Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 68 a 71.

O Vasco Mourisca

Tive contactos estreitos com ele quando, já eu instalado em Aveiro, comecei a mostrar os meus pruridos de escrevinhador de jornais e por ele fui convidado a colaborar, regularmente no ARAUTO DE OSSELOA, essa curiosa revista de sua propriedade e direcção, composta e impressa na Lusitânia, essa que foi ovo, mãe e ama do LITORAL, jornal quase do meu sangue e que ainda vive vivo, com sangue velho e novo misturado, já com o peso dos 43 anos e mais de 2000 edições paridas.

Estávamos em pleno reino da Censura e o Vasco sabia bem quem eu era e do que era capaz o meu atrevimento, mas não hesitou nem no convite que formulou, nem em aceitar a proposta que então lhe fiz e era:

Estou pronto a colaborar no teu jornal, se me deres um lugar certo, não importa em que página, e em que eu tenha plenos poderes. Entregarei na Tipografia a colaboração, farei a revisão das provas e tu, Vasco, só me lerás depois do jornal composto, impresso e distribuído.

E qual não foi o meu espanto quando o Vasco, em aceitação à minha atrevida proposta, me ofereceu o lugar de honra na segunda página, a duas colunas, com o título COLUNA-2 que passei a utilizar nas 8 edições em que lá colaborei, com respeito absoluto do Vasco em relação ao combinado.

E foi da minha parte que começou a haver aproveitamentos ilegítimos ou, pelo menos abusivos, do espaço concedido.

O primeiro, quase meigo, foi sobre a função do jurista, em que transcrevi do Bastonário Adelino da Palma Carlos, as seguintes palavras: / 69 /

"A função do jurista não é dizer qual é a Lei, mas qual deve ser a Lei."

Abordei, no número seguinte, pela rama funda e pelas raízes, o problema moral do uso das bombas em geral e da de Hiroxima em especial.

Seguidamente vieram, como não podia deixar de ser, os símbolos míticos de D. Quixote e Sancho Pança em palavras dirigidas a Miller Guerra, um Quixote desse tempo negro.

Era o começo dos "corninhos de fora" e o quarto artigo, "Quinzena de três picos" abordava Nixon, Pompidou e, de novo, Cazal Ribeiro, dele dizendo que "nem por ser desassombrado no que diz, deixa de ser ensombrado pelo que diz".

E foi no seguinte, o Nº 7, que a coisa começou a azedar quando um leitor, por acaso até amigo e colega, passou a dizer e escreveu que "O Arauto de Osseloa soava a rachado e não lhe interessava" devolvendo-o.

No seguinte, que foi o último da minha colaboração, foram Miller Guerra, Homem de Mello e, de novo, Cazal Ribeiro, os alvos das minhas políticas bicadas, sobretudo quanto ao "nazi de trazer por casa" que o último era.

Corria então o ano de 1973 − ainda faltava um!!!

Foi então que se deu uma chamada do Vasco, ao Governo Civil.

Medricas como era, o Vasco procurou-me no Café Palácio que frequentávamos, para me contar os seus receios.

E foi lá que eu o tentei consolar com esta frase mefistofélica, mas bem impregnada de sorrisos se amizade:

Deixa lá, Vasco! Se fores preso só tens que me dizer qual a cadeia e a marca de cigarros que fumas!

E lá foi "tremeliques" sem, à volta, ter de me indicar a cadeia e a marca dos cigarros.

O Vale Guimarães era amigo dos dois! / 70 /

Mas o Vasco, o VASCO MOURISCA era, sobretudo, um Poeta e de tal valia que não me furto ao prazer de aqui deixar mais umas quantas linhas a caracterizá-lo como tal e como homem que às vezes até procurava ser advogado.

Ainda que Licenciado em Direito, com banca montada e presenças, ainda que esporádicas em Tribunais, o VASCO não era um Advogado. Pairava alto demais o borbulhar vulcânico da sua fantasia.

Quando dava ou o faziam dar por si, já os pés não tocavam o firme chão e as asas, desalinhadas, da sua fantasia, tinham arrastado a cabeça, por aí fora em busca de céus novos que tanto podia encontrar no bafiento de uma qualquer Torre do Tombo como na presença válida mas escorregadia de um "Arauto de Osseloa" com o qual despejou ar fresco no tradicional da Imprensa provinciana.

Eu teria assunto para páginas, muitas páginas, baseadas no VASCO.

O meu Arquivo, mesmo, dispõe de cartas, algumas curiosíssimas, em que o verde da tinta que ele usava, embeleza a sua caligrafia personalizada mas legível.

Mas quero-me ficar, aqui e agora, pela Poesia, por, como já disse, o VASCO ser, com todos os seus defeitos e virtudes, um Poeta.

E, como tal, roubar-lhe, para vós, uma dedada do seu talento que ao tempo não foi compreendida pela força das circunstâncias era 1961... − mas encantou a minha sensibilidade, apesar de se prender a realidades geográficas, ao perigo de certas vizinhanças e à esperança que pretendia semear-se ao lado da cana sacarina e em lugar, se possível, do jogo e da prostituição desenfreada.

Era Cuba, já a de Fidel de Castro, mas em que os herdeiros de Baptista pretendiam continuar a clamar pela Paz impondo ou tentando impor uma guerra que lhes permitisse a liberdade, uma estranha liberdade que fosse a dos invasores de braço dado com a servidão dos invadidos. / 71 /

Chamava-se MAR DAS ANTILHAS, fazia parte do seu livro de poesia MAHALIA e, por ser pequeno, apesar de enorme, o poema, não o quero amputar de qualquer dos seus versos:

"Não venhas intervir no meu jardim;
só porque as minhas rosas,
que me agradam a mim,
são, para ti, presenças acintosas!

Cultiva as tuas flores, se bem te apraz,
Aduba, livremente, a tua terra.
Mas não venhas impor-me a tua paz,
que a tua paz, aqui, chama-se guerra."

E julgo que depois do que aí fica, tudo seria demais para caracterizar o Vasco Mourisca, esse senhor que sem deixar de ser de toga, foi, sobretudo e acima de tudo, um homem que em vez de Minerva conviveu com Orfeu.

 

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