Conheci-o há muitos anos, quantos os que separam o dia de hoje dos da
meninice traquina de então nos areais da Costa Nova e, quando o fui
acompanhar àquele recanto sagrado da sua terra de Ílhavo, como que vi,
já em saudade, os passos comuns do nosso viver.
Tinha comigo muitas afinidades esse companheiro dos areais e da praia,
da barra dos Tribunais, da paixão pela" redondinha" e pela selva dos
leões de juba, desse tempo, salvo quando entravam nos pelados os
pardalitos de Santa Cruz e do Choupal que então ele, o Victor, de todo
perdia as estribeiras e dava largas ao seu modo de ser apaixonado.
Mas essas afinidades, que muitas eram, não chegavam para tapar os poucos
mas alguns viscerais antagonismos como os da política, da religião e até
da maneira de encarar os fenómenos da Liberdade.
E é por aí que vou começar para tentar caracterizar o saudoso e querido
amigo e colega com quem nunca me zanguei, mesmo quando atirávamos pedras
um ao outro.
Era salazarista convicto, homem de direita e, a partir do "Mein Kampf"
mesmo antes do louco teutónico ter desencadeado a 2ª Grande Guerra
Mundial e provocado os muitos milhões de mortos e sacrificados, um
fanático nazi, levando a sua idolatria ao ponto de ter
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um bom retracto dessa triste figura que Hitler foi, mesmo ao lado da sua
mesa de trabalho. Já o ídolo caíra coberto das pústulas da sua maldade
de Estado, quando um dia lá fui e vi o Ícone do bigodinho ridículo
naquela atitude, tão sua, de esmagador de povos.
E dei um abraço ao Victor pela sua coerência entre Capitólio e
Rocha Tarpeia, entre o sublime e o ridículo da figura e da posição.
Não trocámos uma palavra que fosse mas o abraço que demos, esse era
eloquente prova da amizade que nos unia, por cima das diferenças
abissais que separavam os mundos políticos de cada um de nós.
Noutro campo, o do Desporto, de que foi praticante de certo merecimento,
na sua "Briosa", era incondicional "leão" da selva de Alvalade, salvo
quando eles defrontavam os pardalitos do velho Santa Cruz, com a sua ara
de sacrifícios.
E, para sorrir, recordo um episódio, já ocorrido no Calhabé, e em que,
por acaso, nos sentámos perto um do outro, em degraus vizinhos da
bancada.
Era o tempo em que, no Sporting, jogava esse prodigioso peruano que, a avaliar pelo nome de Seminário, tinha a "escola toda".
A Académica fazia, então, um futebol bonito, envolvente e perigoso em que o Bentes fulgurava como Estrela Polar.
Estávamos quase no final do jogo e o empate a zero persistia
apesar da "Briosa" largamente merecer a vitória.
Eis senão quando o árbitro assinalou, com justiça, diga-se, e a uns bons
trinta metros da baliza defendida, salvo erro, pelo Tibério, um livre
directo.
O peruano, após breve
concentração, marcou o livre de forma espantosa e fez a "redondinha"
entrar, como bala, pelo canto superior esquerdo da baliza que, em tempos
históricos, tinha sido defendida pelo
Armando Sampaio.
O silêncio abafou o estádio e foi então que o Victor, virando-se para
trás, de braços abertos como os de Cristo na cruz, vociferou com
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sua voz de falsete e humedecida por incontida "raiva":
− Assassino! Assassino! Assassino!
Era assim o Victor, sempre com o coração bem perto da boca,
em requintes de sinceridade, tantas vezes atrevida!
E para concluir e marcar bem essa sinceridade, por vezes paradoxal com o
seu feitio, conto-vos a sua reacção ocorrida em Lourdes quando ele e a
mulher me acompanharam num passeio pelos Pirenéus...
Lourdes como quase todas as Mecas do mundo é aproveitada pelos
traficantes de toda a espécie para, sem pejo nem vergonha, fazerem o seu
negócio, por vezes ridículo mas quase sempre rendoso.
O Victor e a mulher foram, natural e convictamente, à Basílica, em acto
de sincera fé, enquanto eu, cá fora, ia olhando de soslaio todo aquele
mercadejar em que até nem era difícil divisar um ou outro moiro ou hindu
a vender tapetes ou tâmaras de mistura com
santinhos e escapulários.
Quando o Victor apareceu e deu com o espectáculo, sem se dirigir aos"
infiéis" da História, não se conteve e sem tento na voz, deu largas à
sua revolta de crente:
− Estes filhos da puta que se aproveitam de Deus para refocilar no
negócio, precisavam bem, no lombo, de apanhar com o chicote que Cristo
usou para os expulsar do templo.
Nunca vi o Victor tão" assanhado" nem mesmo quando chamou assassino ao Seminário!
Era assim o Victor e, nos Tribunais, um adversário terrível pela
rijeza − não digo rigidez... − das suas posições.
Recordá-lo nas suas revoltas e imprecações, é o abraço possível à sua saudade. |