Quando este Juiz veio de Viana para Aveiro destinado ao 2º Juízo,
olhando um pouco para os "exemplares" que tomaram, antes, conta da
respectiva vara, temi pela vara, temi pelos colegas, temi pelos
clientes, e, porque não dizê-lo, temi por mim, habituado que estava a
sofrer, nas pregas da toga, a má qualidade de alguns dos servidores que
por lá passaram, ou, pior que isso, lá estacionaram com evidente
poluição ambiente.
Tinha sido uma correnteza de "desgraças", um verdadeiro chorrilho de
"negações" para a sempre difícil missão de julgar semelhantes, mormente
quando como tal não eram considerados os réus, os autores, os
cabeças-de-casal, etc. etc. etc. que, por mercê do aleatório da
distribuição lá iam parar − sim, parar... − no duplo mas absoluto
sentido de encalhar e ficar a gozar o "pesadelo" dos justos.
Mas houve alguma coisa que nos alertou, a mim e aos outros colegas,
acerca deste Magistrado que no Minha dançara e fizera dançar o vira, por
forma a merecer do querido e saudoso
Ribeiro da Silva a expressão
tranquilizadora de que nós estávamos cheios de sorte pois iríamos ter um
Juiz, no duplo sentido de conhecedor das Leis e dos homens, o que
bastaria para que, sempre que a pedíssemos, iríamos ter justiça, sem
requintes de hermetismo formal que pudessem prejudicar ou mesmo e só
beliscar o lado humano da sentença
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que, feita pelo homem e ao homem dirigida, visava obter um equilíbrio
necessário à cooperação, respeito e convivência social, em relação a uma
ordem estabelecida e fixada por mercê de circunstâncias de força
eleitoral ou de outro tipo que tivesse logrado permanência
consolidadora.
E não tardou que a previsão do Ribeiro da Silva se tornasse realidade
humana com a confraternização pessoal de Magistrados, Advogados e
Oficiais de Justiça, de Aveiro e de Viana que, como não podia deixar de
ser, meteu futebol, petiscos, abraços e criação de amizades e que teve
reciprocidade já que não foi só à sombra magnífica de Santa Luzia, da
Serra de Arga e do Lima de esquecimento lendário, mas também sob as
bênçãos da Joana Princesa, dos longes do Caramulo e Buçaco, e das menos
lendárias mas igualmente belas águas desta Ria por onde navegámos um
pouco, terminadas que foram as fadigas redondas do "Mário Duarte", para
temperar com o salgado dos moliços os eflúvios perigosos dos bairradas a
esmo servidos no repasto.
Esta camaradagem, pela sua abrangência total dos servidores da justiça,
logo nos abriu as cortinas do conhecimento deste Magistrado de eleição
que, sem nunca esquecer, às vezes, mesmo exagerar, o rigor, nunca
deixava de considerar-se um homem ao serviço dos homens, fosse na
função, fosse na simples presença.
O "Palácio", café, mesmo ao lado do Palácio da Justiça, foi muitas vezes
palco deste homem-juiz e juiz-homem e aqueles "colectivos" em volta
da bica tradicional, nunca deixaram de, em liberdade, ser formados pelos
homens da beca como o
Valverde
e o
Afonso de Andrade, bem misturados com
os da toga como o
Candal, o
Álvaro Neves, o
Sardo e tantos outros entre
os quais eu tinha a honra de contar-me.
Mas foi sempre a presença do Homem que me impressionou neste Juiz, mesmo
ou até principalmente, através daquelas lágrimas
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furtivas que não conseguiu esconder perante o atentado iníquo de que
fora vítima a Mena, sua filha, ao tempo escolar de leis na Coimbra
Doutora e hoje gente distinta de toga, em Lisboa, para onde Abril lhe
permitiu ir.
Quando, em dada altura, Abel Delgado assumiu as funções de Corregedor de
Círculo Judicial de Aveiro, todos ficamos satisfeitos e confiados, até
porque a excepção que ele fora, fugidiamente embora, no tal 2º Juízo,
viria a confirmar a regra "estórica" que o precedera.
E não me coibi de um dia, ao Café, e alto e bom som, ainda que
soezmente, ter largado esta "boutade" que de todos mereceu o véu de
sincera concordância:
− Como poderia um "gajo" destes continuar no 2º Juízo, de tão tristes
tradições?
E é por isso que não quero deixar de apontar, aqui, neste
lavadoiro de
roupa limpa só sujeita à barrela do sol da verdade, um episódio vivido
numa acção ordinária para separação de pessoas e
bens e que percorreu todos os degraus da escada judiciária até no
Supremo atingir a consagração de "caso Julgado" .
Nela houve um pouco do tudo: petição, contestação e dedução de pedido
reconvencional, réplica, tréplica e quadrúplica, incidentes de permeio,
recursos para a Relação o para o Supremo, e depois, Regulação do Poder
Paternal e Inventário facultativo para partilha de bens e, finalmente,
pedido de alimentos.
Pelo meio e como tempero divino mas pecaminoso, até havia um Padre, um
simpático galã de boa figura e aprimorados modos, a quem foi atribuído,
com grande escândalo local, o papel de causador de desavenças conjugais
e irredutibilidade na continuação da vida comum.
O julgamento quase foi épico e a resposta aos quesitos foi socialmente
perfeita e, de certo modo, visando dar à autora e ao réu o que
pretendiam sem rastos que prejudicassem a sua reputação social, um tanto
abalada.
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O acórdão, redigido pelo Abel Delgado, Corregedor Presidente, é uma
sábia peça jurídica e humana que cortando pelo meio as razões de ambos
os lados, a ambos deu razão aproveitando na metade das verdades
alegadas, o suficiente para fazer justiça.
Através da minha longa vida de homem de toga, nunca tive a felicidade de
encontrar, como consagração, coisa semelhante à que pude ver no Acórdão
do S.T.J. de 7 de Janeiro de 1972, nos autos em revista, assinado pelo
Relator
Ludovico da Costa e pelos adjuntos:
Oliveira Carvalho e
Adriano
de Campos Carvalho donde constam estas preciosas linhas de que extraio
um pouco habitual advérbio, primorosamente, que coroa, inteiro, uma sem
dúvida notável sentença de primeira instância:
"Pois, como primorosamente se pondera na sentença, quando o marido se
insurge contra as visitas do Padre... o "cântaro" transborda e a
autora revela-se.
E então aproveita-se de todos os meios que se lhe deparam, para amarrar
ao pelourinho da opinião pública que ela queria e quer a seu favor.
Interessa-lhe que estejam ao lado dela e não ao lado dele, interessa-lhe
arranjar elementos para que ela seja considerada a vítima."
Esta ilustração que, para melhor ser apreciado o adverbio com a bênção
do Supremo, aqui se deixa, chega, de sobejo para confirmar o quanto este
senhor da Beca nos impressionou a todos os que com ele tiveram a honra e
o proveito de trabalhar.
Foi-se embora com pena do todos nós para subir os degraus da carreira
até ao mais alto dos patamares e tenho a certeza de que no Ministério da
Justiça, no Conselho Superior da Magistratura ou
no próprio Supremo Tribunal de Justiça, mesmo e até no recanto sossegado
da sua casa do Mem Martins, ali à vista das belezas de Sintra ou na Vela
com as da Estrela e Gardunha ao lado, nunca esqueceu aquela camaradagem
simples que, misturada com a que trouxera de Viana, dele fizeram em
Aveiro um Juiz ainda hoje recordado pela
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verticalidade que soube manter como roble, enquanto a seu lado outros
vergavam como caniços sob o sopro diabólico dos vendavais de então. |