do Largo da Apresentação, em Aveiro, com o intuito, quase exclusivo, de encontrar pretextos para atrapalhar o Professor de Moral, um pobre Padre respeitável mas pouco dotado de asas para altos ou mesmo médios voos e, por isso, em desproporção com o descaramento e irreverência de tais alunos.

Hesitei em o trazer para aqui, dada a sua beca, agora aureolada por alamares europeus, mas, confiante na velha amizade, ouso fazê-lo, certo de que o Zé, o Zé Vidal, não tomará por nódoas os episódios que dele vou contar e me chegaram aos ouvidos da memória por mercê de relatos fiéis de testemunhas sem perigo de impugnação ou contradita.

Mas a dúvida permanecia quanto ao patamar ou degrau onde colocá-los, já que metem beca, toga e paixões com recantos comuns.

Misturado com o Zé surgia neles o Jaime Gralheiro, a caça e o Teatro, ligados pelos liames do Direito, no fórum dum tribunal e nas dúvidas duma vistoria serrana. / 82 /

Mas é tempo de contar as "estórias" antes que de vez arrefeçam:

No deambular habitual dos Magistrados, o Zé Vidal fora parar a Terras de Lafões, não demasiado afastadas do Pedaçães natal, e nelas S. Pedro do Sul foi a comarca onde a vara tradicional da Justiça lhe foi entregue a par de um desconfortável tribunal onde, nas épocas próprias, o frio polar não era compensado pelos calores subterrâneos daquelas águas que, um pouco mais abaixo e segundo a lenda, aliviaram o primeiro dos muitos afonsos da nossa História.

O Zé sabia disso e levou o cão, seu confidente e companheiro das andanças venatórias de que era apaixonado. E treinou-o para que, durante os julgamentos, lhe servisse de "couvre-pieds" como dantes se dizia, e assegurasse o cumprimento da tradição proverbial e conselho de, para bem decidir, ser preciso ter "os pés quentes e a cabeça fria".

E assim fazia o bom do Zé, só o esquecendo quando a "redondinha" lhe trazia a nostalgia dos tempos de júnior do Beira-Mar, onde brilhou ao lado do Peres, do Sarrazola, do Massadas e tantos outros que marcaram uma das três gerações de ouro do futebol aveirense. Então, ia até lá acima e esquecendo a beca do ofício − o que, nele, não era habitual... − não desdenhava dar uns conselhos, sempre que possível exemplificados, acerca da melhor maneira de marcar cantos, livres, adversários e golos.

Mas é para um episódio, em plena sala do Tribunal, que vou buscar o Ilustre Homem de Toga e de Teatro que o Jaime Gralheiro era e é, e cujo talento, embora não tenha sido malbaratado pelo seu I apego à terra do seu viver, não teve a repercussão que merecia, sobretudo no campo do Teatro, para o qual tudo leva a crer, o Destino o fadara.

E era tão grande essa força que dificilmente lhe conseguia impor os tabus da conveniência ou do "parece mal".

Ele estava na bancada das togas e o Zé Vidal na das becas. / 83 /

Era um caso de acidente de viação, creio que de moto e, para bem exemplificar o trajecto seguido pelo patrocinado, o Jaime Gralheiro levanta-se da bancada e aproveitando todo o exíguo espaço da teia, acompanha com os sons adequados o ziguezaguear do veículo causador do acidente, ali simbolizado pela figura esguia, semicurvada do Gralheiro, de braços abertos a segurar o guiador, sem aparente domínio sobre os travões.

As curvas e acelerações foram várias e tantas que o Zé Vidal, lá do alto do seu estrado, ainda que bem seguro de não ser atropelado, chamou o da capinha e ordenou terminante, sem recurso possível:

− Oficial. Senhor Oficial, abra já a porta senão o Doutor Gralheiro estampa-se!

Ainda em outra ocasião e com os mesmos intérpretes mas com a ajuda do cão, se passou outra "estória", esta com o palco dilatado por horizontes que iam do S. Macário à Gralheira, com sombras de Talhadas e Caramulo.

Era uma questão de estremas, das tais que não raro trazem consigo acórdãos de cabeças partidas ou outro tipo de arestas menos contundentes.

O problema estava na existência ou não existência de um marco e na sua localização com a fé de duas pedritas laterais a que o povo chama testemunhas.

Levara-se enxada e alvião para ajudar na busca, mas não havia maneira de encontrar o tal marco no local apontado pelo cliente do Jaime Gralheiro.

O Zé Vidal, o Juiz, embora sentindo-se bem naquele ambiente lavado de ares serranos e perfumado pelas maias e urzes da vizinhança, estava em vias de desistir da diligência de busca do marco e testemunhas, quando o Gralheiro, olho atento na encosta, grita eufórico e apontando para o Cão que, indiferente a Códigos, doutrinas e jurisprudências, alçara a perna e despejava os sobejos líquidos em determinado lugar. / 84 /

− É ali! É ali, Senhor Juiz. O Cão descobriu o marco!

E era. Com a descoberta, a colaboração do canídeo e a verdade da pedra e suas companheiras de fé, o Gralheiro ganhara a acção para o seu cliente serrano.

Agora estou a ver o que todo este desfilar de memória sorridente pode causar ao sisudo Magistrado europeu mas, para mim, tão só o rapazelho dos Arcos, a caminho do Liceu de Aveiro, ou o filho mais novo do "Juiz da Índia", de Pedaçães.

 

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