Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 58 a 61.

O Júlio Vilela

Este era e foi, enquanto viveu e tão pouco foi, um daqueles de quem sabe bem recordar a memória, no caso até adoçada por uma amizade que só acabou quando eu tive a dor imensa de saber da sua morte, ao pôr em dia a leitura dos jornais que o correio trouxera durante umas férias por terras da estranja.

Não sou muito para isso, embora o não pareça, mas tive uma verdadeira explosão de choro, daquelas explosões que nada nem ninguém conseguem evitar, tanto têm de força avassaladora.

Eu perdera um Amigo, um Irmão da mesma ama jurídica que nos fizera entender, da mesma forma, os recantos obscuros de LOMBROSO, de GAROFALO e de BECARIA pela boca confusa do ABEL DE ANDRADE e as turvas de GUILHERME MOREIRA, tornadas límpidas e cristalinas pelo JOSÉ GABRIEL PINTO COELHO, nosso mestre comum, de "Obrigações".

Mas mesmo lá, nos corredores escuros do velho casarão do Campo de Santana, o JÚLIO era farol de amizade e sal de fino espírito a condimentar camaradagens sem fronteiras descabidas mas em que não estava de todo ausente um certo halo que irmanava lutas em busca da Liberdade ausente, ao tempo.

Era querido de todos o VILELA e nem a vaidade posta nas gravatas que com gosto escolhia, nas melhores casas de Lisboa, o fazia desmentir os plainos e os cumes da sua convivência, mesmo com os / 58 / menos dotados de rigor na fardeta que tapava a nudez da simplicidade.

Tinha um jeito especial para cativar, o JÚLIO, e era de todos sabido e, não raro, invejado, aquele "fraquinho" que as raparigas e mesmo as maduras tinham por ele e pelo seu ar, um tudo nada "poseur", que ele sabia como poucos usar, fora do terreiro nivelado e simples da camaradagem escolar. É que lá, nunca consegui ver o VILELA, o JÚLIO, subir ou mesmo e só tentar subir para qualquer plinto que lhe desse a facilidade de olhar de cima os que sempre considerou iguais e eram os Colegas.

Tinha vindo lá de cima, do Douro, e a sua sensibilidade musical e voz poderosa e bem timbrada, tinham o seu quê dos horizontes largos e lavados de S. Salvador do Mundo ou da Galafura e de sons imponentes do tropelo das águas pelo cachão da Valeira e outros, em tentativa de atrasar o Douro, o seu rio, na caminhada para o suicídio da foz.

Chegava a ter talento para compor, de ouvido e assobio, já se vê, pequenas melodias que cantava ou dava a cantar aos outros, como aquela que tantos aplausos mereceu e teve numa récita de quintanistas, no Teatro Politeama, de Lisboa, no já recuado ano de 1935 o da nossa Licenciatura em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa "ad lucem", como em pergaminho se escrevia, nos diplomas.

Após ela deu-se o desfazer do ramalhete e as rosas, cardos, urtigas e violetas que o formavam, foram-se espalhando por aqui, por acolá e por além embora todos adivinhássemos que ele, o JÚLIO, só poderia assentar arraiais e abrir banca, na terra do seu berço onde a simpatia, nele tão natural, aliada à clara inteligência de que era dotado, para além do seu poder de comunicação, não deixariam de facilitar-lhe a tarefa, no angariar do pão de cada dia. / 60 /

E por lá se ficou, quase sem ter de engatinhar pelos socalcos da profissão de pedidor de justiças. Mas, paralelamente, nunca deixou, enquanto a vida lhe permitiu, de alinhar com os velhos, cada vez mais velhos, companheiros do Campo de Santa na, nas lampreiadas de Entre-os-Rios, modo que tínhamos de comemorar o então feriado do 31 de Janeiro.

O RAUL ÁVILA vinha de Viana, onde era Conservador do Registo Predial; o ARTUR ABREU MONTEIRO e o FIRMINO, vinham do Porto onde o primeiro pontificava na Advocacia e o segundo exercia altas funções na Universidade e com eles o VICTOR LOPES DIAS então, se bem recordo, Secretário do Governo Civil do Porto; o ANDRADE BORGES despia a beca das justiças da comarca onde estivesse e vinha, também, quase sempre para sofrer as irreverências dos não Juízes que todos éramos; o HENRIQUE SOUTO e eu próprio íamos das bordas salgadas da Ria e todos comungávamos naquela liturgia gostosa que, por tão santa ser, nos libertava das penas pelo pecado da gula.

Eram dias inesquecíveis, esses, irrepetíveis como coro já que, agora, só em solo de mim e por certo algo desafinado, poderia repetir-se.

A veia humorística do VILELA era por todos apreciada como mel do mesmo fava e gostávamos que ele nos contasse as suas façanhas profissionais por terras durienses, quando por lá passava algum togado susceptível de "cavalaria".

E passámos a admirá-lo, mais ainda, quando ele nos pôs a par daquela" finta" que já tive ocasião de contar, a propósito do MORAIS SARMENTO, no meu livro "Gente de Toga e Beca" deste se não Pai, pelo menos Tio, Irmão ou parentesco que o valha, e em que conluiado com um Colega e Amigo, punham em Comarca vizinha as acções de "Reais" com a promessa mútua de nunca levantarem o incidente da incompetência relativa, ininvocável oficiosamente pelo Juiz. E tudo / 61 / isso para evitarem os atrasos "pantagruélicos" do Juiz que chegava a despachar uma qualquer diligência dilatória, só para não estudar e resolver os casos mais "bicudos" que em todas as Comarcas surgem, nem sempre encontrando Magistrados capazes de bem os resolver e, sobretudo, em tempo útil.

O JÚLIO VILELA era um pouco de todos esses traços que aqui deixo, quem sabe se com as deformações que a saudade acentuou mas que serão compreendidas e desculpadas como filhas de uma camaradagem que sempre sabe bem recordar.

 

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