Este era e foi, enquanto viveu e tão pouco foi, um daqueles de
quem sabe bem recordar a memória, no caso até adoçada por uma amizade
que só acabou quando eu tive a dor imensa de saber da sua morte, ao pôr
em dia a leitura dos jornais que o correio trouxera durante umas férias
por terras da estranja.
Não sou muito para isso, embora o não pareça, mas tive uma verdadeira
explosão de choro, daquelas explosões que nada nem ninguém conseguem
evitar, tanto têm de força avassaladora.
Eu perdera um Amigo, um Irmão da mesma ama jurídica que nos fizera
entender, da mesma forma, os recantos obscuros de
LOMBROSO, de
GAROFALO
e de
BECARIA pela boca confusa do
ABEL DE ANDRADE e as turvas de
GUILHERME MOREIRA, tornadas límpidas e cristalinas pelo
JOSÉ GABRIEL PINTO COELHO, nosso
mestre comum, de "Obrigações".
Mas mesmo lá, nos corredores escuros do velho casarão do Campo de
Santana, o JÚLIO era farol de amizade e sal de fino espírito a
condimentar camaradagens sem fronteiras descabidas mas em que não estava
de todo ausente um certo halo que irmanava lutas em busca da Liberdade
ausente, ao tempo.
Era querido de todos o VILELA e nem a vaidade posta nas gravatas que
com gosto escolhia, nas melhores casas de Lisboa, o fazia desmentir os plainos e os cumes da sua convivência, mesmo com os
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menos dotados de rigor na fardeta que tapava a nudez da simplicidade.
Tinha um jeito especial para cativar, o JÚLIO, e era de todos sabido e,
não raro, invejado, aquele "fraquinho" que as raparigas e mesmo as
maduras tinham por ele e pelo seu ar, um tudo nada "poseur", que ele
sabia como poucos usar, fora do terreiro nivelado e simples da
camaradagem escolar. É que lá, nunca consegui ver o VILELA, o JÚLIO,
subir ou mesmo e só tentar subir para qualquer plinto que lhe desse a
facilidade de olhar de cima os que sempre considerou iguais e eram os
Colegas.
Tinha vindo lá de cima, do Douro, e a sua sensibilidade musical e voz poderosa e bem timbrada, tinham o seu quê dos horizontes
largos e lavados de S. Salvador do Mundo ou da Galafura e de sons
imponentes do tropelo das águas pelo cachão da Valeira e outros, em
tentativa de atrasar o Douro, o seu rio, na caminhada para o suicídio da
foz.
Chegava a ter talento para compor, de ouvido e assobio, já se vê,
pequenas melodias que cantava ou dava a cantar aos outros, como aquela
que tantos aplausos mereceu e teve numa récita de quintanistas, no
Teatro Politeama, de Lisboa, no já recuado ano de 1935 o da nossa
Licenciatura em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa "ad lucem", como em pergaminho se escrevia, nos
diplomas.
Após ela deu-se o desfazer do ramalhete e as rosas, cardos, urtigas e
violetas que o formavam, foram-se espalhando por aqui, por acolá e por
além embora todos adivinhássemos que ele, o JÚLIO, só poderia assentar
arraiais e abrir banca, na terra do seu berço onde a simpatia, nele tão
natural, aliada à clara inteligência de que era dotado, para além do seu
poder de comunicação, não deixariam de facilitar-lhe a tarefa, no
angariar do pão de cada dia.
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E por lá se ficou, quase sem ter de engatinhar pelos socalcos da
profissão de pedidor de justiças. Mas, paralelamente, nunca deixou,
enquanto a vida lhe permitiu, de alinhar com os velhos, cada vez mais
velhos, companheiros do Campo de Santa na, nas lampreiadas de
Entre-os-Rios, modo que tínhamos de comemorar o então feriado do 31 de
Janeiro.
O
RAUL ÁVILA vinha de Viana, onde era Conservador do Registo Predial; o
ARTUR ABREU MONTEIRO
e o
FIRMINO,
vinham do Porto onde o primeiro pontificava na Advocacia e o segundo
exercia altas funções na Universidade e com eles o
VICTOR LOPES DIAS então, se bem recordo,
Secretário do Governo Civil do Porto; o
ANDRADE BORGES despia a beca das
justiças da comarca onde estivesse e vinha, também, quase sempre para
sofrer as irreverências dos não Juízes que todos éramos; o
HENRIQUE
SOUTO e eu próprio íamos das bordas salgadas da Ria e todos comungávamos
naquela liturgia gostosa que, por tão santa ser, nos libertava das penas
pelo pecado da gula.
Eram dias inesquecíveis, esses, irrepetíveis como coro já que, agora, só
em solo de mim e por certo algo desafinado, poderia repetir-se.
A veia humorística do VILELA era por todos apreciada como mel do mesmo
fava e gostávamos que ele nos contasse as suas façanhas profissionais
por terras durienses, quando por lá passava algum togado susceptível de
"cavalaria".
E passámos a admirá-lo, mais ainda, quando ele nos pôs a par
daquela" finta" que já tive ocasião de contar, a propósito do
MORAIS
SARMENTO, no meu livro "Gente de Toga e Beca" deste se não Pai, pelo
menos Tio, Irmão ou parentesco que o valha, e em que conluiado com um
Colega e Amigo, punham em Comarca vizinha as acções de "Reais" com a
promessa mútua de nunca levantarem o incidente da incompetência
relativa, ininvocável oficiosamente pelo Juiz. E tudo
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isso para evitarem os atrasos "pantagruélicos" do Juiz que chegava a
despachar uma qualquer diligência dilatória, só para não estudar e
resolver os casos mais "bicudos" que em todas as Comarcas surgem, nem
sempre encontrando Magistrados capazes de bem os resolver e, sobretudo,
em tempo útil.
O JÚLIO VILELA era um pouco de todos esses traços que aqui deixo, quem
sabe se com as deformações que a saudade acentuou mas que serão
compreendidas e desculpadas como filhas de uma camaradagem que sempre
sabe bem recordar. |