Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 77 a 81.

Abel Pereira Delgado

Quando este Juiz veio de Viana para Aveiro destinado ao 2º Juízo, olhando um pouco para os "exemplares" que tomaram, antes, conta da respectiva vara, temi pela vara, temi pelos colegas, temi pelos clientes, e, porque não dizê-lo, temi por mim, habituado que estava a sofrer, nas pregas da toga, a má qualidade de alguns dos servidores que por lá passaram, ou, pior que isso, lá estacionaram com evidente poluição ambiente.

Tinha sido uma correnteza de "desgraças", um verdadeiro chorrilho de "negações" para a sempre difícil missão de julgar semelhantes, mormente quando como tal não eram considerados os réus, os autores, os cabeças-de-casal, etc. etc. etc. que, por mercê do aleatório da distribuição lá iam parar − sim, parar... − no duplo mas absoluto sentido de encalhar e ficar a gozar o "pesadelo" dos justos.

Mas houve alguma coisa que nos alertou, a mim e aos outros colegas, acerca deste Magistrado que no Minha dançara e fizera dançar o vira, por forma a merecer do querido e saudoso Ribeiro da Silva a expressão tranquilizadora de que nós estávamos cheios de sorte pois iríamos ter um Juiz, no duplo sentido de conhecedor das Leis e dos homens, o que bastaria para que, sempre que a pedíssemos, iríamos ter justiça, sem requintes de hermetismo formal que pudessem prejudicar ou mesmo e só beliscar o lado humano da sentença / 78 / que, feita pelo homem e ao homem dirigida, visava obter um equilíbrio necessário à cooperação, respeito e convivência social, em relação a uma ordem estabelecida e fixada por mercê de circunstâncias de força eleitoral ou de outro tipo que tivesse logrado permanência consolidadora.

E não tardou que a previsão do Ribeiro da Silva se tornasse realidade humana com a confraternização pessoal de Magistrados, Advogados e Oficiais de Justiça, de Aveiro e de Viana que, como não podia deixar de ser, meteu futebol, petiscos, abraços e criação de amizades e que teve reciprocidade já que não foi só à sombra magnífica de Santa Luzia, da Serra de Arga e do Lima de esquecimento lendário, mas também sob as bênçãos da Joana Princesa, dos longes do Caramulo e Buçaco, e das menos lendárias mas igualmente belas águas desta Ria por onde navegámos um pouco, terminadas que foram as fadigas redondas do "Mário Duarte", para temperar com o salgado dos moliços os eflúvios perigosos dos bairradas a esmo servidos no repasto.

Esta camaradagem, pela sua abrangência total dos servidores da justiça, logo nos abriu as cortinas do conhecimento deste Magistrado de eleição que, sem nunca esquecer, às vezes, mesmo exagerar, o rigor, nunca deixava de considerar-se um homem ao serviço dos homens, fosse na função, fosse na simples presença.

O "Palácio", café, mesmo ao lado do Palácio da Justiça, foi muitas vezes palco deste homem-juiz e juiz-homem e aqueles "colectivos" em volta da bica tradicional, nunca deixaram de, em liberdade, ser formados pelos homens da beca como o Valverde e o Afonso de Andrade, bem misturados com os da toga como o Candal, o Álvaro Neves, o Sardo e tantos outros entre os quais eu tinha a honra de contar-me.

Mas foi sempre a presença do Homem que me impressionou neste Juiz, mesmo ou até principalmente, através daquelas lágrimas / 79 / furtivas que não conseguiu esconder perante o atentado iníquo de que fora vítima a Mena, sua filha, ao tempo escolar de leis na Coimbra Doutora e hoje gente distinta de toga, em Lisboa, para onde Abril lhe permitiu ir.

Quando, em dada altura, Abel Delgado assumiu as funções de Corregedor de Círculo Judicial de Aveiro, todos ficamos satisfeitos e confiados, até porque a excepção que ele fora, fugidiamente embora, no tal 2º Juízo, viria a confirmar a regra "estórica" que o precedera.

E não me coibi de um dia, ao Café, e alto e bom som, ainda que soezmente, ter largado esta "boutade" que de todos mereceu o véu de sincera concordância:

Como poderia um "gajo" destes continuar no 2º Juízo, de tão tristes tradições?

E é por isso que não quero deixar de apontar, aqui, neste lavadoiro de roupa limpa só sujeita à barrela do sol da verdade, um episódio vivido numa acção ordinária para separação de pessoas e bens e que percorreu todos os degraus da escada judiciária até no Supremo atingir a consagração de "caso Julgado" .

Nela houve um pouco do tudo: petição, contestação e dedução de pedido reconvencional, réplica, tréplica e quadrúplica, incidentes de permeio, recursos para a Relação o para o Supremo, e depois, Regulação do Poder Paternal e Inventário facultativo para partilha de bens e, finalmente, pedido de alimentos.

Pelo meio e como tempero divino mas pecaminoso, até havia um Padre, um simpático galã de boa figura e aprimorados modos, a quem foi atribuído, com grande escândalo local, o papel de causador de desavenças conjugais e irredutibilidade na continuação da vida comum.

O julgamento quase foi épico e a resposta aos quesitos foi socialmente perfeita e, de certo modo, visando dar à autora e ao réu o que pretendiam sem rastos que prejudicassem a sua reputação social, um tanto abalada. / 80 /

O acórdão, redigido pelo Abel Delgado, Corregedor Presidente, é uma sábia peça jurídica e humana que cortando pelo meio as razões de ambos os lados, a ambos deu razão aproveitando na metade das verdades alegadas, o suficiente para fazer justiça.

Através da minha longa vida de homem de toga, nunca tive a felicidade de encontrar, como consagração, coisa semelhante à que pude ver no Acórdão do S.T.J. de 7 de Janeiro de 1972, nos autos em revista, assinado pelo Relator Ludovico da Costa e pelos adjuntos: Oliveira Carvalho e Adriano de Campos Carvalho donde constam estas preciosas linhas de que extraio um pouco habitual advérbio, primorosamente, que coroa, inteiro, uma sem dúvida notável sentença de primeira instância:

"Pois, como primorosamente se pondera na sentença, quando o marido se insurge contra as visitas do Padre... o "cântaro" transborda e a autora revela-se.

E então aproveita-se de todos os meios que se lhe deparam, para amarrar ao pelourinho da opinião pública que ela queria e quer a seu favor. Interessa-lhe que estejam ao lado dela e não ao lado dele, interessa-lhe arranjar elementos para que ela seja considerada a vítima."

Esta ilustração que, para melhor ser apreciado o adverbio com a bênção do Supremo, aqui se deixa, chega, de sobejo para confirmar o quanto este senhor da Beca nos impressionou a todos os que com ele tiveram a honra e o proveito de trabalhar.

Foi-se embora com pena do todos nós para subir os degraus da carreira até ao mais alto dos patamares e tenho a certeza de que no Ministério da Justiça, no Conselho Superior da Magistratura ou no próprio Supremo Tribunal de Justiça, mesmo e até no recanto sossegado da sua casa do Mem Martins, ali à vista das belezas de Sintra ou na Vela com as da Estrela e Gardunha ao lado, nunca esqueceu aquela camaradagem simples que, misturada com a que trouxera de Viana, dele fizeram em Aveiro um Juiz ainda hoje recordado pela / 81 / verticalidade que soube manter como roble, enquanto a seu lado outros vergavam como caniços sob o sopro diabólico dos vendavais de então.

 

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