Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 65 a 67.

O Victor Gomes

Conheci-o há muitos anos, quantos os que separam o dia de hoje dos da meninice traquina de então nos areais da Costa Nova e, quando o fui acompanhar àquele recanto sagrado da sua terra de Ílhavo, como que vi, já em saudade, os passos comuns do nosso viver.

Tinha comigo muitas afinidades esse companheiro dos areais e da praia, da barra dos Tribunais, da paixão pela" redondinha" e pela selva dos leões de juba, desse tempo, salvo quando entravam nos pelados os pardalitos de Santa Cruz e do Choupal que então ele, o Victor, de todo perdia as estribeiras e dava largas ao seu modo de ser apaixonado.

Mas essas afinidades, que muitas eram, não chegavam para tapar os poucos mas alguns viscerais antagonismos como os da política, da religião e até da maneira de encarar os fenómenos da Liberdade.

E é por aí que vou começar para tentar caracterizar o saudoso e querido amigo e colega com quem nunca me zanguei, mesmo quando atirávamos pedras um ao outro.

Era salazarista convicto, homem de direita e, a partir do "Mein Kampf" mesmo antes do louco teutónico ter desencadeado a 2ª Grande Guerra Mundial e provocado os muitos milhões de mortos e sacrificados, um fanático nazi, levando a sua idolatria ao ponto de ter / 66 / um bom retracto dessa triste figura que Hitler foi, mesmo ao lado da sua mesa de trabalho. Já o ídolo caíra coberto das pústulas da sua maldade de Estado, quando um dia lá fui e vi o Ícone do bigodinho ridículo naquela atitude, tão sua, de esmagador de povos.

E dei um abraço ao Victor pela sua coerência entre Capitólio e Rocha Tarpeia, entre o sublime e o ridículo da figura e da posição.

Não trocámos uma palavra que fosse mas o abraço que demos, esse era eloquente prova da amizade que nos unia, por cima das diferenças abissais que separavam os mundos políticos de cada um de nós.

Noutro campo, o do Desporto, de que foi praticante de certo merecimento, na sua "Briosa", era incondicional "leão" da selva de Alvalade, salvo quando eles defrontavam os pardalitos do velho Santa Cruz, com a sua ara de sacrifícios.

E, para sorrir, recordo um episódio, já ocorrido no Calhabé, e em que, por acaso, nos sentámos perto um do outro, em degraus vizinhos da bancada.

Era o tempo em que, no Sporting, jogava esse prodigioso peruano que, a avaliar pelo nome de Seminário, tinha a "escola toda".

A Académica fazia, então, um futebol bonito, envolvente e perigoso em que o Bentes fulgurava como Estrela Polar.

Estávamos quase no final do jogo e o empate a zero persistia apesar da "Briosa" largamente merecer a vitória.

Eis senão quando o árbitro assinalou, com justiça, diga-se, e a uns bons trinta metros da baliza defendida, salvo erro, pelo Tibério, um livre directo.

O peruano, após breve concentração, marcou o livre de forma espantosa e fez a "redondinha" entrar, como bala, pelo canto superior esquerdo da baliza que, em tempos históricos, tinha sido defendida pelo Armando Sampaio.

O silêncio abafou o estádio e foi então que o Victor, virando-se para trás, de braços abertos como os de Cristo na cruz, vociferou com / 67 / sua voz de falsete e humedecida por incontida "raiva":

− Assassino! Assassino! Assassino!

Era assim o Victor, sempre com o coração bem perto da boca, em requintes de sinceridade, tantas vezes atrevida!

E para concluir e marcar bem essa sinceridade, por vezes paradoxal com o seu feitio, conto-vos a sua reacção ocorrida em Lourdes quando ele e a mulher me acompanharam num passeio pelos Pirenéus...

Lourdes como quase todas as Mecas do mundo é aproveitada pelos traficantes de toda a espécie para, sem pejo nem vergonha, fazerem o seu negócio, por vezes ridículo mas quase sempre rendoso.

O Victor e a mulher foram, natural e convictamente, à Basílica, em acto de sincera fé, enquanto eu, cá fora, ia olhando de soslaio todo aquele mercadejar em que até nem era difícil divisar um ou outro moiro ou hindu a vender tapetes ou tâmaras de mistura com santinhos e escapulários.

Quando o Victor apareceu e deu com o espectáculo, sem se dirigir aos" infiéis" da História, não se conteve e sem tento na voz, deu largas à sua revolta de crente:

− Estes filhos da puta que se aproveitam de Deus para refocilar no negócio, precisavam bem, no lombo, de apanhar com o chicote que Cristo usou para os expulsar do templo.

Nunca vi o Victor tão" assanhado" nem mesmo quando chamou assassino ao Seminário!

Era assim o Victor e, nos Tribunais, um adversário terrível pela rijeza − não digo rigidez... − das suas posições.

Recordá-lo nas suas revoltas e imprecações, é o abraço possível à sua saudade.

 

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