Costa e Melo, Gente de Toga, Beca e Capinha (Fogachos da lareira forense), CMA, 2000, pp. 21 a 23.

O Artur Beirão

Foi, sem dúvida, o melhor e mais sabedor homem de capinha com quem trabalhei ao longo da minha faina de pedidor de justiça, tantas vezes a quem a não sabia dar por falta de pés na terra em que todos vivíamos.

Era um homem calmo, sereno, quase grave em quem jamais se via um assomo, pequeno que fosse, de arrogância ou de preocupação para mostrar o que não tivesse ou desejar o que não sentisse.

Não foram muitos os anos em que trabalhei com ele, nesta Comarca de Aveiro a que arribou, de livre vontade, para se promover e para mais perto estar da sua terra de Canelas, ela também da Beira-Ria e com tradições em várias e boas "bateiras" do saber jurídico.

Estou a vê-lo, ao Artur Beirão, sempre composto, à sua secretária de Escrivão do 2° Juízo, no canto do lado sul da sala onde, no velho Tribunal, se acotovelavam os funcionários.

Era, sem dúvida alguma, um Senhor, este Beirão que recordo. Para marcar bem um traço da sua personalidade e valor, vou apontar − e assim é maior a valia... − um facto, em sucessão de episódios, que comigo se passou.

Eu tinha vindo para Aveiro, advogar, já com cerca de 10 anos de formatura e profissão, acrescida com a de oficial de fé pública, como Notário. / 22 /

Embora nunca tivesse deixado de advogar, salvo naqueles dois anos e meio que passei em Tábua e em que, por inerência do cargo de Notário, era Sub-Delegado do Procurador da República no Julgado Municipal, eu tinha naturais hesitações, sobretudo de natureza formal, no sector do Processo Civil.

Por isso não raro "batia à porta" dos práticos Escrivães de Direito, ao tempo chamados Chefes de Secção, para obter esclarecimentos sobre relações de bens, declarações de cabeça de casal, publicação de editais ou apresentação de róis de testemunhas ou não importa que outros escaninhos da formulação judiciária.

E, tal como eu, muitos e muitos outros, até mais experientes, preocupados em fugir aos alçapões que, a cada passo, eram criados pela actividade legiferante do governo.

Pois o nosso Beirão estava sempre atento ao que se passava e disposto a ajudar-nos.

E fazia-o, sempre, com elegância para que o eventual chocante de ver um Licenciado, Homem de Toga, pedir auxílio a um "simples" homem de capinha não fosse mal interpretado.

Nunca dizia ser assim ou assado, para nos esclarecer.

Abria a gaveta do meio da sua secretária de Escrivão, onde guardava, por ser mais económico, os textos legais em exemplares do então "Diário do Governo" − República não a havia, ao tempo... − e respondia em chã ou nivelada colaboração ou esclarecimento:

Ora vamos lá a ver!

e folheava, lia ou dava a ler o texto do diploma legal ou circular que contemplasse o caso.

E era certo e sabido que o caso ficava esclarecido sem arrogância ou falsas superioridades, com uso expresso duma primeira pessoa do plural que dava, aos "mendigos" a convicção de que a solução da charada fora trabalho da leitura comum e não mera informação de quem tanto e tão bem sabia sem disso fazer alarde ou andas de garboso entendido. / 23 /

E não abria a porta só a alguns dos mendicantes.

Só exigia − e nem isso seria, por certo, preciso − que do nosso lado houvesse compostura no pedir, tudo para que o "ora vamos lá a ver" não toasse a choco ou soasse a cana rachada.

Uma saudade, este Senhor de capinha!

 

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